Tributo

Nesta seção vamos recolhendo testemunhos de personalidades do Recife e região que se mostraram buscadoras do diálogo. Queremos colocar nesse “oratório” de tributo, as práticas, reflexões e ousadias de pessoas que, em todas as tradições espirituais, têm descoberto a encruzilhada de caminhos diferentes e com sons religiosos diferenciados que, de repente, despertam-se próximos e com um mesmo sonho humano e humanizante. Gente que nos inspira, feito Dom Helder, que dizia que todas as igrejas apontam para o céu: se você fica olhando só o templo, perderá o céu estrelado…

E mais: “Não temos o monopólio da verdade. Não temos o monopólio do Espírito Santo. Devemos ter toda a humildade diante daqueles que, mesmo não tendo jamais ouvido o nome de Cristo, talvez possam ser mais cristãos que nós mesmos!”. Este primeiro “tributo”, então, foi preparado por Lucy Pina, trazendo as palavras do Dom quando recebeu em Oslo (Noruega) o Prêmio Popular da Paz, além de programa seu na Rádio Olinda: sobre a viagem ecumênica à Europa.

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O Prêmio Popular da Paz para Dom Helder Camara, um passo adiante no Ecumenismo e Diálogo.

Lucy Pina

Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP, historiadora do IDHeC.

 “Mais perto ou mais longe da Paz”, este é o título escolhido por Dom Helder para suas palavras na cerimônia de entrega do Prêmio Popular da Paz em Oslo, Noruega, em fevereiro de 1974. Os Países Escandinavos foram um dos destinos da sua 1ª Viagem Internacional de 1974, em que visitou também a Suíça (Davos e Zurique) e a Alemanha (Frankfurt). Tudo acertado desde 19 de janeiro. Tudo muito simples, hospedagem na casa de amigos e translado terrestre em carro particular, apesar do tempo ruim, conforme escreveu à Família Mecejanense na madrugada de 14/15 de fevereiro[1]: “Para ir de Lucerne a Zurique, no carro do Bernardo, foi preciso chamar Teresa, filha de Gladys, seguríssima na direção, apesar da tempestade de neve.”

Por sugestão do Dom a entrega do prêmio foi adiada: originalmente se pensava na mesma data da entrega do Nobel, a 10/12/1973. O local da entrega do prêmio também foi mudado, passou para o salão nobre da Prefeitura de Oslo e sob a presidência do Prefeito. Segundo o Dom, “fosse um local não oficial e não faltaria quem dissesse que o prêmio vinha de jovens comunistas.” Foram 1.500 convidados, que se puseram de pé para aclamar a chegada do Arcebispo Brasileiro, “que mistério! Lá nos confins da Europa, na fria Escandinávia, tanta compreensão, tanto apoio, tanto calor!”

Tudo transmitido pela Eurovisão para 30 países. Muitos oradores e entre eles o Bispo Luterano de Oslo (os discursos foram trazidos pelo Dom para Recife). À entrega do prêmio explodiu o salão de emoção. O valor? Próximo a 300 mil dólares. Mas para Dom Helder, “O que não tem preço, e é incalculável, é o apoio moral, o trabalho de conscientização da Europa, o encorajamento a todos os que, no Mundo, trabalham, com amor, pela justiça, como caminho para a paz…Foi isto o que eu disse no fecho de minha fala, ao improvisar as palavras finais, que tiveram o dom de incendiar o Auditório…”

Ao fim da cerimônia um Culto Ecumênico na Catedral Católica de Santo Olavo. O Bispo católico que hospedou o Dom ficará encantado com a catedral lotada, “e, sobretudo, comentou, felicíssimo, que pela 1ª vez depois da Reforma, Luteranos, com seus Pastores, entravam em um Templo católico.” O Culto repercutiu: o Presidente da Federação Alemã Luterana, em Zurique, comentou a ida dos Luteranos à Catedral Católica; Dom Helder escreveu que ele “mostrava-se radiante, pois, segundo ele, a Igreja Luterana da Noruega é super-conservadora e arqui-luterana. Considerava o acontecimento muito auspicioso para a marcha do Ecumenismo. E dizia-se que os Luteranos receberam, com respeito e carinho, meu texto muito ousado, sobre ‘Ecumenismo de dimensões divinas’”.


