Ontem os estudantes do Mestrado em Ciências da Religião da UNICAP, animados pelo cuidado com as causas humanistas que nos unem como educadores, chegaram aonde amarramos a nossa rede encantada de férias, para alertar acerca de uma noticia (veja aqui e aqui) que navega desabusada pela Veneza Brasileira: sobre o projeto de lei 334/2013, de autoria da vereadora irmã (evangélica) Aimée Carvalho (PSB), que tramita na Câmara dos Vereadores do Recife.
O projeto, que até ganhou adesão de setores católicos (muito embora a bíblia católica seja um pouco diferente da evangélica), aguarda posição dos parlamentares em fevereiro e propõe que as bibliotecas de todas as escolas e também instituições de ensino superior estatais e privadas da cidade, além das bibliotecas públicas, sejam obrigadas a ter duas bíblias (uma edição em português de papel normal e outra em braille, a linguagem dos cegos), além de permitir a qualquer empresa e instituição religiosa distribuir exemplares da bíblia nos pátios das escolas e faculdades… O argumento (acompanhe a matéria integralmente por aqui), resumindo, é que, com a disponibilização das bíblias, “a violência diminui e a prosperidade aumenta” (sic)!
De fato, diante da crescente violência juvenil e/ou da dificuldade de socialização de um projeto de civilização, muitos imaginam que os símbolos religiosos facilitam a transmissão de valores e que a escola deva ensiná-los com autoridade, reforçando a identidade moral “majoritária” na comunidade. Mas essa é uma compreensão um tanto retrógrada, haja vista que boa parte da humanidade já (?!) ultrapassou uma visão mágica da espiritualidade (por exemplo, Jesus altera o mundo milagrosamente e atende as minhas preces por prosperidade e riqueza) e também uma visão mítica das coisas (segundo a qual Jesus e até o último apóstolo trouxeram um depósito de informações verdadeiras e eternas sobre tudo – e contra todos os que não têm fé na sua religião). Somente nessas “altitudes” de compreensão espiritual é que faz sentido o proselitismo com o texto sagrado da minha tradição religiosa.
Hoje, todavia, as pessoas mais amadurecidas têm uma crença mais razoável (se sigo a Jesus, posso encontrar uma vida boa, verdadeira e abençoada pelo seu caminho de amor, mas entendo que outros possam igualmente descobrir outras espiritualidades válidas) e até mais pluralista (há algo da consciência de Cristo em todos os seres e culturas, sendo o cristianismo uma de suas interpretações) e inclusive mais integral (a espiritualidade também se verifica na profundidade da observação científica e nas relações intersubjetivas profundas, podendo-se mesmo conceber uma “missa sobre o mundo” para além das místicas explicitamente eclesiais).
Nessa perspectiva hermenêutica mais acurada, aquilo que os cristãos, por exemplo, chamam de revelação, é entendido como verdadeira pedagogia divina: é o Espírito que nos permite interpretar os “sinais dos tempos” e, numa certa altura do esperançoso compromisso prático para com a defesa da vida no mundo, acreditarmos que aquele grito que despertou a nossa práxis de amor fiel é sagrado, ou seja, percebermos que dentro de nossa relação amorosa fala-nos processualmente uma palavra – revelação – diferente, que causa diferença na vida, no sentido de uma qualidade humana mais profunda, de uma existência descentrada do ego. De forma que, mesmo para um cristão, a Palavra de Deus não está presente só nos “livros sagrados”, nem somente na literatura cristã.
Será, então, que melhor do que distribuir o livro sagrado da minha religião, melhor do que converter o mundo à minha doutrina e implantar a minha igreja, não seria ajudar na disponibilização, contextualização e interpretação das mensagens de todas as tradições espirituais, para quem delas necessite em seu processo de educação (e transcendência) humana e humanizante, favorecendo assim a compreensão e a paz entre os povos?!
Além desses argumentos teológicos (já passou o tempo de evangelizar pela construção de igrejas e/ou pela distribuição de bíblias) para se questionar o projeto de lei da nobre vereadora, podemos levantar também argumentos legais. A Constituição do Brasil estabelece em seu Artigo 19 que é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público. Assim, a laicidade estatal demanda tanto a liberdade religiosa, como a igualdade no tratamento conferido pelo Estado às mais diversas religiões e filosofias.
