O irmão Marcelo Barros é um monge excêntrico que, seguindo Dom Helder (de quem foi secretário), tornou-se assessor de comunidades de base e de movimentos populares, em favor do direito a uma fé esclarecida e engajada, em defesa da causa do ecumenismo e do diálogo. Dos sessenta e tantos livros que ele publicou, a maioria trata de espiritualidade ecumênica e relação entre religiões e culturas, motivo pelo qual é um companheiro que anima o nosso Observatório das Religiões na UNICAP. O Grupo Emaús, do qual Marcelo faz parte, é um coletivo de intelectuais e militantes cristãos formado na década de 1970, com a finalidade de subsidiar movimentos sociais. Na ocasião, o grupo reuniu alguns dos nomes mais conhecidos da Teologia da Libertação e, desde então, permanece como um dos principais espaços de sociabilidade, também ecumênica, dos cristãos progressistas.
Como Marcelo está completando 80 anos, o Grupo veio se reunir no Recife, de 22 a 24 de novembro, e foi recebido por estudiosos dos Pogramas de Pós-graduação em Teologia e em Ciências da Religião da Universidade Católica, na tarde da sexta, para uma conversa sobre “As Teologias da Libertação, seus temas e métodos: de onde vêm e para onde vão”. O encontro, que homenageou Marcelo Barros, foi abrilhantado com canções do artista/professor Silvério Pessoa e do percussionista Luca Teixeira, e contou com a participção do Reitor, padre Pedro Rubens, e dos Pró-reitores de Graduação e Pós, Degislando Nóbrega e Valdenice Raimundo. Gilbraz Aragão, coordenador do Observatório, escreveu uma síntese sobre o tema da conversa, que publicamos a seguir (com fotos de Dell Souza)…
O pensamento cristão contemporâneo na América Latina tematiza as relações entre fé e práxis, fazendo teologia portanto, conforme três ou quatro modelos: eles respondem aos desafios da libertação econômica, do respeito à sabedoria popular, da inculturação no mundo moderno e urbano e, por fim, do diálogo com o pluralismo cultural e religioso. As correntes que se formam em torno a esses problemas levantados pela nossa vida cristã indicam uma característica comum às nossas teologias: o ponto de partida é sempre a comunidade, e mais concretamente as comunidades cristãs de base, a vida do povo crente e empobrecido que está ensaiando a Igreja dos Pobres como modelo de cristianismo. Essa mediação histórica possibilita redescobrir o Deus dos pobres e uma espiritualidade, pessoal e comunitária, que move todo método teológico, apoiando-se sobre dois pés: o da experiência (seu “desde onde”) e o da transcendência (seu “para onde”).
Subjaz assim a todo modelo metodológico entre nós uma concepção de teologia como hermenêutica da fé à luz da realidade e da realidade à luz da fé. Num primeiro momento, provocado pela temática da libertação econômica, a fé cristã foi interpelada pela irrupção da consciência de empobrecimento no continente, devido à sua inserção na periferia do sistema capitalista. A resposta a esse questionamento ético e práxis libertadora foi, no nível da vida, a opção pelos pobres e pela libertação humana integral e, no nível teórico, uma reflexão crítica do ideológico opressor, presente também na religião e na teologia. Essas reflexões surgiram para tematizar e guiar os engajamentos de resistência social nos conselhos de moradores e clubes de mães, grupos de políticas públicas e de jovens produtores, grupos de estudo da história e coletivos para participação popular.
Aos poucos, porém, foi-se chegando a uma reflexão não apenas preocupada com os pobres, mas a partir deles. A partir da alteridade humana do pobre, exterior à estruturação opressiva porque a transcende eticamente, foram questionadas não só as ideologias justificadoras dela, mas também a racionalidade centrada na relação sujeito-objeto e, em última análise, na mesmidade do sujeito. Surgiu tanto uma ética como uma metafísica da alteridade, desenvolvendo a lógica analética, que se move a partir da positividade exterior do oprimido. Não se trata apenas de negar dialética e utopicamente a negação dos outros no sistema, mas, em primeiro lugar, da afirmação analética do outro real. Ana (do grego) quer dizer um “mais além” do horizonte do sistema, “mais além” ou transcendental “ao que existe”. E o mistério da realidade, Grande Outro anterior e para além do que “está aí”, tem sua face de “carne”, ou seja, histórica, política, erótica: trata-se, pois, de compromisso com a palavra viva das crianças desprezadas, dos pobres explorados, devotos populares, raças e culturas discriminadas, de mulheres e lgbts violentados, em função do mundo novo pelo qual eles clamam.
Aparece então o segundo caso metodológico, provocado pela temática da sabedoria popular. Esta, embora deva passar pela crítica e pelo discernimento entre a autêntica sabedoria e a ideologia introjetada, pertence todavia à alteridade ético-religiosa radical, que se manifesta (e se subtrai) nos símbolos e relatos do povo. Assim, a práxis da libertação integral se fez mais inculturada e enraizada na história latino-americana, aceitando o povo como sujeito histórico, junto ao qual o teólogo passa a ter função secundária, mas orgânica e importante, de índole hermenêutica. Essa valorização do imaginário das culturas populares e do protagonismo do povo, em aliança com grupos de folguedo e associações de resgate da memória afro-indígena, levaram a expressões teológicas mais brincantes e poéticas, à integração dos saberes tradicionais e das narrativas do povo nas reflexões científicas mais elaboradas.