[1] Todos os trechos citados nesta introdução foram retirados da 210ª Circular de Abertura da Ação Justiça e Paz para o Plano Mundial – 3ªfase: Articulação das Minorias Abraâmicas. Datada de Recife, 15/16.2.1974. Arquivo do Centro de Documentação do Instituto Dom Helder Camara – IDHeC.

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Mais perto ou mais longe da paz?

Palavras proferidas por +Helder Camara, Arcebispo de Olinda e Recife (Brasil), ao receber em Oslo (Noruega) o Prêmio Popular da Paz, 10.2.1974.

1. Que diriam, nesta hora, os Grandes Amigos da Paz?

Gandhi, tu lutaste a vida inteira pela paz, e conseguiste pela não-violência a libertação política de teu Povo, e mereceste oferecer a vida aproximação dos homens, que me inspiras, nesta hora, em que recebo, da generosidade deste Povo irmã, um Prêmio de Paz?…

Martinho Lutero King, tu que sacrificaste a vida não apenas pela causa dos negros, teus irmãos, mas pela vitória, no Mundo, da compreensão e do amor, que me sopras, nesta hora em que recebo o Prêmio Popular da Paz?…

E vós que acreditais no trabalho de promoção de todos os seres humanos, através do desenvolvimento da consciência crítica da humanização; vós todos, que acreditais na humanização do Mundo; vós todos, que vos bateis pela justiça e pelo amor, como caminhos para a paz, tanto nos Países super-industrializados coo nos Países subdesenvolvidos, que desejaríeis que eu dissesse neste instante?…

Pensando em vós todos e entregue ao Espírito de Deus, examinarei se estamos mais perto ou mais longe da paz, e o que poderemos fazer, além de simples palavras ou de meros gestos, pelo avanço da paz…

2. Aparentemente, um problema sem solução

2.1.Hinos à Guerra

Até quando se falará em guerra-justa, mesmo depois das maiores atrocidades cometidas sob este pretexto?…

Até quando continuará a aceitar o massacre de seres humanos sob alegação de defesa da humanidade, quando não se sabe deflagrar, hoje, uma guerra, é correr o risco de provocar o desaparecimento da vida da face da Terra?…

Até quando haverá quem entoe hinos à guerra, pretendendo/ idealizar a carnificina, o assassinato das populações mais jovens, a destruição maciça de crianças, de velhinhos?

Até quando seremos obrigados a escutar a macabra e mentirosa alegação de que a guerra permite descobertas da maior importância/ para a Humanidade e deixando entrever que ela é única solução para a explosão demográfica, fenômeno real, que se vem prestando a explorações sem conta?

A verdade é que a guerra sempre foi absurda: por que concluir que tem razão, quem vence pela força, pela técnica ou pela astúcia? Até quando vencer, vai valer mais do que convencer?

A guerra foi absurda, torna-se, sempre mais, revoltante o covarde! Bombas, eletronicamente dirigidas, são disparadas, são disparadas à distância, e atingem, com precisão matemática, os alvos previstos. Quem não sabe que as guerras de hoje matam mais a população civil e desarmada, do que saldados, com armas na mão?

2.2.Soluções ilusórias

Quem não se recorda de soluções ilusórias como a Lina Maginot?

Pensou-se, também, que face do poderio destruidor imenso da guerra bio-química e da guerra nuclear, o homem deixaria, de lado, o brinquedo estúpido da guerra.

As guerras continuam. De repente, os Pequenos são arrastados a elas, se devoram, se estraçalham, enquanto, na retaguarda, os Grandes, os Senhores do Mundo medem forças, experimentam armas novas e sempre mais mortíferas, como argumentos decisivos para direitos mais amplos na partilha do Mundo.

As lutas armadas, as guerras, não são mais do que manifestações de distúrbios psíquicos, de desorganizações sociais, expressão/ de falsos valores culturais, passíveis de superação.

A solução para os problemas que levam aos conflitos armados – o terrorismo e sua expressão mais ampla, a guerra – não será encontrada ampliando as ondas da violência através da repressão policial, da busca constante, da pesquisa mais profunda, das raízes dos distúrbios psíquicos, dos distúrbios psíquicos, das desorganizações sociais, de pseudo-valores de culturas, em fase de superação.

Mas as guerras continuam. Hoje, são conduzidas por m complexo poderosíssimo: Governo-Empresas-Técnicos e Militares.

