Boletim Unicap

Valdice Dantas: testemunha ocular da história da Unicap nos últimos 50 anos

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A matrícula 00397-0 guarda a maior parte da história da Universidade Católica de Pernambuco. Número que identifica a funcionária mais antiga em atividade da Unicap. Chefe da Divisão de Recursos Humanos, Valdice Dantas, é testemunha ocular dos acontecimentos que nortearam a Católica nas últimas cinco décadas. Filha da dona de casa Joana de Araújo Bezerra, 101 anos a serem completados em fevereiro, e do coronel do Exército Sylvio de Mello Dantas, 88 anos, Valdice relembra momentos emocionantes do seu primeiro e único emprego. Emoção de quem chegou a esta Casa “recém-saída” da infância e dedicou as demais fases da vida à “causa” da Unicap. Talvez a mais recifense das soteropolitanas (ela veio morar na capital pernambucana aos cinco anos), a tia de André e Liliane, irmã de Silvio, concedeu uma entrevista especial ao jornalista Daniel França. Os principais trechos você confere a seguir.

Boletim Unicap – A história da Unicap se confunde com a história da sua vida. Como é que tudo isso começou?

Valdice Dantas – Eu tinha um tio jesuíta, irmão do meu pai, o Padre Lidorval de Mello Dantas que atuava na tesouraria do Colégio Nóbrega. Eu, meu irmão e minha mãe morávamos numa pensão e ele tinha uma preocupação porque lá havia muitos rapazes e ele queria preencher meu tempo (risos), a verdade era essa. Primeiro, ele me colocou na escola experimental para fazer um curso de artesanato. Passei seis meses, mas eu não tinha a menor vocação para coisas de casa. Aí ele falou com Padre Abranches que permitiu que eu viesse trabalhar aqui durante um expediente.

B.U – Tudo isso aos 13 anos?

V.D – Sim. Na verdade eu tenho 51 anos de Unicap, mas na carteira constam 50 porque só se podia assinar a carteira a partir dos 14 anos.

B.U – Em que setor você começou?

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Sala no térreo do bloco A foi onde Valdice começou

V.D – Na tesouraria. Padre Abranches era o Tesoureiro Geral. Quando eu entrei aqui a diretoria da Universidade era composta pelo Reitor, Secretário Geral e Tesoureiro. As faculdades (Economia, Filosofia e Direito) eram descentralizadas. Comecei como auxiliar. As únicas coisas que eu sabia eram escrever, fazer contas e datilografia. Ele foi quem me ensinou a fazer tudo: prestação de contas para o governo, controle de verbas governamentais.

B.U – Hoje você ocupa um cargo de gestão na DRH, mas até chegar aqui percorreu um longo caminho. Como foi essa trajetória?

V.D – Padre Torres foi nomeado para ser tesoureiro sem que Padre Abranches soubesse (ele estava afastado do trabalho por questões de saúde). Ele era muito respeitado e ninguém queria magoá-lo. Nessa fase eu tinha que fazer dois cálculos porque um era para mostrar a ele. Surgiu uma situação difícil porque a Residência dos Jesuítas era clausura. Mulher não podia entrar e quem tinha tudo era eu. Daí conseguiram uma ordem especial do Provincial para eu ter acesso ao quarto do Padre. Eu ia meio que abaixada para que não vissem que uma mulher estava entrando na casa dos padres (risos). Em outubro de 1969 Padre Torres morreu em decorrência de uma infecção generalizada depois de uma cirurgia. Padre Abranches morreu em dezembro daquele ano. Em janeiro de 1970, o Provincial, que era o Chanceler da Universidade, nomeou-me para o lugar dele como Tesoureira Geral.

B.U – O que marcou essa fase na sua carreira?

