Boletim Unicap

O Paraguai e o “Contrabando Ideológico”

Por Artur Peregrino[1]

 O Paraguai é uma nação de um povo maravilhoso. Mas sua fama de contrabandear uísque ficou na história. Hoje assistimos a uma cena grotesca na política do país. Chamo isso de “contrabando ideológico”.  O que realmente aconteceu no Paraguai nas 30 horas do dia 21 para o dia 22 de junho de 2012?

É bom lembrar um pouco a história recente. A eleição de Fernando Lugo foi uma das muitas na América do Sul (Argentina, Brasil, Venezuela, Bolívia, Equador, Uruguai, Peru, Honduras, Nicarágua, El Salvador) em que as sociedades escolheram governos de esquerda e mudaram o mapa político do hemisfério nos últimos 14 anos. Isso os Estados Unidos não esperava. Com essa mudança, veio uma crescente unidade política em temas regionais que  aprofundou uma resistência aos Estados Unidos, antes bem-sucedido ao evitar o surgimento de governos de esquerda.

A partir daqui podemos compreender o porquê da resposta tão surpreendente e imediata dos países sul-americanos a esta armação que se configurou em um golpe de estado moderno. Os países do campo de esquerda são unânimes em dizer que houve uma ameaça à democracia. Por isso a Unasul não reconhece o governo pós-golpe. O Mercosul decidiu suspender a participação do Paraguai no organismo até as eleições de abril de 2013 e anunciou que a Venezuela, cujo ingresso era barrado pelo Congresso paraguaio, passará a membro pleno do bloco a partir do dia 31 de julho.

Segundo a Oxfam – confederação de 13 organizações e mais de 3000 parceiros, que atua em mais de 100 países na busca de soluções para o problema da pobreza e da injustiça -, o Paragui figura entre os dez países mais desiguais do mundo. Menos de 10% dos paraguaios possuem 66,4% das terras da nação. O aprofundamento da desigualdade se deu no período da ditadura militar no Paraguai. Refiro-me a ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). O tirano entregou 10 milhões de hectares, ou seja, um quarto das propriedades do país, para militares e amigos do regime. A partir desse dado poderemos entender porque o Paraguai é um dos paises mais desiguais do mundo.

É sabido que o governo Fernando Lugo incomodava as oligarguias pela aproximação com movimentos campesinos num país onde reina a concentraçao de terra. Os opositores do presidente Lugo queriam vê-lo fora do poder de qualquer maneira. Para evitar que o julgamento político se alongasse, em menos de uma hora senadores opositores leram, sem entrar em detalhes, os cinco motivos que consideraram suficientes para cassar o presidente. As acusações não foram apresentadas por escrito e as provas eram simples fotocópias de recortes dos jornais. A sanção contra Lugo havia sido decretada antes de o julgamento começar. O presidente Fernando Lugo, após ser acusado de mau exercício de suas funções, pediu 18 dias para preparar sua defesa. Teve duas horas. Logo foi julgado sumariamente sem nenhuma possibilidde de defesa.

O estopim para o impeachment foi a desastrosa desocupação de uma propriedade perto da fronteira com o Brasil, que terminou com 17 mortos. Vamos pensar um pouco. Poderíamos comparar com um fato que aconteceu na história recente do Brasil. É mais ou menos como se o Congresso destituísse o presidente de então, Fernando Henrique Cardoso, por não evitar o massacre de Eldorado dos Carajás em 1995, que resultou na morte de 19 trabalhadores rurais.

Na realidade, o que aconteceu no Paraguai foi um golpe de estado promovido pelo Congresso a serviço de latifundiários e multinacionais. Foi um golpe na democracia. Mesmo que se afirme que o processo foi legal. Assistimos a um espetáculo imoral. É preciso averiguar as verdadeiras bases desse golpe. No Brasil, a imprensa elitista não divulga essa realidade. Muitos repórteres agem como sistemáticos acusadores de qualquer líder latino-americano que não se coloca alinhado aos interesses dos Estados Unidos. Vomitam sua ira contra movimentos que  propõem mudanças estruturais  na América Latina.

Um serviço à democracia na América Latina é divulgarmos, da melhor e maior forma, o que aconteceu no Paraguai nesses dias. É bom divulgarmos que a sentença da destituição do presidente Lugo já estava elaborada antes do julgamento. Que tudo foi um circo, um teatro. Os perdedores são aqueles que se beneficiaram com as conquista sociais resultantes da gestão de governo de Lugo.

Os que deram apoio imediato ao regime golpista compactuaram com esse estado de coisas. É lamentável que pessoas e instituições tenham participado desse jogo de cena. Na realidade, um sistema autoritário corresponde melhor a seus interesses, porque aí tudo se decide conversando com o ditador. Por isso o que aconteceu no Paraguai foi um golpe na democracia. Mas o mundo não aceitou esse “contrabando ideológico”.

O teólogo Leonardo Boff assim se expressou sobre o bispo Fernando Lugo: “É um homem que sabe escutar e acolher o que vem de baixo, fruto da experiência de muitas gerações. É uma honra para a Igreja e para a própria Teologia da Libertação oferecer um quadro desta densidade política e ética para servir a um povo que tanto sofreu historicamente e que merece um destino melhor, integrado nas novas democracias do Continente”.


[1] José Artur Tavares de Brito é Mestre em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco (1999). Possui graduação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1995), graduação em Bacharelado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1996), graduação em Teologia pelo Instituto de Teologia do Recife (1987). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia da Religião, atua principalmente nos seguintes temas: teoria da complexidade, antropologia urbana, sistemas simbólicos, ritualidade, catolicismo, terra, sertanejo, contemporaneidade, religião, cidade e pastoral. É integrante do grupo de pesquisa Transdisciplinaridade e Diálogo entre Culturas e Religiões. Atualmente é Professor da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e colaborador do Instituto Humanitas Hunicap – IHU.

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