Os Governos entram com a fachada política e o pretexto oficial. As Empresas – e as Macro-Empresas, multi-nacionais – são o poderio econômico-financeiro que, até hoje, não descobriu indústria mais rentável que a bélica. Até as viagens espaciais estão, em larga medida, a serviço da indústria bélica. OS Técnicos devem, no caso, contentar-se com a glória precária e diabólica de aperfeiçoar a destruição e a morte.

Os militares emprestam colorido e aprendem, sempre mais, a aperfeiçoar as alianças com as empresas, construindo o complexo industrial [fl.3] militar denunciado por uma homem que conhecia de perto, o problema: o General Dwight Eisenhower, que se referiu a esse fenômeno em seu último discurso como presidente dos Estados Unidos.

2.3. Sociedades pós-industriais?

Há quem se refira aos grandes centros econômicos como sociedades “post-industrial” à sociedade de consumo, baseada no desperdício de matéria-prima, com sustentação em indústrias como a automobilística, a indústria bélica, a fabricação de “gadgets” de rápido desgaste?

Não será a tremenda automatização das indústrias – conservando os melhores, e mais dóceis, técnicos e operários – que reduz o mercado de trabalho e, ao mesmo tempo, estimula a desmesurada ampliação da área de “serviços”, muitas vezes supérfluos?

Será que as grandes Empresas, altamente automatizadas, não estão reservando para si o lucro e atirando sobre os Governos, isto é, sobre os contribuintes de impostos, o ônus desse tipo de sistema?

O fato é que as Macro-Empresas, multi-nacionais andam fazendo ensaios para além da produção bélica, automobilística e outras – estender sua atuação a novas áreas capazes de alimentar sua fome insaciável de lucros, sua necessidade de ampliar os capitais acumulados à custa da miséria da maioria da Humanidade.

As Macro-Empresas, multi-nacionais, procuram se lançar, agora, a trabalhos ciclópicos, altamente rentáveis, que importariam na reconstrução de velhas cidades em a construção deum Mundo que ainda/ melhor atenda a seus interesses materiais: habitações, escolas, hospitais, transportes, meios de comunicação social, tudo em escala gigantesca, pois a megalópoles é um fenômeno do século.

2.4.Lucros, acima da Pessoa Humana?

Quando olhamos os Países em seu conjunto, o Mundo dividido/ em blocos à mercê das Super-Potências, vemos que o egoísmo continua controlando as relações entre os homens.

A desorganização social gera a violência opressora de estruturas econômicas e culturais que levam à miséria e à fome 2/3 da Humanidade, miséria e fome que matam mais, deformam mais do que as guerras mais sangrentas. E tudo isto sob a cobertura da palavra democracia.

As Macro-Empresas, multi-nacionais são disto o maior e mais típico exemplo. Parecem democráticas, porque costumam ter milhares de acionistas: na verdade, até hoje, são pequenos grupos que as controlam.

Parecem multi-nacionais, porque se estendem por dezenas de Países, diversificam-se em produtos variados, utilizam matéria-prima dos diversos Países em que funcionam, captam recursos locais, têm na [fl.4] direção pessoas dos diferentes Países pelos quais se ramificam: na verdade, são controladas por misteriosos pelos de decisão, e se ligam e interligam, de maneiras variadas e hábeis. É impressionante, também, a variedade de manobras que utilizam para enviar o máximo de lucros para os polos de decisão.

Em todas essas manobras e artifícios, meio misteriosos, algo fica bem claro: é pouco, ou nenhum, o interesse pela pessoa humana. Nas operações destinadas a conseguir o máximo de lucro, o custo humano não entra nas considerações.

2.5.Sem justiça, a paz será impossível

Se o egoísmo continua manobrando a política internacional do comércio; se os monopólios de ontem são substituídos pelos habilíssimos oligopólios de hoje, se, dentro dos Países subdesenvolvidos, os Privilegiados locais, aliando-se às Macro-Empresas, multi-nacionais, criam discriminações de renda relevantes, mal encobertas pelo índice ultra equivoco que é o Produto Interno Bruto; se entre Países industrializados e Países fornecedores de matéria-prima e mão-de-obra/barata, a distância aumenta cada ano; se a injustiça domina o Mundo, a paz é impraticável! É isto sem esquecer que não é lenda a existência de fabricantes não só de armas e armas sempre mais mortíferas, mais fabricantes de guerras.

