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“… Ao falar em teologia não estou pensando em confissões de fé nem em doutrinas mas no sagrado selvagem, no sentimento oceânico, em tudo que vem daquelas camadas profundas do nosso ser que Joseph Campbell chama de zona mitogenética primordial (…), pensando naquela prisca theologia que está no transfundo cultural de todos os povos e de todas as tradições, sejam europeias, orientais, indígenas, africanas. Por que então não pedir a bênção a Zeus e a todos os deuses e deusas do Olimpo, Afrodite nascendo das espumas do mar da Jônia, Atena de olhos verdes protegendo Telêmaco na Odisseia? Por que não pedir a bênção de Javé, Jesus, Shiva, Krishna, Mohamed, Iemanjá, Tupã, Xangô, Oxalá, meu pai? Essa teologia plural aprendeu que Deus muda como o fogo quando misturado com fragrâncias e é nomeado segundo o perfume de cada uma. Teologia como transteologia. Mesmo porque, como explica Krishna a Aryuna, qualquer que seja o nome pelo qual me chamares, sou eu quem responderá. Dizendo de uma vez, não estou pensando em nenhuma teologia encrática que, pretendendo ser o último significado, corre sempre o risco de se transformar em monstro” (TENÓRIO, W. Escritores, gatos e teologia. Cotia: Ateliê Editorial, 2014, p. 36s).
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Começando à tardinha e entrando pela noite do sábado 23 de agosto, vivenciamos uma aula dessa teologia pública e plural que começa a ganhar legitimidade pelo mundo afora. Para corresponder ao conteúdo da hermenêutica nova e aberta das tradições de fé, a forma da aprendizagem teve de ser também renovada: uma visita guiada e animada à Arteplural Galeria, na rua da Moeda do Recife Antigo, onde Roberto van der Ploeg está com a exposição “Pretextos: além do paraíso”.
Roberto Ploeg nasceu na Holanda em 1955 e veio para o Brasil em 1979, por causa de um estudo de mestrado em teologia latino-americana. Desde 1982 reside entre os nordestinos, onde formou família e se tornou assessor das Comunidades de Base. Mas as dificuldades interpostas pelas forças anticonciliares que cresciam no catolicismo o levaram ao caminho da arte, onde procura apresentar de maneira mais pessoal e livre as experiências universais da fé. Como ilustração dessa trajetória, Roberto fundou o “Mandacaru: jornal da tendência democrática e libertadora nas igrejas cristãs do Nordeste”. Bastava esse nome para garantir que a publicação iria enfrentar secas e cercas. Fechado o jornal no terceiro ano, Ploeg como que disse: se não posso escrever, vou pintar.
Por imagens visuais e não mais literárias, no entanto, ele continua a caminhada questionadora. Será que arte e ciência poderiam se combinar? E a religião, em que medida sua teologia pode ter assento nesse banquete dos saberes? O sagrado: é oposto ou uma dimensão do profano? A visita de nosso Grupo de Estudo aos quadros de Roberto, apreciando e discutindo a beleza das pinturas que “recriam” cenas bíblicas e sacralizam a vida compartilhada, aqui e agora, permitiram terapeutizar as vivências religiosas da gente e acolher o paradoxo para além do princípio de não-contradição, desconstruindo assim o monstruoso dualismo que contrapõe o humano ao divino, um saber ao outro. A obra de Roberto relaciona a contemporaneidade aos modelos bíblico-religiosos da nossa cultura, mas é desenhada em cima de metáforas transculturais e informada interdisciplinarmente pelas ciências.
Ploeg não usa cenas religiosas como pretexto para retratar a vida da gente, como muitas vezes se faz no mundo artístico e intelectual, mas pinta quadros do nosso tempo como desculpa para resgatar os sentidos libertários das histórias míticas da bíblia e da tradição. Entre o relativismo e o fundamentalismo que ainda se enfrentam nesta nossa era de crise, ele ativa o círculo hermenêutico de narrativas fundadoras do judeu-cristianismo e oferece uma interpretação em chave ética e humanizante para as figuras religiosas do nosso jeito costumeiro de viver. Com isso, o pintor-teólogo nos ajuda a ensaiar um olhar alterativo, que transcende a lógica de identidades excludentes.
