Confira na íntegra o texto da palestra de Maria Voce no evento de instalação da Cátedra Chiara Lubich
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Discurso proferido pela presidente do Movimento dos Focolares, Maria Voce, quando da instalação da Cátedra Livre Chiara Lubich de Fraternidade e Humanismo, da Unicap e Asces. Recife, 25.mar.2014.
A VISÃO DO HOMEM EM CHIARA LUBICH
A saudação cordial, que dirijo aos reitores, eu gostaria de estender a toda a comunidade acadêmica, às autoridades civis e eclesiásticas, e a cada um dos presentes. Desejo expressar minha gratidão pelo convite para proferir o discurso oficial por ocasião da inauguração da Cátedra Interinstitucional de Fraternidade e Humanismo, com que a Universidade Católica de Pernambuco e a Faculdade Asces desejaram homenagear Chiara Lubich, a quem, seis anos atrás, fui designada a suceder, como presidente, na condução do Movimento dos Focolares.
Fraternidade e humanismo
Tal sentimento de gratidão une-se em mim ao sincero apreço pela conotação específica que se desejou dar à Cátedra: “fraternidade e humanismo”. Os dois títulos, em sua referência mútua, constituem realmente um tema de extrema relevância na história atual. A eles faz-nos ficar particularmente atentos a voz abalizada do papa Francisco, ao nos chamar à consciência de que a questão decisiva posta diante de nós é antropológica do encontro”. Ou seja, uma cultura que tomará forma a partir da nossa ida sem reservas ao encontro das pessoas, sem medo de nos impelirmos até as muitas “periferias existenciais” do mundo, para lá fazer chegar o testemunho do amor fraterno, da solidariedade e da partilha. Ora, é esse mesmo binômio – fraternidade e humanismo – que qualifica de maneira pertinente também a contribuição de Chiara Lubich.
“Esse momento de crise que estamos vivendo não consiste numa crise somente econômica nem é uma crise cultural. É uma crise do ser humano. O que pode ser destruído é o ser humano, o ser humano que é imagem de Deus” (Francisco, 2013). Cf. também Evangelii gaudium, nº 55, onde a atual “profunda crise antropológica” é identificada como “negação do primado do ser humano”.
Grande figura de mulher carismática do século xx, ela suscitou uma Obra que, conservando uma precisa imagem do homem, se volta para lançar, na humanidade de todas as latitudes, sementes de vida evangélica que a acompanham em seu caminho rumo à fraternidade universal, invocada por Jesus: “Que todos sejam um” (cf. Jo 17,21). É também graças a essa contribuição que, na história atual, se delineiam os traços de um novo humanismo, os quais parecem valorizar o que o teólogo Hans-Urs von Balthasar afirma sobre o papel doutrinal dos grandes carismas, dons e expressões do Espírito Santo, que não são “em nenhum caso mera teoria, mas sempre também práxis viva” (Balthasar, 1992, p. 22).
Não é, contudo, minha intenção, nesta sede, tratar especificamente da fraternidade e do humanismo, mas sim procurar evidenciar a visão do homem que se esboça a partir do carisma de Chiara e constitui a instância crítica e o princípio fecundante dele.
A pergunta sobre o homem: uma situação histórica
Quem é, portanto, o homem? É a pergunta que perpassa o sentimento da humanidade de todas as épocas e de todas as culturas, por vezes permanecendo velada e oculta para depois aflorar mais aguda e urgente: Qual é a verdade do seu ser? Qual é o significado de sua história e o sentido último de seu destino? É a pergunta que perpassa também a nossa época, talvez mais inquietante do que nunca.
A situação em que o homem de hoje procura uma compreensão de si e do próprio destino ainda é marcada pelas feridas provocadas pelas crises e pelos conflitos que tragicamente atravessaram o século que apenas terminou, bem como pela queda das ideologias em que o passado tinha interpretado e projetado o sentido da existência humana, fazendo com que se temesse, de maneira fundamentada, o fim não só da civilização ocidental, como do próprio homem.
Da parte da ciência e da técnica, elas ampliaram enormemente os poderes do homem, exaltando suas crescentes possibilidades de domínio, as quais, porém, paradoxalmente, tornam sempre mais problemático o exercício de escolhas livres e positivamente orientáveis. Dessa maneira, agudiza-se a pergunta sobre o sentido da vida e a própria identidade do homem, como Martin Heidegger já denunciara lucidamente: Nenhuma época soube conquistar tantos e tão variados conhecimentos sobre o homem como a nossa […]. Mesmo assim, nenhuma época conheceu tão pouco o homem como a nossa. Em nenhuma época o homem tornou-se tão problemático como na nossa. (Heidegger, 1962, p. 275) Todavia é desse contexto histórico e cultural que se levantam vozes abertas à esperança, vozes que – diríamos com palavras de Max Scheler – convidam a “contemplar, com extremo rigor metodológico e extrema maravilha, esse ser que se chama homem” e assim “chegar novamente a julgamentos fundamentados” (Scheler, 1928, p. 62).