3. Cântico Fúnebre da Paz?

Será, então, que vim aqui entoar o cântico fúnebre da paz? Será que vim emprestar a voz aos pessimistas, que julgam o Mundo sem remédio e o homem sem esperança?

De modo algum. Multiplicam-se em todos os Países – dentre todas as Religiões e de todas as Raças – Minorias dedicadas a ajudar a construção de um mundo mais justo e mais humano.

A Pessoa Humana cuja consciência descobre as causas estruturais do sofrimento do irmão, não mais se deixa isolar na solidão da revolta estéril. Procura quem tenha preocupações semelhantes, se/identifica com outras Pessoas já conscientes. É o início do processo de “conscientização”: descobre o papel do Homem construtor da história, percebe que é possível a humanização do Mundo.

As inteligências da Minorias as leva a encontrar os caminhos mais de acordo com seus talentos e suas possibilidades de ação. A título de ilustração, lembro só um exemplo: há Minorias que adquirem ações de grandes Empresas, participam das assembléias gerias, escrevem aos colegas acionistas, se recusam a se deixar manipular, não permitindo que os lucros das Empresas sejam obtidos ao preço do esmagamento de indivíduos, filhos como nós do Criador e Pai.

É verdade que o resultado da atuação dessas Minorias ainda é modesto. Porque não ampliar esse esforço? Na medida em que as Minorias, sedentas de justiça, provarem à Maioria da Humanidade que a “massa” amorfa pode se transformar em Povo consciente e livre, o jogo mudará.

4. Pacto das Religiões entre si e com o Humanismo Ateu

Nós, os que acreditamos em Deus, levamos séculos nos combatendo mutuamente, apregoando a ilusão de que Deus se prestava ao papel de deixa-se monopolizar por nossa minúscula facção.

Um dia, por muito favor e muito custo, passamos a admitir um ecumenismo sob medida, entre Religiões que nos pareciam mais nobres e menos distantes da nossa. Mas, quando muito, conseguimos um ecumenismo de cúpula, enquanto nossas respectivas bases continuavam a ver, nos outros, a encarnação do Espírito do Mal.

Quanto aos Humanistas Ateus, fechamos os olhos à realidade/ de descobrir, perto de nós, por vezes em nossas próprias famílias, pessoas sinceras que, sem ter a felicidade de crer em Deus, agem de acordo com a própria consciência e, não raro, nos dão lições de amor/ ao próximo, não apenas em palavras, mas em atos.

Em hora tão grave para a Humanidade, por que nós, os que carregamos a responsabilidade de crer em Deus, não nos aliamos? Aliança para que? Aliança, pacto, para pressionar moralmente nossos amigos, nossos parentes, nossos conhecidos, para que tomem consciência de situações de injustiça, não se deixem manipular, reajam contra todo e qualquer esmagamento de seres humanos.

E se trocarmos ecumenismos estreitos por um ecumenismo da dimensão planetária, Deus nos ajudará. Se abrirmos um crédito de confiança a quem amar o ser humano, amando, sem saber, o Criador e Pai, o Senhor se servirá da nossa pequenez e do nosso nada, para fazer maravilhas.

Atingindo milhões de pessoas – que solidárias serão invencíveis – modificaremos os Governos, imprimindo-lhes sentido mais humano; libertaremos os Técnicos que, enfim, poderão utilizar a inteligência e o preparo especializado a serviço da vida e não da Morte; libertaremos os militares, homens como nós, também eles filhos de Deus, porque terá chegado o dia em que: “de suas espadas eles forjarão, relhas e arados e de suas lanças, foices. Um nação não levantará a espada contra outra, e não se arrastarão mais para a guerra.”

Sonho, Utopia? Tanto quanto me seja dado ver, a Revolução/Humanizadora já começou. Revolução que tem como fundamento o amor à verdade e ao próximo. Se o número dos Oprimidos aumenta cada dia, aumenta, também, a todo instantes, o número das Minorias que participam da grande pressão moral libertadora. O que diminui é o volume dos indiferentes, dos mornos.

O Prêmio que me confiais, eu o porei a serviço destes sonhos, destas Utopias. Será uma ajuda para uma nova guerra- sem violência – pela Humanização do Mundo.

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Programa do Dom na Rádio Olinda

sobre peregrinação ecumênica.

Veja por aqui o discurso sobre ecumenismo de Dom Helder em 1967, na formatura da Faculdade de Teologia Metodista.

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