Referindo-se ao papel educativo das Igrejas, dentro da sua obra Ação cultural para a liberdade (Paz e Terra, 1981), Paulo Freire apontou a necessidade dos agentes eclesiais morrerem como elitistas para renascerem como revolucionários, por mais humilde que seja sua tarefa: “Isso implica na renúncia de seus mitos, tão caros a eles. O mito de sua superioridade, o mito de sua pureza de alma, o mito de suas virtudes, o mito de seu saber, o mito de que sua tarefa é salvar os pobres. O mito da inferioridade do povo, o mito de sua impureza, não só espiritual, mas física, o mito de sua ignorância absoluta” (p. 107).
Escutando a realidade através da experiência popular cotidiana e das ciências não apenas sociais mas também antropológicas e psicológicas, a teologia adquire nova força para compreender a experiência da religião vivida, o dado da fé curtida existencial e comunitriamente, e este, por seu turno, uma relevância muito maior para os problemas humanos do povo. E se antes a interpretação do dado da fé nascia diretamente da suspeita ideológica sobre sua apresentação tradicional, agora nasce da ressonância que a experiência do povo sofrido, a sabedoria do sofrer e gozar do povo pobre, tem sobre o dado da fé.
Assim, surge o terceiro grande caso metodológico, provocado pela temática da “lógica da gratuidade”. É certo que os últimos anos foram marcados por crescente democracia política entre nós, mas não nos lograram o desenvolvimento social e a libertação econômica que desejávamos. Pelo contrário até, aumentou a distância entre classes e nações ricas e pobres, sob o peso da ideologia neoliberal. Isso a um tempo em que se consolida a crítica cultural à razão moderna da subjetividade. Os movimentos populares passam por uma crise profunda e estão se reinventando, aprofundando e ampliando as suas lutas, em todo o continente.
Por outro lado, surgem entre os pobres latino-americanos grupos que ensaiam uma racionalidade nova: a união entre solidariedade e iniciativa pessoal, gratuidade e eficácia, sapiencialidade local e universalidade humana. Trata-se do que vinha se desenvolvendo nas comunidades cristãs e outros grupos religiosos de base, nas organizações populares nos bairros e oficinas, dos movimentos livres que lutam pelos direitos das crianças e mulheres, negros e indígenas, nas cooperativas autogestionárias de trabalhadores surgidas da economia informal. Não se trata, agora, de um movimento de mão única, inculturação da fé cristã para ajudar na emancipação das culturas dos outros, mas de uma trajetória de mão dupla, de tradução e diálogo intercultural com a diversidade dos grupos (e espiritualidades) que povoam hoje as grandes cidades da América Latina.
A fé cristã encontra nesses fatos sinais dos tempos: uma práxis histórica nascida do amor gratuito com os pobres e os outros. Estes sinais desafiam a teologia, então, para que transforme as distintas formas da racionalidade moderna de que faz uso junto com as ciências, a partir dessa “lógica da gratuidade”. Depois, desafiam-na também, mais praticamente, para conseguir que a incipiente eficácia de tal lógica não se dê só nas relações microssociais, mas também se expanda no espaço macrossocial. Está surgindo assim uma teologia mais holística, síntese quase dos outros casos metodológicos, preocupada com o desenvolvimento de uma democracia amplamente participativa, também na religião e na Igreja; de um envolvimento ecumênico e ecológico junto com os movimentos pela justiça socioambiental.
Ultimamente, o nosso cristianismo progressista vem unindo a libertação religiosa à libertação sociocultural, como vem assumindo em suas opiniões teológicas o desafio do pluralismo religioso e do diálogo entre as religiões, sobretudo na defesa ecológica da Casa Comum. Aonde esse caminho irá conduzir ainda não se sabe, mas é possível pensar que levará ao nascimento de uma teologia nova, inclusive uma teologia pós-religiões que vá além não de uma religião, mas das religiões enquanto tais, como configuração sócio histórica humana congruente com o período agrário da humanidade, que vai sendo progressivamente substituído pela sociedade do conhecimento. Uma teologia sem dogmas nem doutrinas, uma teologia laica e fundada na experiência, libertada do serviço a uma religião enquanto instituição hierarquicamente sagrada com o seu sistema de crenças e ritos, centrada em uma espiritualidade transreligiosa.
Os tempos nos enviam sinais que exigem abertura para novos horizontes, nos quais havemos de erguer altares de respeito e veneração, em parceria com os coletivos ecofeministas, com os movimentos de descolonização, com as juventudes ecumênicas e os buscadores de antigas e novas espiritualidade. Pois onde menos se esperava, temos agora a possibilidade de encontrar a dimensão do Absoluto no próprio âmago da relatividade, uma pluralidade de absolutos! Porque hoje se pode considerar a complexidade da realidade e da verdade, exorcizando o princípio soberano da identidade, acolhendo o paradoxo para além do princípio de não-contradição e, sobretudo, servindo o outro e incluindo terna e ternariamente o diferente, em outros níveis de vida. Estamos às voltas com uma nova configuração da dimensão religiosa da vida, em meio a uma formatação nova da compreensão de ciência e de conhecimento, que apontam para uma lógica de complexidade, transdisciplinar – e transreligiosa.