FUNDAMENTALISMOS E ESPERANÇAS

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“… O ano de 2015 começou sacudido por vários atentados terroristas, em diversas partes do mundo (embora os de Paris tenham ganhado mais projeção), reivindicados por grupos que se proclamam muçulmanos e pretendem implantar políticas literais do Corão – e isso inquieta as pessoas de boa vontade e os militantes do diálogo inter-religioso. Esses fundamentalismos religiosos passam a impressão de que vamos assistir e nos envolver cada vez mais em um confronto do Oriente islamizado com o Ocidente cristão, quando na verdade expressam muito são as dificuldades culturais na abertura do Oriente Médio e Norte da África, majoritariamente muçulmanos, para a democracia e a emancipação modernas e, sobretudo, um conflito político entre grupos relacionados à mesma fé islâmica.

O “crescente xiita”, que vai do Irã ao Líbano, passando pelo Iraque e pela Síria, é considerado uma ameaça pelas monarquias árabes sunitas, um bloco que vai do Egito à Turquia, passando pela Jordânia, a Arábia Saudita e o Catar. Então, vários lugares onde se ensaiaram modernizações sociais na onda de protestos chamada Primavera Árabe estão mergulhando agora em um “inverno fundamentalista”, porque foram tomados por grupos fascistas revestidos de pretensos fundamentos religiosos e financiados por potências locais (apoiadas principalmente na riqueza do petróleo), que temem o seu enfraquecimento político. O argumento, não destituído de razões, é de que um sinal de fraqueza levaria à invasão e exploração econômica da região por parte das grandes companhias do capitalismo transnacional – sob altos auspícios de potências de tradição imperialista como os EUA e aliados (feito a França).

Por causa dessa trama geopolítica, os majoritários Sunitas (que seguem a liderança tradicional dos califas, colaboradores do profeta Maomé) enfrentam agora Xiitas (partidários de Ali, genro do profeta) em uma luta sangrenta pelo poder, muito embora a maioria dos fiéis dessas duas vertentes queira mesmo é viver em paz e ter uma vida boa e santa com suas famílias. Além disso, a tradição espiritual do Islã é também organizada por grupos liberais Kharijitas e por místicos do Sufismo, que passam longe dessas instrumentalizações sociais da fé muçulmana. Aliás, o termo fundamentalismo vem mesmo é dos protestantes norte-americanos, os quais no começo do século XX criaram um movimento político-teológico para combater os cristãos liberais, que praticam uma interpretação científica da Bíblia e aceitam as causas modernas do feminismo – e do socialismo.

Assim, se hoje o fundamentalismo muçulmano tem decapitado cristãos e os outros muçulmanos, os cristãos fundamentalistas também já mataram um bocado. São variações de um mesmo fenômeno. No caso dos atentados da França, então, como em outros do recente terrorismo internacional, os assassinos não são paladinos da causa árabe e dos autênticos fundamentos do Islã: são assassinos. A proibição de figuras do profeta, que eles reputam como dogma, por exemplo, é um costume cultural que tem mais a ver é com a radicalização da luta iconoclasta dos cristãos ortodoxos russos do que com a tradição original muçulmana. E os críticos que, ademais, satirizam a religião (“c’est interdit d’interdire!”), não são serviçais dos poderes tirânicos da opressão mundial (embora sua causa possa ser capitalizada por estes), mas militantes que procuram fazer avançar o direito humano à liberdade de expressão: uma coisa é você se manifestar sobre o que é sagrado para outrem, outra é destruir o sagrado do outro – ou o outro mesmo, que deve ser o mais sagrado para você! O divino verdadeiro, afinal, está bem além das nossas representações, charges ou imagens, e é sempre amor – e, portanto, humor. Sério é o mal!

Desse modo, o problema não é o Islã, religião que compartilha os mesmos princípios do judeu-cristianismo e que também é mais nossa do que se imagina: o Corão chegou ao Brasil já com os escravos africanos (enquanto muitos dos seus senhores nem sabiam ler) e quem vê hoje uma multidão de recifenses vestindo branco às sextas-feiras precisa saber que se trata dos devotos de Orixalá (sincretismo que começou na África, antepondo Alá como senhor dos orixás e cultuando-o no dia santo dos muçulmanos). O desafio mesmo é, portanto, o fundamentalismo. E as lições desses eventos, alhures, apontam para uma vigilância necessária quanto aos nossos próprios fundamentalismos, pois em certas comunidades e lideranças cristãs tupiniquins exercita-se a leitura literal da Bíblia para se travestir um projeto conservador de dominação político-cultural.

Esses fundamentalismos combatem a imagem transreligiosa da divindade amorosa e os movimentos inter-religiosos em favor da terra, evocam a “lei natural” como interdito à criatividade moral, reprimem o empoderamento cultural pela demonização simbólica das tradições minoritárias, pregam o medo da ciência e prometem curas e acesso ao “céu”. São discursos que hostilizam em especial as telúricas religiões afro-negro-brasileiras e outros “bodes expiatórios” considerados idólatras. Contra eles devemos invocar a laicidade: o Estado brasileiro é laico e pluralista, acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Não é lícito que uma religião imponha à nação seus pontos de vista e não podemos deixar os espaços públicos republicanos ser ostensivamente ocupados e controlados por quaisquer comunitarismos ou igrejas. Uma autoridade pode ter convicções religiosas mas não é por elas, mas pelas leis e pelo espírito democrático que deve governar…”.

