Em dezembro passado perdemos a convivência do bispo anglicano Desmond Tutu, amigo de Dom Helder que começou abrindo as igrejas para a organização política do povo negro contra o apartheid na África do Sul e avançou também para a causa da inclusão de mulheres e gays na sociedade e nas religiões (“Prefiro o inferno ao paraíso homofóbico”). Desmond promoveu o ecumenismo amplo (“Deus não é cristão”) e colaborou no desenvolvimento e divulgação da filosofia tradicional africana de Ubuntu: uma pessoa é quem é por causa das outras pessoas, o que implica responsabilidade mútua e compaixão humana.
Dom Tutu mostrou como convicções espirituais de abertura e diálogo podem se transformar em políticas públicas de (re)conciliação com justiça. Invocamos o seu exemplo (“Diante da enorme diversidade religiosa existente no mundo, os cristãos podem se julgar preferidos pela divindade?”) para refletir sobre o Dia de Combate à Intolerância Religiosa, neste 21 de janeiro, quando percebemos um aumento dos casos de intransigência e violência religiosa no Brasil – que se ufana de ser o 2º país mais cristão do mundo, depois dos EUA. Intolerância Religiosa é um termo que descreve a atitude caracterizada pela falta de habilidade ou vontade em reconhecer e respeitar as diferenças ou crenças religiosas dos outros. A nossa Constituição declara que é “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, inc. VI).
Já o Código Penal especifica a punição para a violação da liberdade religiosa: “Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso” é crime (art. 208) com pena de detenção de um mês a um ano, ou multa. E a Intolerância Religiosa é considerada crime de ódio por ferir a liberdade e a dignidade humana: a Lei n. 9.459, de 1997 (art. 20) prevê pena de reclusão de um a três anos e multa para quem “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”
Então, você tenha ou não religião, seja de uma religião majoritária ou minoritária, discriminação religiosa é crime. O direito de criticar dogmas e crenças, de quaisquer tradições espirituais ou convicções filosóficas, é assegurado como liberdade de expressão pela República brasileira; mas atitudes agressivas, ofensas e tratamento diferenciado a alguém em função de alguma crença, ou de não ter religião, são crimes inafiançáveis e imprescritíveis. Comete esse crime quem pratica, induz ou incita a discriminação ou preconceito por motivação espiritual ou religiosa, incluindo pregações que mobilizam os “amoladores de facas” para agressões que daí decorrem.
Na prática, porém, muitas vezes a teoria (e a lei) é outra. Com base na Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos, por exemplo, nos últimos 15 anos foram processadas 271.805 denúncias de Intolerância Religiosa no Brasil, envolvendo 22.643 páginas (URLs) distintas (das quais 18.141 foram removidas) escritas em 9 idiomas e hospedadas em 1.833 domínios diferentes. Todavia a intolerância, e até a violência, que é a sua forma mais grave, não se manifesta só virtualmente em nosso país. As estatísticas foram descontinuadas pelo apagão de dados no governo atual, também sobre os Direitos Humanos, mas através dos jornais se vê que cresce o número de células nazifascistas que perseguem judeus e outros grupos considerados inferiores ou heréticos, bem como aumentam os casos de agressões a mesquitas muçulmanas e fiéis do islamismo.
O drama atinge até celebridades: a cantora Anitta sofreu ataques por ter se assumido candomblecista. Porém, as principais vítimas continuam sendo as comunidades anônimas dos terreiros afroindígenas, de vez que a intolerância entre nós é muito racista e classista: faz parte de um projeto político que demoniza outras divindades, para “desalmar” os índios e então tomar suas terras e para melhor explorar o trabalho dos negros e/ou pobres, despossuídos de seus terreiros nas periferias.
Em Pernambuco, iniciativas de promoção do diálogo e políticas de coexistência multicultural concorrem com a Intolerância Religiosa recrudescente: há casos tramitando na justiça de jornal de Igreja e de perfil na internet atacando muçulmanos, cartazes com apologia ao nazismo circularam em escolas e até na frente da sinagoga do Recife, a nossa comunidade baha’i denuncia perseguição de seus familiares em vários lugares.
