Boletim Unicap

Reforma da Previdência: “o Governo não tem coerência quando afirma que a Reforma é necessária para o equilíbrio fiscal e financeiro”

A Reforma da Previdência tem sido alvo de polêmica pelo Brasil afora. A proposta tem dividido a opinião de especialistas e deixado os trabalhadores da iniciativa privada preocupados. O assunto foi tema de debate na Católica proposto pela especialização em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, coordenada pela Profª Drª Rogéria Gladys. O convidado foi o advogado previdenciário Rômulo Saraiva. Ex-aluno dos cursos de Jornalismo e Direito da Unicap, ele concedeu uma entrevista especial para o Boletim Unicap na qual esclareceu alguns pontos.

Boletim Unicap – Um dos pontos mais polêmicos do projeto de Reforma da Previdência é o tempo de contribuição de 49 anos para o trabalhador assegurar 100% do valor do benefício. Na prática, num país como o Brasil, isso é possível?

Rômulo Saraiva – Embora mais de 60% dos benefícios pagos pelo INSS seja apenas no valor de um salário mínimo, a exigência de se trabalhar quase meio século para ter uma renda integral não é razoável para se obter uma velhice com dignidade. A Proposta de Emenda Constitucional 287 (Reforma da Previdência), ao conceber esse prazo elástico, ignora que a expectativa de vida do homem-nordestino é normalmente abaixo dos 65 anos, que trabalhadores braçais não possuem aptidão física para tanto labor, que há preconceito na assinatura de CTPS para quem tem idade acima de 45 anos e que as condições de trabalho no Brasil o colocam com um dos país do mundo com mais ocorrência. Essa exigência de 49 anos foge até dos padrões europeus de Previdência.

B.U – Na Internet, é muito comum ver números e infográficos comparativos a outros países. De uma forma geral, qual é o panorama nos Estados Unidos e Europa? E na América Latina? 

R.S – Nos Estados Unidos se exige a idade mínima de 66 anos. Em alguns países da Europa, a exemplo de Dinamarca e Espanha, eles vão aumentar a idade de 65 anos para 67 anos, mas com transição até 2024 e 2027 respectivamente. A Reforma quer aprovar a regra do gatilho, segundo a qual a idade mínima de 65 anos vai ser aumentada todas as vezes que o IBGE elevar a expectativa de vida em um ponto percentual. É grosseira comparar a realidade brasileira, cujo o Índice de Desenvolvimento Humano assemelha-se a de países africanos, com países europeus ou os Estados Unidos. Nesses, não existe tanta desigualdade de renda, saúde e educação. Os idosos europeus não têm que se preocupar com plano de saúde aumentando em torno de 100% a 300% ao ano, remédio com aumentos de 20% a 50% além do fenômeno tupiniquim de a aposentadoria ser encolhida com o passar do tempo, o que motiva muitos aposentados a voltarem ao mercado de trabalho.

B.U – Os críticos ao projeto questionam que a proposta não leva em consideração a realidade de diversas profissões, a exemplo de um gari ou de um trabalhador rural. Na sua opinião, quais categorias sofreriam mais perdas?

R.S – De fato, a Reforma da Previdência coloca vários trabalhadores com características próprias em uma vala comum, embora o Governo tenha retirado desse corte os policiais militares e bombeiros. Não há sensibilidade para situações peculiares, como os servidores públicos, a atividade penosa dos professores, a situação de insalubridade e periculosidade de vários trabalhadores, os rurais, as mulheres com a elevação da idade e o próprio homem-nordestino que tem expectativa de vida mais baixa. Não parece razoável exigir por exemplo que uma babá, cuidando de uma criança de 5 anos, necessite trabalhar até os 65 anos de idade para poder se aposentar. Ela simplesmente não conseguirá se manter no mercado e esta Reforma, a longo prazo, pode viabilizar um exército de pessoas excluídas sem cobertura previdenciária.

B.U – O governo tirou os servidores estaduais da pauta da reforma da previdência. Além da manobra política para aliviar a pressão sobre os deputados federais, o que isso representa para o contribuinte?

