RELIGIÕES, MIGRAÇÃO E MOBILIDADE

 

Ocorre em Goiânia o VI Congresso da Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião. A ANPTECRE está completando dez anos e consolida uma caminhada firme em sua missão de apoio à pesquisa e à aprendizagem no âmbito dos estudos de religião no país. Depois dos trabalhos de instalação da Associação, coordenados por Edênio Valle, as gestões de Flávio Senra e Wilhelm Wachholz fortaleceram a articulação dos 21 Programas de Pós em Ciências da Religião e Teologia e a sua representatividade junto aos organismos de educação brasileiros, sobretudo ajudando a refinar os seus processos de avaliação. Resultado disso foi o recente reconhecimento da autonomia da nossa área pela CAPES e agora, com o Conselho Diretor formado por Fernanda Lemos, Cláudio Ribeiro e Gilbraz Aragão, empreendemos um importante debate sobre a epistemologia do nosso campo interdisciplinar de conhecimento e buscamos colaborar para a análise crítica do lugar das tradições espirituais no espaço público.

Este Congresso, tão bem preparado pelos colegas da PUC-Goiás, tem justamente por objetivo discutir o impacto das religiões nos processos de migração e mobilidade humana no Brasil e no mundo. No coração das polêmicas contemporâneas, sobretudo suscitadas pelas levas de imigrantes que chegam aos países mais ricos, a questão das migrações transformou-se em um desafio maior, ao ponto de gerar a falsa impressão de que as grandes vagas migratórias são característica, e indesejável, da nossa época. Mas a arqueologia nos informa dos movimentos de populações em larga escala que se sucedem desde a pré-história, com os primeiros hominídeos deixando a África. Espontâneas, pela busca de uma vida melhor, ou sob pressão de fenômenos naturais ou perseguições políticas, as migrações sempre geraram diáspora ou colonização, mestiçagem, integração ou segregação. Enriquecendo esses dados arqueológicos com a história, a genética, geografia, demografia e linguística, podemos aprofundar o exame dos movimentos de população e dos encontros complexos entre os migrantes e as sociedades que eles encontram mundo afora. E se acrescentamos a essa análise os estudos de religião, podemos também lançar uma interpelação ética sobre o necessário cuidado para com os presumidos estrangeiros, com base na regra de ouro compartilhada pelas grandes tradições de fé: faça ao outro o que deseja que ele lhe faça. Afinal, como diz o cancioneiro popular goiano, “somos tudo anjo sem asa, somos todos peregrinos”.

Fenômeno especialmente dramático da mobilidade humana é o tráfico de pessoas, que equivale hoje àquele da era da escravidão. A ONU calcula que de 800 mil a 2 milhões de pessoas sejam vítimas do tráfico anualmente. Segundo a mesma ONU o comércio internacional de pessoas movimenta cerca de 30 bilhões de dólares por ano e 10% dele, ou seja, pelo menos 3 bilhões de dólares, passam pelo Brasil. 70% das pessoas traficadas, vendidas, escravizadas, alugadas ou compradas são mulheres e meninas, algumas com 6 ou 7 anos e até menos. Esta rede global tem milhares de tentáculos e envolve governos negligentes, policiais corruptos, organizações criminosas profissionais, famílias pobres, pessoas em estado de risco e com baixo nível de escolarização. Diante de um mundo cada vez mais turbulento, violento e inacessível aos mais pobres, migrar se tornou uma esperança, uma tentativa desesperada em trocar a morte certa por um futuro duvidoso. Estima-se que pelo menos 23 mil pessoas tenham perdido suas vidas tentando chegar à Europa desde 2000. No Brasil milhares de haitianos e venezuelanos chegam em busca de trabalho, sem falar da migração interna.

Conhecemos bem essa história, pois somos de uma terra de migrantes, o Nordeste do Brasil, onde a seca e sobretudo as cercas tradicionalmente expulsam gerações novas para tentar a vida pelos rincões deste país. Terra de migração é lugar triste, ao ponto do poeta João Cabral nos lembrar que “somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia”. Mas terra de migração, como é também o Centro-oeste que nos acolhe com seu calor cheio de vida, terra de indígenas que tiveram de conviver com bandeirantes, mineradores e fazendeiros, é lugar de sangue novo e criativo, de diversidade e riqueza, a começar pela culinária. Os estudiosos de religião que se encontram em Goiânia de 13 a 15 de setembro, além dos debates transcendentais que travam, têm também outros motivos para estarem aqui: arroz de pequi, empadão com guariroba, arroz de puta rica, leitão pururuca, matula de linguiça, galinhada com cúrcuma, angu de milho verde, pamonhas variadas, bolo dos anjos e doces de Cora Coralina, gelado de laranja, sucos de cajá-manga, murici e araticum. 

Muitos estudantes e professores da UNICAP participam do Congresso. Em meio aos bons debates e comida gostosa, então, eles são parte dos 400 pesquisadores e aprendizes presentes ao evento da ANPTECRE, que estão envolvidos com palestras e mesas-redondas, mas sobretudo em grupos de trabalho, como as sessões do Grupo de Pesquisa sobre “Espiritualidades, pluralidade e diálogo“, do qual o nosso Observatório faz parte. Além do professor Gilbraz, do Observatório Transdisciplinar das Religiões no Recife estão participando das sessões vespertinas do grupo os colegas: Constantino, Cícero, Miri, Franci e Artur. A tônica geral das comunicações científicas é o diálogo inter-religioso e místico deflagrado no envolvimento com os migrantes e sua busca por vida e realização, em uma tentativa de unir o pó dos livros à poeira das estradas, a pesquisa sobre as religiões aos desafios da história. O Congresso está sendo um sucesso e, certamente, vamos voltar de Goiás com o conhecimento de novos sabores, muita sabedoria na mochila e outras paisagens na alma.

 

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