O sofrimento pode gerar conhecimento: no Recife temos um histórico de muitos casos de intransigência cultural e religiosa (veja por aqui um apanhado no último Dia de Combate à Intolerância Religiosa) e acabamos de enfrentar mais um atentado à coexistência espiritual: pastor prega contra arte com motivos religiosos afro junto ao Museu da Abolição, afirmando que “abriram um portal em reverência a demônios ancestrais e geracionais“, em claro ato de uma guerra cultural cristofascista. Todavia, Pernambuco segue se orgulhando de promover festas multiculturais e de guardar tradições espirituais sincréticas (veja aqui como é a nossa celebração de São João/Xangô). Então, muitos animadores culturais teimam em tecer uma religiosidade dialogal nas fronteiras identitárias e vários estudiosos orgânicos da espiritualidade na região procuram terapeutizar estranhamentos e promover reconhecimento alterativo, transformando o Recife em um polo de diálogo.
Certamente por isso, o nosso Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife, ancorado na Universidade Católica de Pernambuco, foi contemplado com duas colaborações na última edição da Revista Senso, publicação voltada à temática do senso religioso contemporâneo sob o olhar de múltiplas áreas do saber, tendo como referência as Ciências da Religião, com o intuito de trazer ao público um debate de alto nível e que ajude as pessoas a compreender as diversas formas de crer e não crer e, dessa forma, construir pontes de diálogo, superação de intolerâncias e construção de uma cultura de paz. A edição 22 da revista articula o dossiê “Religião à brasileira“, lembrando que o Brasil é, nuns cantos mais e noutros menos, um país paradoxal: reúne muitos sinais de diversidade e sincretismo religioso, ao mesmo tempo em que é marcado por casos clamorosos de intolerância e exclusão espiritual, sobretudo com um caráter racista e classista (a Praça dos Orixás, por exemplo, sofreu mais uma depredação em Brasília, veja aqui).
Então, trazendo reflexões de vári@s amig@s do nosso Grupo de Pesquisa comum sobre “Espiritualidades, pluralidade e diálogo“, como Rita Grassi e Angélica Tostes, a revista desenvolve uma análise dessas contradições da diversidade religiosa brasileira sob a ótica do “Princípio Pluralista”, trabalhado pelo companheiro Cláudio de Oliveira Ribeiro, e passa a palavra para Mailson Cabral, que apresenta justamente a experiência do nosso Observatório na UNICAP como espaço de construção de uma cultura transdisciplinar para o diálogo. E segue o artigo de Gilbraz Aragão, que, aplicando a transdiciplinaridade ao fato religioso, advoga o conceito de transreligiosidade como interpretação das espiritualidades trânsfugas e do hibridismo religioso que marcam a sociedade brasileira.
“O transreligioso assegura a tradução de uma tradição espiritual para várias outras, decifrando o significado que as une, embora igualmente as ultrapasse. A transreligiosidade, por seu turno, enquanto reflexão sobre esse movimento cultural e espiritual, desenvolve-se a partir da transdisciplinaridade, que é uma modelização de sistemas complexos de pensamento, apoiada em uma metodologia que comporta a compreensão de níveis de realidade e percepção e os integra pela lógica do Terceiro Incluído”, diz o professor Gilbraz, que termina analisando o caso dos devotos católicos de São João que se encontram com candomblecistas que cultuam Xangô nas mesmas e esfuziantes procissões do santo: será possível um diálogo autêntico e não dissimulado entre as comunidades católicas e os terreiros de Xangô no Recife? Abra a edição da Revista por aqui: boa leitura e boa discussão!