Boletim Unicap

Trabalho do Padre Jacques Trudel é apresentado em vídeo-documentário

Confiram abaixo texto do coordenador do Mestrado em Ciências da Religião da Unicap, Prof. Dr. Gilbraz Aragão, sobre um vídeo-documentário de uma aluna de Jornalismo da Faculdade Maurício de Nassau que enfocou o trabalho de inculturação da liturgia cristã realizado pelo Padre Jacques Trudel, mais conhecido como Padre Jaime, ouvidor da Universidade Católica de Pernambuco.

“Mostrem-me como dança um povo e eu lhes direi se sua civilização está doente ou tem saúde” (Confúcio).
Ouvi dizer que hoje é dia das mulheres negras: muito apropriado pro que vou falar! A gente planta sementes e não sabe direito no que elas vão dar… Dia desses, no curso de Teologia da Unicap, tivemos o prazer de conviver com o sorriso contagiante de uma menina linda e muito quietinha lá da Mustardinha: Angélica Souza. Pois bem, neste mês Angélica apresentou, toda amostrada, como trabalho de conclusão agora do seu curso de Jornalismo na Faculdade Joaquim Nabuco, o vídeo-documentário “Dança, um culto ao Sagrado”, onde resgata, de maneira testemunhal e compartilhada, o trabalho de inculturação da liturgia cristã realizado pelo Pe. Jacques Trudel e companheir@s lá na paróquia dela, na periferia pobre do Recife – todavia uma região rica em religiosidade e cultura afro-pernambucana, com importantes terreiros do nosso candomblé/xangô. O filme, mostrando e problematizando a busca da beleza como redenção de uma comunidade empobrecida, o toque do/no sagrado como re-animação dos corpos alquebrados e reprimidos daquela gente majoritariamente “negra”, poderia invocar, como síntese, a famosa frase de Nietzsche: “Eu somente acreditaria em um Deus que soubesse dançar”!
Até fui convidado pra compor a banca de avaliação do trabalho de Angélica. Não pude estar por causa do Congresso da Soter, mas foi até bom: a nota 10 que ela ganhou não poderá ser questionada por influência de um fã seu! O vídeo de Angélica revela como o pessoal do bairro, louvando o sagrado cristão com os traços da cultura “afrolatíndia”, aprendendo a respeitar e assumir os valores dançantes que correm no “sangue”, conseguiu levantar a sua autoestima de gente e se descobrir amado mesmo por Deus, com seus corpos de negros e sua ginga afrodescendente. O documentário também coloca a deixa da inculturação: uma tradição religiosa consegue se deixar encarnar por um grupo humano quando assume o seu jeito de viver e celebrar, recriando a sua identidade (litúrgica, mas também catequética e ministerial) em diálogo com as outras tradições do grupo, num processo que os estudiosos laicos chamam de sincretismo – e explica como todas as culturas do mundo se desdobram. O cristianismo, que nos chegou tão branco e helenizado (a despeito de um Jesus bailando pelas suas festas judaicas!), pode mesmo se refazer em torno de atabaques e danças “negras”? Quais seriam as semelhanças e diferenças entre uma dança na igreja e outra do terreiro?! São questões que se vislumbram no roteiro.
Além desses méritos antropológico e teológico, o trabalho ainda tem um outro, histórico: lembra que os católicos do Recife precisam recuperar e cuidar (pois é isso, afinal, que pode converter de verdade alguém à fé) a memória de muitos santos missionários que, malgrado seus limites ideológicos e pessoais, procurando seguir o Movimento do Homão da Galileia, aqui fizeram e fazem fermentar o Governo de Deus, como Maurício Parran na pastoral com as putas e domésticas (ou pastoral de promoção da mulher, pra sermos elegantes), Jaime Kometscher na luta com a comunidade de Brasília Teimosa, Lourenço Rosebaugh com os moradores da rua (por causa de quem padeceu da mesma repressão que vitimou o Padre Henrique), René Guerre e os padres operários franceses na espiritualidade popular, Tiago Thorlby no MST, João Geisen dirigindo o seu táxi e animando o Encontro de Irmãos… (Isso “sem contar as crianças e as mulheres” mais da terra – de quem os anais oficiais não guardam nem os sobrenomes – como Lizete, Biluca, Ivone, Ana, Helena, Maria…). Ah, e entre muitos outros, Jacques Trudel.