O respeito à liberdade e à diversidade religiosa implicam na aceitação e no reconhecimento do pluralismo espiritual como parte da realidade humana, inclusive para quem não profere religião alguma. O respeito à diversidade exige o aprendizado de superação dos preconceitos, discriminações e intolerâncias, que marcaram a história religiosa do nosso país – onde até dia desses todos deviam se batizar na igreja oficial do Estado, e onde ainda há igrejas pleiteando essa prerrogativa de antanho. A nossa Carta Magna enseja novas atitudes políticas, em que não se coloque o próprio sistema de valores e verdades como parâmetro de conduta para todas as pessoas; em que se deve traduzir, em termos razoáveis e humanos, a pertinência universal das propostas éticas postuladas a partir de uma tradição religiosa ou filosófica.
“A liberdade religiosa não pode ser confundida com liberdade de promoção religiosa em espaços de órgãos públicos e a interferência da religião e seus sistemas de verdade nos atos civis de interesse público, em caráter de justaposição dos interesses privados da religião sobre os interesses do Estado e da sociedade como um todo. A colaboração da religião é aceitável desde que de interesse público e não da promoção de suas convicções em particular” (Brasil, Presidência da República, Secretaria de Direitos Humanos. Diversidade religiosa e Direitos Humanos. Brasília: SDHPR, 2013, pg. 69s).
Então, se os vereadores do Recife querem mesmo ampliar o acesso à informação dos educandos da cidade, para que estes possam escolher valores mais humanos através de textos sagrados, devem incluir muitas outras opções de “bíblias” – até porque a maioria dos livros já está disponível na Internet, para tudo que é computador e tablet/celular, não sendo necessário gastar papel e derrubar árvores ou investir mais recursos financeiros, para tornar o projeto mais sustentável e legal. Os vereadores precisam legislar debaixo das leis do nosso Estado liberal, que defende o pluralismo de culturas e a liberdade de filosofias: precisam usar o dinheiro público em favor de todo o povo e das suas opções espirituais diversas; povo que pode e deve ter ampliado o seu direito de acesso aos livros – mas, no caso, dos textos sagrados de uma lista que pode ir das dez maiores religiões aos dez mil movimentos religiosos do planeta (a maioria já está até acessível, em inglês por aqui e em parte em nossa língua por aqui; mesmo os livros dos povos de tradição oral, que tiveram as suas histórias sagradas compiladas por antropólogos).
Ainda que a gente tomasse como critério apenas as práticas religiosas mais apontadas pelo Censo (veja aqui), a cidade do Recife tem 835 mil católicos e 384 mil evangélicos, mas também 55 mil espíritas e 224 mil pessoas sem religião (além de 11 mil de outras igrejas): se o projeto da irmã não é proselitista e respeita a laicidade, por que não pleiteia a distribuição de literatura espírita e obras sobre as convicções espirituais dos sem religião?! E por que não prioriza a literatura sobre a rica (e invisibilizada) espiritualidade dos primeiros habitantes dessas terras e dos povos aqui escravizados – e cuja memória subsiste nos mais de 1.200 Terreiros de nossa Região Metropolitana?! Aliás, além de politicamente correta, seria atitude bastante cristã a valorização dos sentidos religiosos dos grupos “minoritários” ou relegados ao avesso da nossa história… nem sempre tão cristã, de fato!
É muito simplório defender a distribuição, somente da bíblia cristã, porque foi “o primeiro livro impresso do mundo, logo merece destaque entre os demais (…). Além, claro, de trazer ensinamentos importantíssimos para toda a sociedade…”. Antes da imprensa havia livros, também religiosos, muito importantes, e hoje os livros impressos já estão sendo substituídos pelos digitais. Há religiões mais antigas e que já foram e podem ser maiores do que o cristianismo, e suas escrituras merecem consideração em processos educativos. Os textos sagrados mais antigos vêm do hinduísmo (onde se funda o complexo mitológico de carma-reencarnação), aí incluídas as coleções védicas surgidas a partir do séc. XIV a.C., os ensinamentos e narrativas dos Upanishads e dos Puranas e os grandes épicos Ramayana e o Mahabharata, que contém um dos mais famosos e mais populares escritos religiosos do mundo, o Bhagavad Gita. E o que dizer das Três Cestas do budismo e dos mais de 4 mil livros do cânone taoísta, que começaram a ser escritos no séc. V a.C.? E do Tanakh hebraico e do Alcorão islâmico, que são variações da Bíblia cristã, antes e depois dela? E dos livros das religiões que inspiraram ou atualizam esses monoteísmos (como o Avesta, do zoroastrismo, o Kitáb-i-Aqdas, da Fé Bahá’i, e o Livro de Mórmon, uma das obras-padrão dos Santos dos Últimos Dias)? E das histórias sagradas dos nossos indígenas e afro-brasileiros, consignadas em obras como Mitologia dos Orixás ou até já adaptadas para crianças nO Casamento entre o Céu e a Terra?!
