Já faz tempo que o presidente dos Estados Unidos vem alertando (veja aqui) para a necessidade das religiões se redefinirem frente ao pluralismo cultural e das pessoas religiosas traduzirem as suas convicções em termos civis ou laicos, em vista do debate político contemporâneo. Agora, a primeira-dama, Michelle Obama, causou polêmica e foi criticada nas redes sociais por não cobrir a cabeça com um véu (veja aqui) durante a visita que realizou neste 27 de janeiro à Arábia Saudita acompanhando o marido, o presidente Barack Obama. Durante a visita, o casal prestou suas condolências à família real saudita pela morte do rei Abdullah. Mas, de acordo com os padrões de conduta para se vestir no reino saudita, mulheres devem usar um véu cobrindo suas cabeças, conhecido como hijab, e mantos negros quando saem às ruas. As mais altas autoridades religiosas muçulmanas já declararam que as vestes que cobrem a totalidade do corpo e da face feminina não derivam de mandamento religioso mas de tradição cultural. Porém, na prática, a teoria às vezes é outra e o véu/burca são impostos, em nome de Deus, para o controle social das mulheres. Era mais ou menos assim em todas as culturas patriarcais/monoteístas e continua assim em alguns lugares. O que Michelle certamente quis provocar foi a discussão de que em âmbitos modernos e democráticos, onde se tenta instaurar transparência e igualdade também dos sexos, as mulheres têm o direito humano de se educar, de se relacionar e de sorrir – mesmo que isso cause a ira dos seus maridos e de alguns dos seus clérigos.
A UNICAP vivenciou nos dias 29 e 30 de janeiro a XXV Semana de Estudos Docentes, que foi organizada por Mesas de Debate socializando as principais pesquisas e atividades realizadas pelos Programas de Pós-graduação da Universidade. A primeira Mesa foi sobre “Laicidade, religiões e direitos humanos” e contou com a comunicação do professor Gilbraz Aragão, do Programa de Ciências da Religião, tendo como debatedor o professor João Paulo Allain Teixeira, coordenador do Mestrado em Direito. Depois de um vídeo produzido pela ONG Humanrights.com, que situa o direito à religião na história dos outros direitos universais, o professor Gilbraz começou evocando esse recente episódio de exercício da laicidade protagonizado por Michelle Obama, e lembrou que o direito de criticar dogmas e crenças, de quaisquer tradições religiosas ou convicções filosóficas, é assegurado como liberdade de expressão também pela nossa República e pelas democracias modernas, mas atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de crença ou de não ter religião são crimes inafiançáveis e imprescritíveis, até no Brasil. O desafio é encontrar, em cada contexto cultural, a justa medida entre a liberdade de exprimir pensamento e o respeito pelo que os grupos humanos consideram sagrado. Felizmente, com a colaboração de espaços acadêmicos onde as pessoas podem tomar consciência da relatividade histórica das suas experiências absolutas do sagrado, tem crescido, junto com episódios violentos de intolerância, também o diálogo inter-religioso e intercultural. Os membros das diversas religiões têm percebido cada vez mais que os elementos que os unem são mais importantes do que os que os separam, que a revelação que uma religião descobriu foi por causa das outras e para as outras.
Gilbraz argumentou que, hoje, sabemos que a sobrevivência da espécie humana depende da sabedoria e da boa vontade de todos nós. Assim, em vez de procurar seu interesse próprio e defender a qualquer custo suas particularidades, as pessoas descobrem a responsabilidade de seu serviço à humanidade e ao meio ambiente que nos é comum. As religiões não podem ignorar as aspirações legítimas da consciência em matéria do verdadeiramente humano e elas devem estar prontas a reinterpretar suas tradições. Mas, ao mesmo tempo, as éticas mais racionais não podem negligenciar as lições de sabedoria sobre a vida de que as tradições religiosas foram sempre portadoras. Afinal, a laicidade denota uma posição de neutralidade e isenção filosófica e política perante a religião, que se traduz em respeito por todos os credos e inclusive pela ausência deles. Ademais, com a física quântica emerge novo modelo de ciência, uma nova lógica de conhecimento que aponta para a coexistência entre contraditórios mutuamente exclusivos e, com isso, podemos compreender mais amplamente a realidade, superando o princípio de identidade e contradição pelo de complexidade, percebendo que, em outros níveis da realidade, verdades contrapostas podem se explicar ou conviver – e ateus e religiosos e crentes antagônicos podem se religar em uma fé que se faz ato e permite o acesso ao verdadeiro “sagrado”, que está entre e para além das religiões e cuja mística remete ao mistério de todas as coisas e não apenas das consideradas religiosas.
As religiões, quando bem entendidas, fazem variações pedagógicas para uma experiência de descentramento e busca de religação com a transcendência, o que ajuda na formação de pessoas e comunidades saudáveis. Mas o que podemos fazer, então, no sentido de terapeutizar as religiões por aí e ajudar para que elas eduquem em mutirão os novos cidadãos? Gilbraz lembrou que estamos ligados ao Programa de Ciências da Religião da UNICAP, que já está formando a sua décima turma de Mestrado e começando a sua primeira de Doutorado, além de colaborar na criação de uma Licenciatura em Ciências da Religião, na modalidade EAD, para professores de Ensino Religioso. Conosco já estudaram de bispo católico a bruxa da wicca, mães-de-santo e pastores protestantes, padres e professores de diversas artes. Com os estudantes mais interessados em questões inter-religiosas nesses cursos, organizamos o Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife: um espaço que começa pela internet, desdobra-se em grupo de estudo, fórum inter-religioso e projetos de pesquisa, visitas guiadas a centros espirituais e colaboração em congressos de estudos da religião, com o objetivo de analisar os fatos relacionados aos encontros e desencontros entre as crenças, procurando traduzir os fatos religiosos civilmente e mediar conflitos de fé, promover o respeito à laicidade e o diálogo inter-religioso, além de combater a intolerância.