Entre essas vozes, ecoa a de Chiara Lubich.
Sempre atenta a captar os sinais fecundos presentes na busca, embora sofrida e obscura, do homem, Chiara evidencia neles o avanço de uma reconsideração desse homem na sua integralidade e plenitude que levam a predizer o surgimento de “um novo humanismo” num caminho irreversível (cf. Lubich, 1984, p. 71). É um humanismo em que todas as perspectivas do homem são adequadamente aceitas, e fundamentadas, e postas em relação à realidade de Deus, qual abertura do homem a uma transcendência que já vive na sua história e que, ao mesmo tempo, representa sua realização suprema e definitiva. É um humanismo, enfim, que – emprestando a conhecida expressão de Jacques Maritain – podemos chamar de integral (cf. Maritain, 1969), ou seja – como atesta o magistério de Paulo VI em conformidade à grande lição do Concílio Vaticano II –, capaz de colocar no centro de sua consideração “todo homem e o homem todo”
Do próprio seio da história do século xx vem à tona, de maneira eloquente, a necessidade de recuperar para o homem uma nova compreensão de si, da qual desabroche uma visão e um pensamento capazes de iluminar, retrospectiva e prospectivamente, os acontecimentos humanos em sua complexidade e, ao mesmo tempo, em sua unitariedade.
No campo cristão, movidos por essa exigência e com renovada consciência, voltou-se a dirigir o olhar na direção das fontes religiosas e transcendentes, para captar no dado revelado as afirmações fundamentais que consentem reunir e desenvolver, numa imagem sistemática, as implicações antropológicas nelas contidas.
Também o olhar de Chiara penetra naquelas fontes e capta sua inesgotável riqueza, a perene contemporaneidade.
Detenhamo-nos, então, a considerar, em seus aspectos mais evidentes, a visão do homem que delas promana e que Chiara interpreta sob o impulso de um dom particular de luz.
O homem, imagem de Deus
Os primeiros capítulos do Livro do Gênesis constituem, a respeito de nosso tema, um ponto de referência obrigatório, a partir das breves e intensas palavras que precedem o surgimento do homem no cenário admirável da Criação: “E Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança’” (Gn 1,26).
Era, portanto, intenção de Deus fazer do homem a imagem de si, ou seja, chamar à existência um ser, único dentre todas as criaturas, capaz de estar diante Dele como seu “tu”, de colocar-se livremente em relação direta e pessoal com Ele, até estabelecer com Ele um laço de amizade, entabular um diálogo de amor, ser, por fim, resposta viva à sua palavra originária
O que constitui o homem no seu ser profundo é essa relação com Deus especial, relação que o define no seu valor de pessoa dinamicamente orientada ao próprio Criador, acendendo nele, embora tenha sido moldado com os elementos da terra, a centelha do divino, tornando-o capaz de transcender sua dimensão finita e temporal, para atingir o Infinito e o Eterno.
É nisso que consiste a singular grandeza do homem, de todo homem, que deve, portanto, ser tratado de acordo com tão alta dignidade.
Ao lado dessa relação constitutiva do ser homem, que o define enquanto relação com um outro distinto de si, com o Outro, que é Deus, o texto bíblico revela outra relação igualmente fundamental. É a relação pessoal do homem com seu semelhante. “Deus criou o homem à sua imagem; à imagem de Deus ele o criou; homem e mulher ele os criou” (Gn 1,27).
A forma originária de comunhão com Deus alarga-se logo, incluindo em si a primeira forma de comunhão entre pessoas, aquela entre o homem e a mulher. De fato, é no interior da comunhão com Deus que o homem pode reconhecer seu próprio rosto no rosto de seu semelhante, também ele criado à imagem de Deus; é no interior do diálogo com Deus que o homem pode dirigir-se a outro homem dizendo-lhe “tu” e assim entrar, também com ele, num diálogo de amor.
Mas essa expressão do Gênesis encerra um significado ainda mais profundo e surpreendente. Com ela, o autor sagrado quer dizer que Deus encontra o mais límpido reflexo de si na Criação – a sua “imagem” – não tanto no homem individualmente, quanto na relação inter-humana.
