A Faculdade de Direito do Recife remonta ao Curso de Direito criado por Dom Pedro I em Olinda, nos idos de 1827, e desde os seus primeiros anos atuou não apenas como um centro de formação de bacharéis, mas, principalmente, como escola de pensadores nas áreas de filosofia, ciências e letras, conformando a famosa “Escola do Recife”. Essa instituição humanista, que viveu tempos gloriosos sob a influência de Tobias Barreto, Joaquim Nabuco e Castro Alves, compõe hoje a nossa Universidade Federal e guarda o legado de lutas libertárias em Pernambuco, como a da abolição da escravatura.
Mas essa fama foi abalada no último dia 20 de novembro de 2014, justo quando se comemorou no Brasil o Dia da Consciência Negra, porque apareceu degolada no salão nobre da Faculdade uma imagem de Iansã, divindade do candomblé (que recriou em nosso país a religião dos africanos trazidos escravos). A imagem foi doada dias atrás por um movimento de estudantes, Zoada, como símbolo de empoderamento da “mulher guerreira que sempre desperta”, e passou a dividir um aparador com a imagem católica de Nossa Senhora do Bom Conselho, há anos empossada como padroeira da instituição.
Iansã, no panteão das religiões afro-recifenses, é deusa da guerra que comanda os relâmpagos e os ventos fortes e é também rainha dos espíritos, governando o quarto de Igbale, onde vivem os eguns ou espíritos dos mortos. Então, está armado o palco para um verdadeiro embate espiritual, quando menos para um confronto cultural. Pois um outro movimento de estudantes, Ocupe-se, colocou um terceiro símbolo religioso entre as santas do salão nobre, um Papai Noel, que representa a sacralidade dos shoppings modernos, e serviu de desculpa para críticas ao uso de símbolos religiosos em prédios públicos. Certamente podemos discutir se a laicidade exige a ampliação da representação simbólica para todos os grupos interessados ou a retirada de todos os símbolos dos espaços públicos, contudo a pergunta que fica é: e por que a santa católica nunca foi criticada e agredida?
Por causa de desrespeitos como esse às religiões de matriz afro-negro-brasileiras, entre outras, inclusive numa “capital multicultural” como se arroga a capital pernambucana, é que se criou o Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa, na Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil. O professor Gilbraz Aragão, coordenador do nosso Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, faz parte do Comité como membro titular e levou essa e outras questões para discussão na terceira reunião ordinária do órgão em Brasília, de 26 a 28 de novembro. Pois o Comitê, que está tendo o seu regulamento formalmente aprovado, objetiva promover o reconhecimento da diversidade religiosa do país e defender o direito à liberdade de crença e convicção, propor ações e políticas de enfrentamento à intolerância e contribuir com estratégias para fortalecer a laicidade do Estado.
Além da apreciação sobre os casos trazidos pelos membros e recolhidos pelo Disque 100, de Denúncias relativas aos Direitos Humanos, o Comitê avaliou os resultados de um projeto de Oficinas Deliberativas sobre Diversidade Religiosa, apoiado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, que vem experimentando uma metodologia de discussão de problemas e conflitos complexos, como os religiosos, buscando relações mais justas e de respeito mútuo em meio aos paradoxos do pluralismo de nosso tempo. Como recomendações emergentes da primeira rodada de Oficinas, sugeriu-se uma Conferência Nacional sobre Diversidade Religiosa e Direitos Humanos, para construção de um Plano e de uma Rede de atuação; o incremento de Observatórios das Religiões para divulgar informações e análises de fatos de (in)tolerância; e a promoção de aprendizagens transreligiosas na educação básica, com reforma de currículos e formação docente em estudos da religião para o Ensino Religioso.
O Comitê analisou também subsídios para a promoção do respeito à diversidade religiosa, como os livros do SECAD/MEC: “Conhecendo, respeitando e convivendo com a Diversidade Religiosa” (baixe os livros por aqui no formato cdr.); e os programas audiovisuais da EBC, na “Faixa da diversidade religiosa” (veja aqui uma amostra). Além de participar de celebração ecumênica por ocasião do Dia Nacional de Ação de Graças, na catedral de Brasília, o Comitê decidiu manifestar-se sobre uma questão candente para o futuro do diálogo e coexistência entre as religiões e convicções no Brasil, apelando em favor da regulamentação do Ensino Religioso como tradução pedagógica de uma área de conhecimento (das experiências humanas de transcendência), articulada em eixos curriculares de culturas e tradições, textos sagrados e teologias, ritos e ética das tradições espirituais (religiosas e não religiosas).
Voltando ao Recife e à sua imagem negra degolada (reflexo, aliás, da discriminação excludente das próprias pessoas negras e assemelhadas, pelas escolas, polícias e empresas por aí afora), claro que o fato será apurado pelas autoridades competentes e os culpados devem ser punidos, porque se trata de um crime. O direito de criticar dogmas e crenças, de quaisquer tradições, é assegurado como liberdade de expressão pela nossa República; mas atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de crença ou de não ter religião são crimes. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, intolerância religiosa é crime de ódio e fere a dignidade. O crime de discriminação religiosa é inafiançável e imprescritível e a pena prevista é a prisão por um a três anos e multa.
Está provado (veja aqui) que para uma sociedade crescer, mesmo economicamente, o governo deve controlar o proselitismo religioso e regrar o uso de símbolos religiosos em espaços públicos (além de não submeter questões legais, como a educação dos fatos religiosos, a interesses de alguma religião privilegiada). Mas não bastam medidas corretivas: esse fato emblemático, de agressão à cultura negra no areópago dos abolicionistas e no dia de Zumbi dos Palmares, alerta-nos para a necessidade do cultivo de atitudes preventivas, que aprofundem pelo respeito e veneração à alteridade simbólica a inclusão social que ainda começamos a ensaiar. Quem sabe, com uma boa educação básica sobre o fenômeno cultural da religiosidade, as próximas gerações da nossa Faculdade de Direito e de outros cursos, no Recife e alhures, aprendam a lidar mais humana e democraticamente com as outras cores do sagrado, no arco-íris das religiões da gente.
Para saber mais:
Ciências da religião e ensino religioso
Comitê da Diversidade Religiosa
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