Na linha de uma espiritualidade pós-metafísica que se espraia, até nos trópicos, Ploeg testemunha um divino que se conhece enquanto se realiza entre nós; uma crença no Messias, por exemplo, que significa o exercício de uma vida messiânica, de uma existência cuidadora e criativa – como se anuncia ser a de tudo que é divinamente ungido. E mostra que existe uma diferença radical e exemplar entre o culto ou a religião e a mensagem de Jesus, que não veio fundar uma religião a mais, mas anunciar a possibilidade de se fazer da vida um milagre para a vida dos outros, pelo amor, a partir dos pobres e excluídos deste mundo – o que é uma atitude “mais-do-que-natural”. O Nazareno não nos pede culto e sim memória. Ele encarna, assim, a revelação divina em toda profundidade – embora não o seja em toda a extensão, sempre pluralista, do tempo-espaço.
Essa provocação teológica, aliás, é sugerida magnificamente no quadro Os Cordeiros de Deus, que retoma a pintura belga Agnus Dei, de Jan van Eyck (1432), onde o “Cordeiro” (animal que os hebreus sacrificavam para redimir pecados, e os cristãos relacionam a Jesus) se encontra em altar circundado por tudo que é de santo, clérigo, cavaleiro e rei do mundo. Acima deles está entronizado o Cristo do Juízo Final, com Maria e João, e muitos anjos ladeados por Adão e Eva. Mas no Agni Dei de Roberto o paraíso vai sendo recriado por muitos e diversos “Cordeiros”, em atmosfera natural e vindos da diversidade ecumênica do cosmo. “Cordeiro” aqui é todo aquele que se imola, quebrando a violência cultural do “bode expiatório”, ao sacrificar-se e até morrer de amor como questionamento ao pecado de todo mundo e como fundamento para uma convivência transformada pelo perdão. Porém, essa é apenas uma das vinte e cinco pinturas expostas.
Os quadros na Arteplural foram motivo para uma conversa que continuou pelo café afora, sobre quais são os sentidos que tornam a nossa vida mais saudável. Papo teológico, mas consciente de que toda teologia é uma literatura – ou arte, agora mais amplamente – que encerra muita antropologia, como bem lembra a citação à epígrafe, do nosso conterrâneo Waldecy Tenório, outro teólogo exilado. A exposição faz pensar que já (?!) ultrapassamos o lema “fora da Igreja não há salvação” e passamos pelo “só Cristo salva”, para chegar à proposição inclusiva que pode transformar a saudade do “Jardim do Éden” em uma esperança pra toda gente: o gesto amoroso, que encarne historicamente justiça e gentileza, que exercite o descentramento de si e a comoção com o desejo do outro, traz sempre saúde, salvação – é espiritual e transcendente, mesmo que seja o cuidado com uma florzinha!
Toda “Carne” se vincula e toda matéria esconde o Espírito (outro quadro sugestivo de Roberto é Gênesis ou a origem do mundo, em duas versões como na bíblia, lembrando a sacralidade do erótico que se aninha entre as pernas da mulher, por onde todos somos gerados). Os povos e a terra inteira estamos ligados pela mesma origem em um quase-nada-caótico, de sorte que juntos é que devemos encarar nossa comum missão de salvar a vida, de espiritualizar o mundo, torná-lo mais consciente do – e consequente com o – Espírito, o mistério do processo cósmico, entre a gente. Inconcebível, pois, que um só povo ou religião ou igreja, um só sexo ou “raça” ou classe sejam a luz do mundo. Todos somos luz e treva, em comunitária e mística evolução, pelo carinho e pela misericórdia que religam, em outros níveis, mesmo os contrários… Até o paraíso – e além!
Gilbraz.
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