Esses são trechos compilados das falas do professor Gilbraz Aragão, coordenador do nosso Observatório, em dois eventos que debateram a temática da esperança para além do fundamentalismo. O primeiro (reproduzido abaixo) foi o Programa Opinião Pernambuco, da TV Universitária, que recebe convidados para discutir questões contemporâneas de cultura e cidadania. Com apresentação de Andreia Rocha, direção de Bráulio Brilhante e produção de Josimar Paraíba e Ricardo Araújo, o Opinião Pernambuco de 24 de fevereiro de 2015 falou sobre o Islamismo: além de Gilbraz, com a presença do professor de antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, Caesar Sobreira. O outro foi o primeiro Humanitas em Diálogo do ano, realizado no auditório do CTCH da Universidade Católica de Pernambuco na noite de 25 de fevereiro, quando o tema abordado foi Direitos Humanos x Fundamentalismo Religioso: uma reflexão à luz dos ataques na França em 2015. Além do nosso coordenador, estava presente o professor Rodrigo Deodato, pesquisador do GAJOP na área de Direitos Humanos com foco em Direito Internacional. Organizando o evento e mediando o debate esteve Carlos Vieira, mestre em Ciências da Religião, colaborador do Instituto Humanitas e membro do Observatório.

Uma coisa que não foi dita no auditório, mas saiu no corredor dessa Universidade dos jesuítas, a propósito da relação de cristãos com muçulmanos, foi a lembrança de que Santo Inácio, recém convertido da cavalaria à vida espiritual cristã, sem saber como enfrentar os questionamentos de um mouro sobre Nossa Senhora, sentiu-se ultrajado e em uma bifurcação da estrada soltou o seu cavalo: se seguisse na direção do muçulmano ele iria matá-lo… Mas o bicho teve o discernimento mais sábio e o santo foi viver como eremita e mendigo, para depois estudar mais e fundar a Companhia de Jesus com os seus colegas da Universidade de Paris. Não é à toa que a mística inaciana busca colaborar com tudo “o que leva a humanidade para frente e para cima” e promover o ecumenismo entre as tradições religiosas que defendem a justiça e a caridade e o mais sincero diálogo com as pessoas que amam a vida e a liberdade. Fica a deixa, para quem não quer simplesmente deixar acontecer o amanhã!

 

 

Para saber mais:

Laicidade, religiões e direitos

Dissertação sobre diálogo cristão-muçulmano

Revista Voices sobre diálogo com Islã

Entrevista sobre Islã e fundamentalismo

Islamismo em Retratos de Fé

Curso Entendendo o Islã

Palestra sobre Mundialização dos fundamentalismos (francês)

Filme satírico do Fundamentalismo religioso (inglês)

Estatísticas do Mundo muçulmano (inglês)

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14 comentários Adicione o seu

  1. Manuela disse:

    No Brasil também temos milícias surgindo com fundamentos religiosos pra todo tipo de propósito: “traficantes de Cristo” que expulsam os terreiros afro das favelas, “gladiadores do altar” mostrando força nas igrejas evangélicas, tropas católicas da TFP pelas ruas…
    http://jornalggn.com.br/noticia/qual-o-objetivo-do-exercito-evangelico

  2. “Surgem questões inquietantes. São atos de violência ‘terrorista’ apenas se são perpetrados por pessoas de origem muçulmana? Por que é dada tanta publicidade (que é, afinal, o que grupos como estes realmente procuram!) às atrocidades cometidas pelo ISIL/ISIS, enquanto atrocidades semelhantes cometidas por regimes pró-ocidentais no mundo árabe e em outros lugares são rotineiramente ignoradas? Apesar da reivindicação prepotente para serem democracias pluralistas e tolerantes, quanto há de engajamento cívico verdadeiro em nações ocidentais entre pessoas com diferentes compromissos de fé, seja ‘religiosa’ ou ‘secular’?” (Vinoth Ramachandra)

  3. Maria de Fátima disse:

    kkk… vocês não sabem o que vem por aí, mas o Pondé sabe: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2015/03/1600018-soumission.shtml

  4. Didier disse:

    Eu fico com a impressão que este país está na iminência de um Golpe de Estado, não dos militares, mas sim do fundamentalismo evangélico. E que a gritante letargia do Governo no enfrentamento desta ameaça, beira a conivência. Ou rendição.
    https://youtu.be/INUg0tg6mlM?t=1h1m59s

  5. Thiago disse:

    … Precisamos sim discutir certas coisas. E uma delas é o novo projeto da Igreja Universal denominado Gladiadores do Altar. Um vídeo de jovens fazendo saudações, gritando palavras de ordem tem dado o que falar na internet. Na explicação de matéria no próprio portal da Universal diz que o projeto faz parte de um programa de formação de novos pastores para dedicar-se exclusivamente a pregar a crença. No entanto vale questionar: em um mundo com histórias tristes como o fascismo do século XX e os grupos extremistas como os do Estado Islâmico de hoje, criar um projeto com esse tipo de simbolismo não é uma afronte ao amor e à tolerância pregadas pelo próprio Jesus? Será que a única forma de tirar jovens da vulnerabilidade social e conectá-los a Deus é criando um “exército”? O bom combate que o apóstolo Paulo de Tarso pregou não seria um combate para melhorar a si mesmo e consequentemente o mundo? Não seria melhor educar o jovem para ser um agente transformador de sua realidade exercendo a tolerância, o respeito e a consciência crítica? São perguntas que podem ser colocadas para o debate. Nosso passado, enquanto humanidade, não nos permite mais ficar calados ou omissos diante de certas questões…

    http://napolitica.com/colunista/31032/

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