CONVIVÊNCIA DAS RELIGIÕES

A despeito da fama de povo multicultural e cordial, nós brasileiros ainda precisamos aperfeiçoar muito a percepção da sadia convivência entre fé e razão, precisamos aprofundar o ensaio democrático de coexistência das tradições filosófico-religiosas em nossa sociedade sempre mais pluralista. O crescente pluralismo religioso em nossa cultura e a convivência plural das tradições espirituais no espaço público nacional constituem um desafio não somente para as legislações do Estado e para a ética e a etiqueta da nossa convivência civilizada, mas também para as teologias de todas as religiões e igrejas. A cada dia a gente se surpreende com novas notícias que dizem respeito à convivência das religiões entre nós – ou à falta dessa atitude e prática!

Notícia 1: De Belém (PA) chegou a informação de que evangélicos prepararam café e abrigo para os devotos na festa de Nossa Senhora (veja aqui) no Círio de Nazaré. Mas não foi apenas isso: “Em nome da luta para garantir e aprofundar seus espaços de influência religiosa e política, representantes das Igrejas Pentecostais e das Igrejas Cristãs históricas (Católica Romana, Anglicana e outras), tomaram a iniciativa de fazer uma aliança estratégica com base em ações ecumênicas concretas. O primeiro exemplo prático dessa nova fase do Cristianismo no país foi dado no durante a festa do Círio de Nazaré, a mais popular manifestação religiosa do Brasil. A Assembleia de Deus (que é a maior Igreja Pentecostal do país, com cerca de 15 milhões de membros) colocou à disposição da Arquidiocese Católica de Belém todo o seu serviço médico, além de 100 voluntários que ajudaram a manter organizada a multidão reunida pelo Círio. Por sua vez, a Igreja Anglicana também participou dessa manifestação religiosa e calcula que foram aproximadamente 20% os evangélicos que se integraram às procissões em homenagem a Nossa Senhora de Nazaré…” (continue lendo a análise por aqui).

Notícia 2: Em Igarassu (PE), Cosme e Damião, santos que são padroeiros e até “vereadores” da cidade, unindo católicos e seguidores das religiões afro-brasileiras (onde misturam-se sincreticamente com a divindade gêmea Ibeji), estão vendo a sua festa ser demonizada por seguidores de igrejas evangélicas, que “substituem” os tradicionais doces da festa por outros “abençoados por Jesus” – e não “possuídos pelos Encostos”. A notícia foi trazida pela pesquisa do doutorado em Ciências da Religião para a UFJF de Júlio César (veja um artigo seu poraqui e comunicação pra gente aqui), através de quem descobrimos que o problema é recorrente, também noutras latitudes. A TV da Igreja Universal apresentou “reportagem” sobre o “malefício das balas consagradas aos encostos” (veja aqui) e não é a única: “Um grupo de evangélicos está tirando doce de criança com uma mão para dar com a outra. A troca acontece em pleno Dia de São Cosme e São Damião, comemorado em 27 de setembro na cultura popular. E dentro da igreja Projeto Vida Nova, na Vila da Penha, onde os pastores convidam mil meninas e meninos a entregar-lhes os saquinhos que conseguiram na rua para receber outros, abençoados por Deus. É apenas um convite. Só entrega os doces quem quer. Geralmente, os saquinhos são queimados, representando o fim de todo o mal que, porventura, foi direcionado às crianças – avisa o pastor Isael Teixeira. Ele conta que geleia, pipoca doce, bananada e pirulito chegam às mãos de oito a dez mil crianças, nos 70 templos da unidade, ao lado de uma surpresa: a bíblia. É para comer orando…” (leia mais por aqui). Alguns grupos evangélicos têm ocupado festas religiosas de outras tradições e utilizado os seus símbolos com significados trocados, para efeito de conversão (como também foi o caso aqui, na Festa do Canindé).

Notícia 3: No encontro da ABHR na USP em São Paulo (SP), a Bola de Neve, igreja evangélica liderada por um pastor surfista que usa pranchas como púlpito, impediu o lançamento de livro, resultado de dissertação acadêmica que analisa criticamente as estratégias mercadológicas da igreja, e tentou barrar na Justiça esse livro, “A Grande Onda Vai te Pegar – Marketing, Espetáculo e Ciberespaço na Bola de Neve Church”: “Eduardo Meinberg Maranhão, 40 anos, o Du, foi fiel da igreja entre 2005 e 2006. Já ex-‘bolado’, defendeu em 2010 uma dissertação de mestrado em história, na Universidade do Estado de Santa Catarina, sobre a instituição. O trabalho acadêmico virou livro, que logo virou dor de cabeça para seu autor. No último 30 de outubro, durante o lançamento da obra na USP, Du foi interpelado por um advogado da Bola. ‘Ele tentou me persuadir, dizendo que eu teria problemas caso lançasse o livro’…” (leia a notícia por aqui). Segundo advogada da igreja o livro usa indevidamente “a marca” da instituição, mas para o juiz do caso “o trabalho é acadêmico, e a igreja, apesar de ser pessoa jurídica de direito privado, congrega interesses públicos”. Seria uma tentativa de retomar civilmente a inquisição, agora para defender sagrados interesses de marcas e negócios?! (aliás, pense mais sobre religião e economia por aqui).