Por fim, apresentamos também argumentos pedagógicos para o questionamento do projeto de lei da distribuição de bíblias: mesmo que se amplie a oferta para os outros textos sagrados, a sua simples disponibilização escolar não é garantia de uma educação mais humana, nem a escola é lugar para socialização de textos religiosos particulares – mas sim para reflexão crítica sobre todos eles. A própria bíblia, lida sem formação hermenêutica, pode levar a interpretações e práticas absurdas e desumanas (veja aqui ou aqui, por exemplo). Ademais, a religiosidade, de uma forma geral, a gente “pega no ar que nem sarampo”, não é um conhecimento racional – embora deva ser razoável – e a iniciação de alguém numa tradição espiritual, portanto, tem o seu espaço propício não na escola, mas nas liturgias da respectiva vivência simbólica.
O que a escola pode e deve fazer é comparar criticamente e interpretar os fatos – também religiosos – nos seus contextos históricos. Assim, religião não se ensina propriamente, mas se pode e deve refletir sobre esse fenômeno na escola. Mesmo porque os sentidos e sentimentos religiosos sempre influenciam as nossas relações humanas, sejam de produção, de parentesco e política, de palavra ou interpretação. De modo que o ensino religioso (veja aqui um panorama das discussões sobre o tema e por aqui um mapa do ensino religioso) tem uma legislação cada vez mais clara (veja aqui) e deve se constituir numa transposição pedagógica dos projetos de pesquisa e dinâmicas de aprendizagem das Ciências da Religião, numa sequência cognitiva e respeitando as características próprias dos educandos em cada série, através de eixos curriculares transdisciplinares e transreligiosos, que combinam o estudo de culturas e sabedorias religiosas e não-religiosas, teologias dos caminhos espirituais, os textos sagrados das religiões, ritos e ethos das tradições de fé. Quer dizer, não adianta apenas distribuir textos, sem uma pedagogia adequada para situá-los e interpretá-los nos seus contextos.
Por trás disso tudo, certamente se esconde o confronto antropológico – e político – entre uma compreensão de cultura simples e homogênea, com instituições hegemônicas, e outra de cultura complexa e policêntrica, onde as instituições – também as religiosas – reorganizam-se em bases liberais, pluralistas e democráticas. No primeiro caso, o professor de cultura religiosa está a serviço da religião majoritária e das suas igrejas; no segundo, serve à comunidade, ampliando a consciência social sobre as experiências e movimentos religiosos.
Acima compartilhamos um exemplo de subsídio pedagógico audiovisual (veja outros subsídios por aqui) que pode ser adequado para a educação religiosa na escola. Muitas vezes precisamos ponderar sobre poderes maiores que regem a vida, quando tentamos entender nossa origem e nossa missão sobre a Terra. Nessa busca, bilhões de pessoas (veja aqui um desenho da paisagem religiosa do mundo) voltaram-se, entre outras opções, mais animistas e politeístas, para o deus que norteia as religiões islâmica, cristã e judaica. Não é possível descobrir o que é esse “Deus”, mas é possível compreender como as culturas foram desenvolvendo essa figura do Criador e elaborando os seus cultos. Então, esse programa do History Channel aborda a percepção de tal presença divina desde os tempos de Abraão e como ela impactou a humanidade, esboçando a imagem de “Deus” que conhecemos mais pelo mundo afora. Embora, na prática, a teoria às vezes seja outra, a perspectiva abraâmica do sagrado é mais histórica e menos cíclica, menos étnica e mais ética – pauta-se por um “julgamento“.
Inspirado principalmente pela estudiosa das religiões Karen Armstrong (autora do livro Uma História de Deus), esse documentário “Deus, a história das religiões”, de 2001, tenta mostrar a trajetória de pelo menos três mil anos do monoteísmo em um hora e meia. O programa reúne entrevistas com representantes de várias tradições para discutir o papel que o divino desempenha em suas vidas. Apresentando essas práticas religiosas desde vários pontos históricos e geográficos, considera as muitas maneiras como as “culturas do livro” situam a ideia de um deus único. Cientistas da religião também opinam no documentário, mostrando como o cristianismo, o islamismo e o judaísmo, enquanto movimentos espirituais, têm afetado e moldado um ao outro, ao ponto de que a revelação que uma tradição descobre é por causa das outras – e para as outras. Não é uma história geral das religiões, mas já ajuda a entender como essas religiões mais novas da humanidade se tornaram as maiores do universo. Acreditamos que subsídios nessa linha, histórica e hermenêutica, junto com professores concursados e formados em Ciências da Religião, é que precisam ser disponibilizados, por primeiro, nas escolas do Recife – e, junto com eles, aí sim, os links para os principais ou mais significativos textos religiosos da gente.
Gilbraz.
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