Um raio de luz abre-se para o próprio mistério de Deus, para a íntima natureza do seu ser, deixando transparecer a íntima riqueza nela contida e à qual a revelação cristã daria, mais tarde, o nome de Amor (cf. 1Jo 4,8.16), eterna e perfeita comunhão.
É a realidade do Deus unitrino: Deus que, na sua única essência – o amor –, desde sempre subsiste como trindade de Pessoas, ou seja, distinguindo-se – justamente por ser amor – no Pai, que é Pai porque se doa totalmente ao Filho; no Filho, que é Filho porque se recebe totalmente do Pai e, por sua vez, se doa totalmente a Ele; e no Espírito Santo, o amor comum que liga entre si Pai e Filho em perfeita unidade.
É o mistério que Chiara perscruta com particular inteligência de amor e que a leva a compreender a relação inter-humana como aquilo que melhor torna visível o rosto de Deus Amor; por isso, quanto mais essa relação cresce e amadurece, tanto mais ela se torna o espaço em que o homem pode conhecer Deus e entrar em contato vital com Ele (cf. Lubich, 2004a).
Voltando ao texto do Gênesis, observamos finalmente que a realidade humana surge tecida de outra relação essencial: com todo o cosmos.
De fato, tanto o universo quanto o homem, justamente por terem sido formados pelo único Criador, aparecem ambos como fruto da misteriosa expansão do amor de Deus para fora de si mesmo em algo que é distinto de si; é o mistério da vida que Deus dá a todas as coisas, graças à superabundância do seu ser, que não é outra coisa senão “superabundância de amor”, isto é, comunicação de si que revela o seu “existir em forma de dom” (cf. Maritain, 1985, p. 100).
Ora, o homem constitui o ápice dessa maravilhosa obra, porque ele foi querido por Deus como síntese e coroamento dela. Daqui decorre o mandamento dirigido a ele de “dominar” a terra, convite a ser seu guardião responsável (cf. Gn 1,28), de modo que ela lhe seja morada acolhedora, “jardim das delícias” (cf. Gn 2,8) que frutifica copiosamente.
Por isso, todas as coisas da Criação devem ser olhadas e tratadas por nós com o amor mesmo de Deus, ou seja, com um amor que se dilata sobre o universo inteiro, no qual podemos captar a mesma marca divina de comunhão e de unidade. Assim escreve Chiara:
… se nós pudéssemos passar além do véu que encobre a Criação, encontraríamos Aquele que sustenta, o organiza e move tudo o que vemos. E veríamos tal adesão – embora na distinção entre Criação e o Incriado – tão grande aderência, aproximação e unidade, que ficaríamos pasmados.
Veríamos
…com maior evidência que a visão que distingue e separa entre si a flor, o céu, a fonte, o Sol, a Lua, o mar, a noite, o dia […] uma Luz amorosa que tudo sustenta e tudo une, como se a Criação fosse um único canto de amor. (Lubich, 1983b, p. 128) Trata-se de um conhecimento inefável doado ao homem para que ele, ao descobrir-se em relação viva com toda a Criação, possa transformá-la, inclusive graças à obra de suas mãos, que continuam, de certo modo, a obra criadora de Deus, e assim reconduzi-la a Ele inteiramente purificada e iluminada (cf. Rm 8,19-21).
A imagem do Amor
Na perspectiva da revelação cristã, no centro desse desígnio divino para o homem, há aquela perfeita “imagem do Deus invisível” (Col 1,15) que é Jesus, o Cristo, o Unigênito de Deus (cf. Jo 1,14.18), “o Filho do seu amor” (Col 1,13), que Ele “amou desde o princípio da criação do mundo” (Jo 17,24), que Ele “gerou antes de toda criatura” (Col 1,15) e por quem, como dissemos, é eternamente amado na indissolubilidade do mesmo Amor, no Espírito Santo.
É, portanto, no Filho que, desde a eternidade, Deus protege todo o verdadeiro projeto para o homem; é Nele que Deus o contempla e, mediante o Filho, numa renovada efusão de amor e de vida, age livremente no tempo, como que projetando para fora de si infinitas modulações, “infinitos tons” – diz Chiara, com intensa penetração sapiencial – de uma única Palavra que Ele pronuncia e na qual o Filho é gerado: Amor (cf. Lubich, 1996a, p.160).
Nessa luz, todo homem apresenta-se aos nossos olhos como expressão única e que não se repete da infinita riqueza contida naquela única Palavra-Amor, Palavra, portanto, que revela o seu verdadeiro ser e, com este, o seu desígnio.
