A busca por uma reaproximação com os movimentos populares foi o tom das discussões da Jornada Teológica do Recife, que teve as edições retomadas na segunda (23), à noite, com a presença de representantes da Igreja Católica e de várias instituições. O encontro aconteceu no auditório que leva o nome daquele que inspirou as jornadas: Dom Helder Camara.
O formato dinâmico e interativo privilegiou a participação do público presente. A troca de ideias girou em torno da Carta do Papa Francisco, que trata justamente desse diálogo com os movimentos sociais. O documento foi publicado a partir do discurso feito pelo Pontífice em julho de 2015, durante visita à cidade de Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Um dos trechos mais emblemáticos do discurso de Francisco foi “Nenhuma família sem casa. Nenhum camponês sem terra. Nenhum trabalhador sem direitos”.
Foi com este mote que o representante da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Olinda e Recife, Antônio Carlos, fez a abertura da Jornada. Ele falou sobre a situação social do Brasil usando como exemplo a ociosidade de imóveis no Centro do Recife e a existência de famílias sem teto. “Não existe nada mais revolucionário que o chefe institucional de uma Igreja reconhecer a prevalência da função social da propriedade rural quando ele diz ‘nenhum camponês sem terra’, quando nós moramos num país onde tudo está convergindo para a concentração cada vez maior da propriedade em nome de poucos”.
Na sequência, Padre Clóvis Cabral fez uma apresentação resumida do discurso. Um pouco antes, exibiu no telão a letra e música da canção Chegança, do multi-artista Antônio Nóbrega. Este momento chamado de mística contou com a participação de oito pessoas escolhidas entre a plateia. Cada uma delas leu frases do discurso papal. Em seguida, depois da oração do Pai Nosso, Padre Clóvis fez a explanação sobre o discurso. De acordo com ele, outros encontros do Papa com representantes dos movimentos vem acontecendo nos últimos anos. Além do de Santa Cruz de La Sierra, em 9 de julho de 2015, outros dois ocorreram em Roma, em 28 de outubro de 2014 e nos dias 2 e 15 de novembro de 2016.
Entre os pontos do discurso de Santa Cruz, Padre Clóvis enfatizou a palavra ‘mudança’ usada pelo Papa, a crítica ao ‘sistema mundo’ e ao capitalismo, e a emoção que deve fazer parte dessa mudança. “Isso é muito diferente da teorização abstrata ou da indignação elegante. Isso comove-nos, move-nos, e procuramos o outro para nos movermos juntos”, disse o jesuíta ao citar o Papa. E continuou: “Frase belíssima: emoção feita, ação comunitária. Ele diz que este é o plus de sentido na luta pela mudança e diz que isto confere uma mística particular aos verdadeiros movimentos sociais”.
Ele destacou também que o Papa admite
“que não é tão fácil definir o conteúdo do que seja mudança. Ele diz que nem o Papa, nem a Igreja têm o monopólio da interpretação da realidade social e das propostas para soluções de problemas contemporâneos”.
No entanto, ainda segundo o padre Clóvis, o Papa sugere três tarefas que podem contribuir para esta mudança. A primeira, pôr a economia ao serviço dos povos; a segunda, unir os nossos povos no caminho da paz e da justiça. E a terceira, “e talvez a mais importante que devemos assumir hoje, é defender a Mãe Terra”, finalizou Padre Clóvis.
Logo depois, o público foi organizado em grupos para que pudesse “cochichar” sobre as questões ali postas, sendo um representante de cada escolhido para falar na frente do auditório o que foi discutido entre os integrantes. O professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Ivan Melo, chamou a atenção para o “desafio da solidariedade”. Geraldo Luiz dos Santos, do Movimento dos Trabalhadores Cristãos, relembrou o silenciamento da própria Igreja em torno da indicação de Dom Helder ao Nobel da Paz na época da ditadura civil-militar. “O papel das Jornadas Teológicas não morreu, não envelheceu. Viva a resistência, viva a luta, viva a caminhada”.
Josélio Silva, do Centro de Estudos Bíblicos, elogiou o discurso de Francisco. “Muito linda essa carta, tem uma linguagem amorosa, próxima da linguagem do interlocutor”. No entanto, ele criticou o que chamou de “falta de aceno para os novos movimentos”. Ele questionou: “Cadê o aceno aos movimentos feministas, ao movimento LGBT, cadê o aceno ao movimento de negros? Eu acho que se a gente não conseguir congregar esses novos movimentos, a gente não consegue se fortalecer”.
Já a assistente social da UFPE, Ângela Nascimento, criticou “o momento em que a Igreja passou a valorizar muito mais os rituais vazios para a classe popular, mas com sentido para a elite. E nisso a elite estava articulada com um projeto que esvaziou o nosso poder popular naquele processo de construção da Teologia da Libertação”. O grupo dela também fez reflexões sobre a relação entre a sociedade e as eleições de governos populares. “A gente achou que ali já era o momento…abrimos mão de processos. Aí está a diferença de lutar por poder e lutar por processos”.
A representante da Tenda da Fé, Maria Laura Pessoa de Queiroz, defendeu não apenas a reaproximação dos movimentos populares, mas também o fortalecimentos das lideranças.
“É preciso que o trabalho de base volte a funcionar como funcionou na época de Dom Helder”.
O momento final das discussões ficou a cargo do monge beneditino Marcelo Barros, que aprofundou as reflexões. Entre outros pontos, ele falou sobre as origens da Igreja quando foi perseguida pelo Império Romano justamente por questionar o sistema.
“Naquela época, o cristianismo não era religião, era uma cooperativa social, um movimento social”.