O CONTRÁRIO DA INTOLERÂNCIA NÃO É A TOLERÂNCIA

 

A Revista da PUC, de Minas Gerais, acaba de lançar em versão impressa e também online a edição do primeiro semestre de 2016, que traz um dossiê, “Tolerância Zero”, sobre as várias intolerâncias sócio-político-culturais que estão crescendo no Brasil. A matéria afirma que “…. Os embates fervorosos nos últimos meses entre eleitores, e até mesmo parlamentares, dos dois principais partidos políticos do Brasil pelas redes sociais e pessoalmente; a agressividade contra imigrantes de países hispano-americanos e africanos; os episódios recorrentes de intransigência religiosa e racismo e a hostilização contra membros da comunidade LBGT. Todos têm como ponto de convergência a intolerância. Tão antiga quanto a história da humanidade, a intolerância parece ter ressurgido com mais força nos últimos meses, potencializada pela rapidez e visibilidade da tecnologia da informação…”.

O dossiê especial trata da discriminação religiosa, dos racismos, das agressões contra a população LGBT e da intolerância política, trazendo ainda um vocabulário de termos relacionados ao tema. No que diz respeito à intolerância religiosa em particular, lembra que “… Casos como o da garota Kailane Campos, de 11 anos, têm sido mais frequentes. Ao sair de um culto de candomblé, no subúrbio do Rio de Janeiro, no domingo, 14 de junho de 2015, ela foi apedrejada. Dois homens, que seguravam bíblias, foram responsáveis pela agressão. Avó da garota, Káthia Marino, iniciada no candomblé há mais de 30 anos, disse que nunca havia passado por uma situação como essa”. Alguns estudiosos da religião brasileiros foram ouvidos para a composição da matéria, entre eles o coordenador do nosso Observatório, Gilbraz Aragão.

 

 

Veja parte da matéria por aqui, no site da Revista, e leia abaixo a entrevista que o professor Gilbraz concedeu por e-mail para a reportagem:

 

RP – Os casos de intolerância religiosa têm crescido no Brasil? Por quê?

Gilbraz – No Brasil, as denúncias de discriminação religiosa recebidas pelo Disque/Clique 100 atingiram no ano de 2015 seu maior número desde 2011, quando o serviço passou a receber esse tipo de denúncia. Foram 556 casos reportados ao serviço da Secretaria de Direitos Humanos do governo federal. Houve um aumento de 273% em relação a 2014 e a maioria dos fatos envolve o Povo de Santo das religiões afro-indígenas-brasileiras, com cultos de imprecações cristãs contra os seus Terreiros e agressões aos seus símbolos e aos seus membros. Não é à toa que o 21 de janeiro, desde o ano 2007, é Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, justo por causa da morte de Mãe Gilda, do candomblé da Bahia, vítima de agressões por cristãos.

Pessoas evangélicas, muçulmanas e ciganas também foram agredidas, mas a intolerância religiosa no Brasil é muito racista e classista, refletindo uma negação da distribuição equânime dos Bens Comuns: valores cristãos são usurpados para se matar deuses e deusas dos índios e negros – e depois tirar suas terras ou desarticular suas lutas por direitos e dignidade. Ademais, há um crescente pluralismo religioso entre nós, onde a democracia e a laicidade criam espaço para o re-surgimento de tradições místicas e a concorrência entre grupos que oferecem caminhos simbólicos e espirituais para a vida das pessoas – só que em áreas pouco cobertas pelo estado (ou onde o estado está aparelhado por igrejas) existem lideranças que simplesmente eliminam os concorrentes pela força. Finalmente, há muito outro componente: um movimento fundamentalista que cresce nas novas igrejas cristãs por aqui, como entre muçulmanos que migram do Oriente para o Ocidente, em que o desejo desses grupos periféricos pelo consumo da cultura moderna vai se transmudando em ódio, aversão à ciência e à liberdade, perseguição de religiosidades e interpretações diferentes.

RP – Quando e onde surgiu esse tipo de intolerância?