O chamado ao amor
Se o homem foi criado à imagem do Amor, compreende-se por que ele encontra inscrito no profundo do próprio ser um chamado que o impele a amar, fazendo-o entrever que somente pelo dom de si ele poderá realizar-se. É o chamado a ser – como diz Chiara com belíssimas imagens – “uma pequena chama dessa Chama infinita” (Idem, 1984, p. 25), a resplandecer como “pequenos sóis junto do grande Sol” (Idem, 1983b, p. 50), a ressoar na terra como eco de amor ao Pai: amor que responde ao Amor.
Então somos, então existimos como filhos Daquele que é o amor.
Por isso, podemos dizer que cada um de nós alcança sua plena identidade no ato de doar-se e que nossa existência alcança sua plenitude de sentido no momento em que se doa.
Nesse sentido expressou-se, muito tempo atrás, Jacques Maritain, ao definir o núcleo ontológico da pessoa como “totalidade secreta que contém a si mesma e a própria fonte, e que superabunda em conhecimento e em amor, alcançando, somente mediante o amor, seu mais alto grau de existência, o da existência enquanto se doa” (Maritain, 1965, p. 66).
E se acontecer assim, ou seja, se fizermos de nossa vida um constante dom de amor, então se abrirá límpido ao nosso olhar o sentido verdadeiro nosso, bem como de tudo o que existe.
Escreve Chiara:
Compreendi que eu fui criada como um dom para quem me está próximo e quem me está próximo foi criado por Deus como um dom para mim. […] Na terra tudo está em relação de amor com tudo: cada coisa com cada coisa.É preciso ser o Amor para encontrar o fio de ouro entre os seres. (Lubich, 1996b, p. 359-360)
Portanto, é o amor a lei do ser, a lei da vida.
Contudo, como num paradoxo, essa lei requer o despojamento de si, a inexistência de si, semelhante a um momento de morte: porque assim é o amor, como tão profundamente afirma Chiara: é não sendo, ou seja, ele existe somente enquanto se projeta para fora de si – e nisso parece anular-se – num dom sem medida. Mas é justamente então que naquele nada, que é vazio de si, floresce a vida.
Daqui o convite ao homem a não viver fechado em si mesmo, mas aberto ao outro, a não procurar possuir-se, mas, ao invés disso, doar-se sem reservas ao outro, pois só então ele é: é amor, pelo que o seu doar-se e, por conseguinte, o seu “anular-se” nesse dom é, na realidade, o que lhe consente ser – ser amor – e que, ao mesmo tempo, faz com que também o outro seja, que exista graças ao seu amor, que viva do seu amor (cf. Lubich, 2004b, p. 67-68).
Essa profunda realidade do amor foi intuída por alguns dos mais eminentes filósofos do Ocidente, dentre os quais Hegel, que escreve: “O amor encontra a si mesmo no outro ou, esquecendo-se de si mesmo, coloca-se fora da sua existência, vivendo, por assim dizer, no outro” (Hegel, s.d., nº 18).
Por esse motivo, conclui Chiara, “nós somos […] se somos o outro” (Lubich, 2004b, p. 68).
Dessa visão, nasce uma concepção da pessoa que é quando se coloca em constante relação concreta com o outro e que se realiza essencialmente como relação.
É o que evidenciam algumas correntes do pensamento filosófico contemporâneo, deixando assim que se entreveja o surgimento de uma nova ontologia: a ontologia do amor. “Poder-se-ia quase dizer” – afirma, por exemplo, de maneira exemplar, Emmanuel Mounier – “que eu existo somente quando existo para o outro, e, no limite, que ser é amor. […] O ato de amor é a mais sólida certeza do homem […]: eu amo, portanto o ser é e a vida valem” (Mounier, 1964, p. 35-37).
A livre resposta do homem
Esse chamado ao amor, inerente ao desígnio de Deus para com o homem, requer a livre resposta do homem. É, de fato, na liberdade, de que Deus o dotou e que é nele “sinal altíssimo da imagem divina” (Gaudium et spes, nº 17), que reside a sua capacidade de aderir a esse apelo e fazer, assim, a extraordinária experiência de ser, com Ele, artífice da própria vida e do próprio destino.
Mas tudo isso pode também não acontecer; o homem, justamente por ser livre, pode também não amar; é a experiência obscura da ruptura da relação com Deus, da distância Dele e, ao mesmo tempo, do desaparecimento da comunhão com os outros homens; numa palavra, a “desfiguração” de sua “imagem” mais verdadeira, como afirma um grande Padre da Igreja, Gregório de Nissa.