Gilbraz concluiu dando exemplo de como o Brasil está avançando culturalmente para a convivência laica e plural com a religiosidade: a TV Brasil estreou novas séries que tratam da diversidade religiosa e favorecem o diálogo entre as espiritualidades. Ao invés de transmitir missas e cultos, a rede de TV pública, instada por organismos como o Comitê de Respeito à Diversidade Religiosa, começou a organizar programas que refletem de modo educativo e crítico sobre todos os ritos e crenças da nossa gente, mostrando e discutindo semelhanças e diferenças entre os diversos caminhos espirituais a partir de temas como vida após a morte, vivência comunitária, prosperidade e riqueza, papel da mulher… E temos orgulho de colaborar com esse novo tempo, mais pluralista, democrático e libertário. O nosso Observatório das Religiões ajudou na concepção e aparece nos programas (veja aqui). As séries são transmitidas nas quartas e quintas às 20h de Brasília (19h no Recife) e reprisadas nas manhãs de domingo, nos canais abertos e assinados da TV Brasil, bem como na WebTV da emissora.
No debate que se seguiu, então, mediado pelo professor João Paulo, um outro exemplo muito discutido, por outro lado, foi o dos terroristas franceses que atacaram a revista Charlie, pelas suas sátiras religiosas: o mundo anda dividido entre os que “são Charlie” (e por isso são associados à “democracia liberal permissiva do Ocidente”) e os que “não são Charlie” (porque respeitam o “fundamentalismo religioso oriental” em sua apaixonada defesa da cultura e do povo árabe/muçulmano, tão oprimidos). Isso parece uma falsa oposição: o “santo” direito de criticar a religião (e assim libertar e transformar as “imagens” de todas as religiosidades) é uma conquista “caricaturadamente” da revolução francesa e da sua laicidade, mas é antes um latente desenvolvimento axial de toda a humanidade em sua compreensão do divino (o que não pode servir para ofuscar a barbárie desumana dos [neo]colonialismos franceses ou de todos os processos históricos de exploração das riquezas do sul do planeta e de dominação da sua gente morena). Ao mesmo tempo, o islamo-fascismo que se traveste de fundamentalismo religioso, com barbas e burcas “caricaturadíssimas” nos “Orientes”, não representa o fundamento do Islã e nem a “primavera” dos povos árabes, mas é reflexo neurótico-alienado (e também opressor e desumano) do fracasso ou fraqueza da verdadeira revolução dos povos empobrecidos na terra, que demandam um socialismo renovado e relações internacionais mais justas… Por aí seguiram as discussões.
Para saber mais:
Em defesa da laicidade
Diversidade religiosa
Geopolítica e religiões
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não tamos avançando pra um país laico, antes pelo contrário, olhaí http://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/eduardo-cunha-entrega-comunicacao-da-camara-para-bancada-evangelica-8413.html?
“… Em vídeo postado na rede social, Daciolo afirma, no Plenário da Câmara, que estaríamos “vivendo uma verdadeira guerra espiritual, que é contra principados e potestades”. Por isso, seria necessário modificar a Constituição. “Nós vamos entrar com essa PEC, e essa PEC diz o seguinte: todo poder não emana do povo, o poder emana de deus, que o exerce de forma direta e também através do povo”, declarou. “Dessa forma, vamos nos tornar uma grande potência. Deus está no controle de todas as coisas, e todos os joelhos se dobram a Jesus”…”
http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/03/deputado-psol-quer-atualizar-constituicao-todo-poder-nao-emana-povo-emana-de-deus/
As religiões brasileiras são capazes de concretizar a cultura democrática ou se utilizam da representação política como meio de estabelecer a intolerância? Vejam iniciativas como a proposta em 2003 pelo então deputado estadual do Rio de Janeiro Edino Fonseca, do Partido Social Cristão (PSC) e filiado à Assembleia de Deus, criando, no âmbito do estado do Rio de Janeiro, o programa de auxílio a pessoas que voluntariamente optarem pela mudança da homossexualidade… Ou a declaração agora em 2015 do presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, referente à possibilidade de votação de projeto que legaliza o aborto no Brasil: “Vai ter que passar por cima do meu cadáver para votar (o projeto)”. O deputado fluminense é evangélico e foi eleito para o cargo com apoio da bancada evangélica… O multiculturalismo a serviço da afirmação de interesses privados no âmbito do Estado não é necessariamente nocivo, contanto que estes interesses não impliquem na perda de direitos de outros grupos também interessados em legislar em causa própria… Mas o fervor e a força das religiões, notadamente as evangélicas no Brasil atual, estão tomando de assalto o Estado para estabelecer uma República talibã! Virgínia Nepomuceno.