Gilbraz – Os últimos anos foram sacudidos por vários atentados terroristas, em diversas partes do mundo (embora os de Paris tenham ganhado mais projeção), reivindicados por grupos que se proclamam muçulmanos e pretendem implantar políticas literais do Corão – e isso inquieta as pessoas de boa vontade e os militantes do diálogo inter-religioso. Esses fundamentalismos religiosos passam a impressão de que vamos assistir e nos envolver cada vez mais em um confronto do Oriente islamizado com o Ocidente cristão, quando na verdade expressam muito são as dificuldades culturais na abertura do Oriente Médio e Norte da África, majoritariamente muçulmanos, para a democracia e emancipação modernas e, sobretudo, um conflito político entre grupos relacionados à mesma fé islâmica: o “crescente xiita”, que vai do Irã ao Líbano, passando pelo Iraque e pela Síria, é considerado uma ameaça pelas monarquias árabes sunitas, um bloco que vai do Egito à Turquia, passando pela Jordânia, a Arábia Saudita e o Catar.

Então a “intolerância religiosa” tem outros componentes políticos e culturais e não se restringe ao islamismo. Aliás, o termo fundamentalismo vem mesmo é dos protestantes norte-americanos, os quais no começo do século XX criaram um movimento político-teológico para combater os cristãos liberais, que praticam uma interpretação da Bíblia informada cientificamente e aceitam as causas modernas do feminismo – e do socialismo. Esse fundamentalismo gringo tem fundamentado entre nós um conservadorismo moral, de fundo aparentemente evangélico, usado para acobertar um projeto autoritário de liberalismo econômico e exploração popular, por políticos que transformam a tribuna em púlpito e conclamam desfiles das suas legiões contra os demônios que se escondem, supostamente, em outras religiões e filosofias.

RP – Quais grupos ou religiões estão mais vulneráveis a este tipo de situação? Por quê?

Gilbraz – Não se trata de criticar as pessoas que gostam do evangelho e criam comunidades em torno dele para promover mais vida, mas de questionar um projeto de dominação político-cultural articulado por algumas lideranças evangélicas e católicas, que consistem em um cisma com respeito à tradição profética do cristianismo. Pois elas opõem um “deus” pai sério e punitivo a uma divindade amorosa de justiça e compaixão; uma igreja exclusivista, rígida e hierárquica, a movimentos inter-religiosos em favor da terra eco-consciente; manifestam um apego teológico ao pecado original, contra uma espiritualidade da criação e sua compreensão de bênção original; pregam a intolerância ao estrangeiro e ao “estranho” moral, contra o abraço ao feminino e aos outros gêneros; o medo da ciência, enfim, ao invés do incentivo à sapiência.

São discursos que hostilizam em especial as telúricas religiões indígenas e afro-negro-brasileiras, além de outros “bodes expiatórios” considerados idólatras. Contra eles devemos invocar a laicidade: o Estado brasileiro é laico e pluralista, acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Não é lícito que uma religião imponha à nação seus pontos de vista e não podemos deixar os espaços públicos republicanos ser ostensivamente ocupados e controlados por quaisquer comunitarismos ou igrejas. Uma autoridade pode ter convicções religiosas, mas não é por elas, mas pelas leis e pelo espírito democrático que deve governar, sendo necessário traduzir as motivações religiosas pessoais em argumentos racionais para o debate público numa democracia moderna.

RP – Essa intolerância muitas vezes é a causa de grandes conflitos em todo o mundo…

Gilbraz – Não são poucos os desafios que o mundo enfrenta nesse campo (da falta) do diálogo e da coexistência. Não bastassem os conflitos econômicos e políticos, a China e a Coreia do Norte perseguem ideologicamente (e a ideologia aí assume ares de substitutivo religioso) os grupos espirituais tradicionais. O Irã e a Arábia Saudita apadrinham a versão de uma religião e perseguem muçulmanos dissidentes, cristãos e baha’istas. O Paquistão condena à morte quem os extremistas denunciam por blasfêmia, normalmente xiitas, cristãos, hindus e ahmadis. Na Síria e Iraque o grupo Estado Islâmico desencadeou ondas de terror contra yazidis, cristãos e xiitas, bem como contra os gays e as mulheres. Budistas radicais na Birmânia agridem os muçulmanos rohingya. Na República Centro-Africana, milícias cristãs destruíram quase todas as mesquitas do país. Na Nigéria, o Boko Haram continua a atacar cristãos e inúmeros muçulmanos que se opõem ao grupo. Israel não se entende com os primos árabes no Oriente Médio. O extremismo político/religioso também aterroriza Europa e EUA – e não são apenas os ditos muçulmanos antiocidentais: grupos que se proclamam cristãos matam médicos que defendem os direitos reprodutivos.