Mas Deus não se deixa vencer em generosidade. Por isso enviou ao mundo seu Filho para, qual luz que resplandece nas trevas (cf. Jo 1,5), revelar-nos, com as suas palavras e com toda a sua existência, como se vive enquanto filhos, em comunhão com Deus.
Todavia, para Jesus isso não foi suficiente. Num ápice de amor, ele aceitou compartilhar conosco até nossa distância de Deus, portanto, nossa condição de pecado, da qual experimentou todo o peso, até sentir-se Ele mesmo abandonado por Deus (cf. Mc 15,34; Mt 27,46). No entanto, justamente no momento supremo em que sua vida passava pela morte e a luz se tornava trevas, liberando de si todo o amor, colocou-se novamente nas mãos do Pai, até fazer da própria morte o dom completo de si: dom que uniu o que estava dividido, preencheu o vazio da distância infinita; tamanha é a força transformadora e criadora do amor, que reintegra o homem na sua dignidade, devolvendo-lhe todo o seu valor de filho de Deus.
Ao ter assim reencontrado sua “imagem” mais verdadeira, agora o homem também pode lançar-se e abraçar toda dor, toda solidão, toda nulidade, em quaisquer formas elas apareçam, e, assumindo-as como próprias, transformá-las em amor e em plenitude de ser.
Tendo-se identificado com o próprio Amor, agora revive também nele a força transformadora e criadora do amor, como transparece da seguinte oração de Chiara, amor em tudo parecido a um abraço universal que envolve toda a humanidade, toda a Criação:
Senhor, dá-me todos os que estão sós…
Senti em meu coração a paixão que invade o teu,
por todo o abandono em que o mundo inteiro nada.
Amo todo ser doente e só:
Até as plantas sem viço me causam dó…
até os animais solitários.
Quem consola o seu pranto?
Quem tem pena de sua morte lenta?
E quem estreita ao próprio coração o coração desesperado?
Meu Deus, faze que eu seja no mundo o sacramento tangível do teu Amor; do teu ser Amor: que eu seja os braços teus que estreitam a si e consomem no amor toda a solidão do mundo. (Lubich, 2003, p. 123-124)
O desígnio originário para o homem, revelando-se como desígnio de comunhão com Deus, com o seu semelhante e com o universo inteiro, portanto, como desígnio de unidade entre a Criação e o Incriado, apresenta-se no seu altíssimo real cumprimento: habitar, por amor, em Deus e ser por Ele habitado; assemelhar-se, com o amor, a Deus e ser Nele transformado.
Trata-se de uma visão ousada que não anula a realidade humana, mas exalta-a ao máximo, a ponto de Chiara dizer: “Que Tu sejas, aqui na terra, o Amor perfeito” (Idem, 2007, p. 153).
A caminho para a unidade
E há ainda mais. Quando essa dinâmica do amor, que é anulação de si para entrar até o fundo no coração do outro, para “fazer-se um” com o outro, compartilhando tudo da sua condição (cf. 1Cor 9,22), for vivida por várias pessoas reciprocamente, então a mesma corrente de amor que existe em Deus começa a correr livremente entre elas, de modo que cada uma percebe que existe com o outro, que vive pelo outro, até ser um no outro. Essa corrente de amor, irradiando-se para a humanidade ao redor, gera por toda parte comunhão, unidade. Porque – como afirma Chiara – “o amor é um fogo que consome os corações numa fusão perfeita”. Ela escreve:
Se o teu olho é simples, quem olha por ele é Deus. E Deus é amor, e o amor quer unir, conquistando. […]
Olha para fora de ti, não para ti, nem para as coisas, nem para as criaturas: olha para Deus fora de ti para unir-te a Ele.Ele está no fundo de cada alma que vive e, se morta, é tabernáculo de Deus, que ela espera para alegria e expressão da própria existência. Olha, portanto, cada irmão amando; e amar é doar. Mas dádiva chama dádiva, e serás por ele amado. […] O amor é um fogo que compenetra os corações em fusão perfeita. Então encontrarás em ti não mais a ti, não mais o irmão; encontrarás o Amor, que é Deus vivo em ti. E o Amor sairá para amar outros irmãos, porque, simplificado o olho, encontrará a Si mesmo neles, e todos serão um. (Idem, 2003, p. 122-123)
É isso, pois, o que o amor pode; amor que, enquanto manifesta ao homem uma nova concepção de seu ser, abre-o para um novo estilo de vida possível, ou seja, uma vida ilimitadamente aberta ao outro e aos outros; uma vida aberta à unidade e, por isso, capaz de tornar-se terreno fecundo no qual pode germinar um autêntico humanismo, uma concreta fraternidade.