Essas informações bastam pra gente perceber a importância dos estudos da religião para o nosso país. Nossos filhos precisam de uma educação que ajude a comparar criticamente e a interpretar o sentido dos fatos – também religiosos – nos seus contextos históricos. Nosso espaço público necessita, cada vez mais, de hermeneutas e mediadores dos conflitos que decorrem do pluralismo religioso e cultural. Na primeira notícia a gente se alegra com certo ecumenismo, ainda que pragmático, mas na segunda deplora o anacronismo belicoso da conversão tradicional e, na terceira, fica espantado com a falta de diálogo religioso com a ciência moderna. Quem não quiser ouvir os conselhos do cantor (“O nome de Deus pode ser Oxalá, Jeová, Tupã, Jesus, Maomé (…) e tantos mais. Sons diferentes, sim, para sonhos iguais”, como diz Gilberto Gil em Guerra Santa), deveria analisar ao menos a ciência do doutor: Peter Berger verifica que as burocracias religiosas, a despeito das suas tradições diferenciadas, têm produzido um tipo sociopsicológico de lideranças muito semelhante. É ativista e pragmático, alheio a qualquer reflexão administrativamente irrelevante, hábil em relações interpessoais, dinâmico e conservador ao mesmo tempo. (É tanto, que cada vez que o padre Marcelo Rossi aparece na TV lá de casa, cantando “Ergueeei as mãos e daaai glória a Deus”, a nossa empregada, que é pentecostal, corre alvoroçada e reverente e animada para a sala).

Os indivíduos que se conformam a esse tipo, nas diferentes instituições religiosas modernas, falam a mesma língua e deixam de ver os rivais religiosos como “o inimigo”: são companheiros com problemas semelhantes. Aí assentam-se as bases dos acordos mútuos, do ecumenismo “amplo, geral e irrestrito” que corresponde à modernidade pluralista: “… A livre competição entre as diferentes agências de mercado, sem nenhuma restrição imposta de fora ou com a qual as próprias agências concordem, torna-se irracional até o ponto em que o custo dessa competição começa a comprometer os ganhos a serem obtidos dela. Esse custo pode, em primeiro lugar, ser político ou de ‘prestígio público’. Assim, pode ser mais fácil obter favores de um governo neutro se as diferentes Igrejas agirem em conjunto do que se elas tentarem uma concorrência desleal. Também uma competição muito selvagem pela adesão do consumidor pode ser autodestrutiva, na medida em que pode ter o efeito de afastar em conjunto várias classes de ‘fregueses’ potenciais do mercado religioso. Mas, uma competição sem entraves também tende a se tornar irracional, isto é, muito cara, em termos puramente econômicos” (Berger P. O dossel sagrado. Paulinas, 1985: 153).

Para Berger, portanto, é muito provável que algo como o atual movimento ecumênico e de diálogo religioso surgisse da situação pluralista, mesmo que não ocorressem os desenvolvimentos teológicos específicos, que se usam para legitimá-lo. E mais, a situação pluralista moderna impõe a dinâmica da preferência do consumidor na reorientação dos conteúdos religiosos, o que explicaria a prevalência das “questões subjetivas” sobre as sociais, nos novos movimentos religiosos – inclusive católicos -, e até mesmo a “era do laicato”, enquanto valorização dos consumidores religiosos por parte das Igrejas mais atualizadas. Será [meu Deus!?] que a “valorização do leigo” em nossas Igrejas e a sua abertura para, através do “diálogo ecumênico e inter-religioso”, somar forças no “serviço ao mundo” – quer dizer, os pontos da pauta exata de uma eclesiogênese libertadora, que a muitos de nós seduz – são então processos determinados pelos mecanismos da situação de mercado?! Se for assim, o divino escreve mesmo certo por linhas tortas, serve-se até de satanás – e “bendito seja”, então, o danado do mercado! Alguém, por favor, avise isso aos capitalistas “selvagens” e atrasados das últimas notícias acima, que ainda não perceberam o mercado moderno, como Gil: “Eu até compreendo os salvadores profissionais, sua feira de ilusões. Só que o bom barraqueiro, que quer vender seu peixe em paz, deixa o outro vender limões…”.

 

Gilbraz.

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