O nosso mundo Ocidental endeusou a razão científica produtivista e desprezou o fator religioso, simbólico e imaginário. Então o sagrado reaparece assim, desse jeito selvagem e conflituoso. Precisamos incluir em nossas decisões as questões do sentir e do sentido, aprender a pensar de maneira mais complexa e transdisciplinar, precisamos ensaiar uma nova forma de ver e entender a natureza, a vida e a humanidade. O saber que faz falta busca a unidade em meio à diversidade, entre e além das disciplinas científicas, incluindo a nossa subjetividade e as sabedorias tradicionais para ajudar a encontrar significado para a existência, reivindicando a centralidade da vida em toda discussão, propondo uma mudança na compreensão do conhecimento: como relação entre sujeitos e objetos, atenta ao contraditório em tudo, mas aberta à sua superação em outros níveis de realidade – pela inclusão de um terceiro termo, em uma lógica ternária e não dualista. Enfim, precisamos reunir a nossa ciência com a fé, nas suas diversas tradições, para terapeutizar as práticas e discursos religiosos – mas também os textos assépticos do pensamento e da política ocidentais.

RP – O que fazer para enfrentar a intolerância religiosa?

Gilbraz – A intolerância é mais forte, no Brasil, por parte de alguns grupos evangelicais, e começou contra os Terreiros Afro, mas agora atinge também imagens e festas católicas. Mesmo em Minas Gerais, esteio do nosso catolicismo popular, há relatos de igrejinhas destruídas. Para enfrentar essa situação temos criado legislação e políticas, mas precisamos mesmo é de (re)educação. Somente a escola pode terapeutizar a vivência da religião e as relações entre as religiões. Mas a escola como lugar de aprendizagens críticas e transdisciplinares dos conhecimentos espirituais, enquanto patrimônio cultural da humanidade. Cabe à comunidade educativa refletir sobre as diversas experiências religiosas que a cercam, analisar o papel dos movimentos e tradições religiosas na estruturação e manutenção das culturas, rompendo com relações de poder que encobrem e naturalizam discriminações e preconceitos. Cabe à escola refletir sobre o fenômeno humano de abertura para a transcendência, em busca de interpretações mais universais e significados mais profundos para o que é experimentado como sagrado em cada cultura.

Todas as pessoas, sobretudo as novas gerações, têm direito ao esclarecimento das crenças e descrenças da humanidade e para isso o Ensino Religioso deve avaliar as notícias religiosas em seus contextos, estudando as religiões como questão e não como dado. O Ensino Religioso, compreendido como campo de aplicação da área de conhecimento das Ciências da Religião, numa visão transdisciplinar, não objetiva transpor conteúdos enciclopédicos e muito menos doutrinais para um ensino catequético, mas o desenvolvimento de processos de aprendizagem participativos, de construção de conhecimentos significativos através de projetos de pesquisa, em conexão com as pautas de estudo e engajamento dos cientistas da religião. Acredito que a Base Curricular Nacional está apontando esse horizonte para o Ensino Religioso e é por aí que a intolerância religiosa pode ser enfrentada. Lembrando que o contrário da intolerância não é a tolerância: o diálogo e a coexistência apontariam melhor o caminho das relações interculturais e trans-religiosas.

 

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12 comentários Adicione o seu

  1. Marcelo Gonzaga Silva disse:

    será que a humanidade teve e terá seu futuro pre determinado por uma lógica de apenas três filósofos? e Nietzsche? o que diz disso tudo? Será que o homem não pode produzir o seu próprio destino?

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