“Padre Jaime”, como é conhecido e querido na Mustardinha, é jesuíta canadense e doutor em teologia litúrgica pelo Instituto Santo Anselmo (Roma), com a tese “Eucharistie et Vie Sociale”. Talvez já aí tenha descoberto que o lugar mais adequado pra um religioso fazer política – afinal, “tudo é político, mesmo que o político não seja tudo”, como dizia Mounier – é no trato com o simbólico, ajudando a emancipar o núcleo ético-mítico das comunidades, soltando as “asas do desejo” e libertando poeticamente as pessoas – pra engajamentos mais amplos na “pólis”. Com efeito, a desalienação e inculturação dos símbolos religiosos é a marca, militante, da pastoral de Trudel (se uma menina negada e denegada vê as cores e ritmos de sua gente nas imagens e rituais sagrados da comunidade, sai da igreja empoderada pra ser mais altiva e exercitar santidade com toda a largueza do seu nariz – e não pra depender de santas de nariz empinado). Professor em diversas escolas da nossa região, Jaime foi chefe da Teologia e da Pastoral da Unicap, presidente da Associação dos Liturgistas do Brasil, porém tornou-se famoso como vigário da Mustardinha – onde desenvolveu trabalho pioneiro de dança litúrgica e encarnação da missa na cultura morena da gente. Trudel virou até Cidadão do Recife, mas foi afastado da paróquia.

Culturas e manifestações culturais diferentes são consideradas problemáticas quando vistas pela interpretação depauperada de uma tradição religiosa. E a dança, então, é de modo geral uma fronteira delicada para os cristãos. A dança, dizia Platão, “é um dom dos deuses. Ela deve ser consagrada aos deuses que a criaram”. Mas os romanos andaram degradando as artes, a dança inclusive, em seu imperialismo ruinoso. O cristianismo, na sua condenação desse mundo que apodrecia, principalmente com os imperadores ditos cristãos do séc. IV, englobou as artes e danças. Santo Agostinho, já ele, condenava “esta loucura lasciva chamada dança, negócio do diabo”. Isso juntou-se a um dualismo grego que inclusive tinha levado São Paulo a opor o espírito aos sentidos e a desprezar o corpo e as suas expressões. A dança, por essas razões históricas e antropológicas, perdeu sua força no Ocidente cristão e, a partir do século XII, foi banida da liturgia.
Somente no século XX a dança foi se recuperando em nossa cultura (vejam essa história no belo livro Dançar a Vida, de Roger Garaudy, amigo de Dom Helder) e, finalmente, a reforma litúrgica católica, ensejada pelo Concílio Vaticano II (1964), permitiu a consideração dos valores humanos e a reintrodução da dança na liturgia – como incremento simbólico para melhor exprimir a proximidade amorosa e animadora do “Abbá” de Jesus. O problema é que um grupo conservador, que foi derrotado nesse Concílio, agora gostaria de opor novamente a Igreja e o mundo, o espírito e o corpo. Essa trama global criou dificuldades – e expôs a ousada e santa criatividade – da nossa Igreja local.
Então, o que o pessoal viveu na Mustardinha, com Trudel (que tem pé no chão da periferia e cabeça no vento da academia, estudou bem a liturgia de fonte e o rito zairense), foi um laboratório de experiência eclesial e espiritual muito mais ampla e complexa do que eles mesmo imaginam… Fizeram história, no sentido de tornar a Igreja mais capaz de tocar nas pessoas, conforme a sua sensibilidade cultural, e fazer com que elas se sintam tocadas e amadas por Deus em seus corpos e emoções. Não percam, pois, essa experiência: escrevam, filmem, partilhem. Sigam o exemplo dessa teóloga em processo, que testemunhou sua própria busca espiritual com destemor, em primeira pessoa e emprestando a voz a outros protagonistas, em um texto audiovisual que prenuncia logo outros – sobre como a dança vira religião, o profano ganha a qualidade de sagrado!

Virá o tempo em que muita gente vai querer conhecer o trabalho de vocês e respeitar quem é capaz de dizer, como Isadora Duncan, “Agora sou leve, agora eu voo… agora um deus dança em mim”. Tenho muito apreço pelo caso da Mustardinha, em cujo movimento de evangelização aprendi muitas coisas – sobretudo que um que dança com outro soma sempre mais do que dois, pois criam um ponto de equilíbrio, “entre e além”, que lhes permite apoio pra ultrapassar os limites dos seus corpos e se entrecruzar em coreografias e cirandas que nos abrem para outro espaço, de um sagrado encarnado (literalmente!), em que somos sempre mais do que aparentamos. Parabéns a Angélica e que ela mantenha, agora também como jornalista “nota 10”, a dignidade e leveza que toda dançarina sabe ter.

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