No último ano, quatro fatos são exemplares da violência simbólica e efetiva entre nós: em janeiro a Tenda de Umbanda e Caridade Caboclo Flecheiro, em Olinda, sofreu agressão “em nome de Jesus”; em abril os índios Truká, em Cabrobó, reagiram à construção ilegal de igreja na sua aldeia; em agosto tivemos um pastor conclamando a população contra a “feitiçaria na arte da ancestralidade afro” no Túnel da Abolição (foto acima), no Recife; e na semana passada aconteceu a destruição por incêndio do Terreiro das Salinas (foto ao lado), no litoral Sul. Lembrando que um terreiro é espaço sagrado não apenas por abrigar os ritos de deidades ancestrais, mas também por cuidar da alimentação, saúde e educação da família ampliada dos filhos de santo – que perdem, com sua interdição, um abrigo comunitário.
Contudo, aqui e alhures temos lampejos de esperança: neste início de 2022 o papa Francisco gravou mensagem pedindo às pessoas de boa vontade para rezar e trabalhar contra a discriminação e a perseguição religiosa. Segundo o papa, a liberdade religiosa não se limita à liberdade de culto, mas está ligada à fraternidade: somos convidados a valorizar as diferenças do outro e a reconhecer, antes de tudo, a dignidade que cada um tem como ser humano. Por sua vez, procurando dar o exemplo, o Conselho Nacional de Justiça do Brasil instituiu no último dia 7 a Política Nacional de Promoção à Liberdade Religiosa e Combate à Intolerância no âmbito do Poder Judiciário, com o objetivo de garantir a liberdade religiosa no ambiente institucional, bem como adotar ações de incentivo à tolerância e ao pluralismo religioso entre servidores, colaboradores e público externo.
Além disso, Pernambuco está se preparando para enfrentar melhor a Intolerância Religiosa: agora em janeiro a Assembleia Legislativa aprova a Lei 17.685, cuja meta é proteger e garantir o direito à liberdade de crença, pensamento, discurso, culto e de orientação religiosa. A lei aponta como discriminatórios os seguintes atos: distinção, exclusão, restrição ou preferência estatal fundada em religião ou crença específica, sintetizando e atualizando, assim, a nossa legislação e proibindo a prática ou indução, por meios de comunicação, de preconceito ou prática de qualquer conduta discriminatória, bem como vetando a criação, comercialização, distribuição ou veiculação de símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propagandas que incitem ou induzam discriminação. Entre outras punições previstas, as multas para intolerância agora vão até R$ 50 mil.
E neste 21 de janeiro, o combate à Intolerância Religiosa no Recife será pauta pela manhã na sessão da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB-PE, em sua sede na Rua do Imperador, e à tarde no ato da Articulação da Caminhada dos Terreiros de Pernambuco, no Monumento Tortura Nunca Mais da Rua da Aurora. À noite, o nosso Diálogos, Fórum da Diversidade Religiosa de Pernambuco vai promover uma live aberta na internet sobre o tema, com participação da comunidade do Terreiro das Salinas. Não basta a medicina corretiva da justiça: precisamos de educação para terapeutizar preventivamente as experiências espirituais.
Devemos cobrar das autoridades punição para os terroristas “religiosos” e reparação aos centros agredidos, como também articular intervenções educativas que promovam o respeito à diversidade. Além disso, precisamos construir empatia e vivenciar diálogos, sobretudo com casas de axé e pessoas de terreiro em nosso entorno. Como disse Desmond Tutu quando visitou Dom Helder, ”Deus pode abraçar a todos. Nós, pessoas, é que colocamos limites para quem Deus pode aceitar”, sugerindo que os homens passem a conviver e aprender com quem professa credos e caminhos místicos diferentes. Contra a intolerãncia (e para além da mera tolerância também), vamos botar Ubuntu em nossa história, por favor!
1 comentário Adicione o seu