R.S – O Governo não tem coerência quando afirma que a Reforma é necessária para o equilíbrio fiscal e financeiro, mas ao mesmo tempo faz concessões para determinadas categorias profissionais ficarem de fora das mudanças. Gera ainda mais desconfiança sobre a lisura do encaminhamento que está sendo conferido no Congresso Nacional. Existe uma grande insatisfação popular sobre a austeridade que esta Reforma está sendo feita. O sentimento de injustiça é muito grande com esses tratamentos corporativos.

B.U – Outro ponto bastante polêmico é o suposto déficit na previdência pública. Auditores fiscais da receita federal dizem que o rombo é provocado por que os recursos são desviados para pagamento de juros da dívida e que na verdade o sistema seria superavitário se seguisse o determinado pela legislação. Este contexto procede?

R. S -Entendo que não há déficit, nem que a Reforma devesse ocorrer de maneira açodada e sem um amplo debate popular, inclusive com auditoria nas contas e até mesmo consulta pública. A Previdência Urbana foi superavitária até 2015, principal ano de crise econômica. Todavia, é mais fácil mudar as leis e restringir direitos do que resolver problemas crônicos no sistema previdenciário, como a própria reestruturação do órgão. O INSS tem um sistema de arrecadação de dívida ativa que é ridículo e falho.  A AJUFE (Associação dos Juízes Federais do Brasil) estima essa conta em mais de R$ 1,8 trilhão a título de  sonegação fiscal que deixou de ser arrecadada. Desde o empregador doméstico até grandes empresas, inclusive Estados e Municípios, é muito fácil dever o INSS sem sofrer o receio de ser cobrado.

O INSS é campeão de processos na Justiça porque costuma negar desenfreadamente o direito da população. Ao invés de ocupar os seus procuradores federais com a recuperação de crédito, mobiliza esse capital humano em conflitos desnecessários. Além disso, o Instituto é a maior imobiliária do país, com mais de 6.000 imóveis parados e sem destinação específica. Embora o Governo informe que a Previdência está “quebrada”, não explica para a população o porquê de aprovar até 2023 o saque de receitas previdenciárias em cerca de 30%, que apenas no ano de 2016 foi da ordem de R$ 110 bilhões de contribuições previdenciárias. Dois anos apenas sem ocorrer saque já seria suficiente para equacionar o alegado déficit de R$ 187 bilhões para o ano de 2017. Tudo isso são aspectos que poderiam fazer com que a Previdência trabalhasse de maneira mais produtiva.

B.U – O governo alega que as contas não fecham e se a reforma não for feita, a previdência pode acabar. Qual a parcela desse suposto “déficit” dos militares, do judiciário e do funcionalismo público?

R. S – O Governo não tem sido honesto com a população quando argumenta dessa maneira. Não foi por outra razão que a Justiça de Porto Alegre mandou suspender anúncios do governo sobre reforma da Previdência. Beira ao terrorismo afirmações de que, se não tiver a reforma, não vai ter bolsa-família, manutenção dos programas sociais, FIES e construção de novas estradas no Brasil. A Previdência não é responsável pela crise econômica que o país atravessa. Em relação aos números dos alegados déficits, os servidores públicos e juízes estariam estimados em R$ 69 bilhões e o militares em R$ 35 bilhões. O direito previdenciário é um dos segmentos das ciências jurídicas que mais sofrem mutações. É importante que haja mudanças para que o direito regule o que acontece na sociedade. E sempre há mudança na área previdenciária. Todavia, é preciso que as mudanças sejam feitas com parcimônia e razoabilidade, sob pena de inviabilizar o regime previdenciário brasileiro. O principal interessado no enfraquecimento da previdência pública são as grandes instituições financeiras, que poderiam vender mais produtos de previdência privada, ainda que as coberturas e contrapartidas desta sejam bem diferentes e restritas do que é hoje praticado na Previdência Social.

print

Compartilhe:

Deixe um comentário