V.D – Acredito que essa tenha sido uma das épocas mais difíceis porque foi aí que houve a unificação das finanças das faculdades de direito, filosofia e economia. Cada uma era dona de suas receitas e despesas, determinava como fazia. Só que houve uma ordem de Roma para unificar tudo. Os recursos tinham que entrar pela Tesouraria Geral.

B.U – Imagino que você deva ter enfrentado uma grande resistência…

V.D – Sim, sem dúvida. Isso mexeu com muita gente.

B.U – Isso tudo no auge da ditadura militar. Como era a relação entre a Universidade, um centro crítico do saber, e o governo? Havia censor ou agentes infiltrados nas salas de aula?

V.D – Oficialmente eu desconheço a presença de agentes infiltrados, mas deveria existir. Eu só lembro de um episódio mais tenso. Eu morava perto do quartel, aqui mesmo na Rua do Príncipe, quando um funcionário chegou gritando dizendo que a Universidade havia sido invadida. Era o Comando de Caça aos Comunistas (CCC – entidade civil de apoio ao regime militar) que havia pichado algumas salas do Diretório Central dos Estudantes (DCE). Em outras ocasiões, a Universidade chegou a ser cercada pela polícia, mas invadida nunca. Lembro também quando Dom Helder Camara sentou-se no chão do bloco A com os alunos em resistência a uma possível invasão.

B.U – E a censura?

V.D – Havia sim. As contratações de professores passavam pelo crivo do SNI (Serviço Nacional de Informação). Era obrigatório. Mas a Universidade nunca deixou de contratar quem ela queria. Eles faziam um levantamento de tudo, desde as ideologias políticas até se a pessoa era ‘bom pagador’.

B.U – Como você analisa a sua ligação com Padre Abranches?

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Pe. Abranches e Valdice: avô e neta

V.D – Quando eu entrei aqui com 13 anos ela já tinha 63, daí eu nunca tive uma relação de patrão-empregado, era algo entre neta e avô. Ele adoeceu em junho de 1968 de enfisema pulmonar e nunca mais voltou ao trabalho. Ele participou de todo o processo de fundação da Universidade, mas nunca foi reitor porque era português e a legislação brasileira não permitia que estrangeiros assumissem esse cargo.

B.U – E o convívio com ele?

V.D – Às vezes, quando eu não queria trabalhar muito, eu falava uma palavra errada. Ele ficava irritadíssimo (risos) e parava tudo para explicar, buscava um dicionário. Quando eu cheguei, ele disse: ”Essa mesa aqui é sua. Você pode botar o que quiser. Jamais eu vou mexer. Essa daqui é a minha e você não tem o direito de mexer”. Ele era de família nobre lá de Portugal. Então muitos ricos daqui se aproximavam dele. Muitos empresários vinham se confessar. Às vezes, Padre Abranches me colocava para fora da sala para ouvi-los. Eu ficava virada! Tinha gente que se confessava com ele toda semana e eu questionava: “Padre, o senhor vai deixar seu trabalho?” Ele dizia: “Minha filha eu sou Padre. Esse trabalho aqui qualquer pessoa pode fazer, mas ouvir em confissão só o Padre”. Eu só não ficava mais brava porque as beatas traziam pacotes de bombom e bolo pra ele. Quando ele estava presente eu podia comer.

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Texto da lápide é de autoria de Valdice que também homenageia Padre Lamego

Certo dia, eu observei um objeto que parecia um vidro de perfume e perguntei: “O que é aquilo?” Quando ele abriu era um queijo. Já devia estar lá há seis meses. Ele e Padre Klaine comeram tudo, parecia um gorgonzola. Ele disse: “Essa menina não sabe o que é fino”. E eu respondia: “Pois deixe eu sem saber porque eu não como essa nojeira”. Um dia, ele doente, fui limpar a mesa dele e dentro de um livro havia um monte de papeizinhos rosa, quadrados, escritos com caneta esferográfica vermelha, preso com clipe verde. Olhei, achei que não era nada e coloquei no lixo. No outro dia, ele me chama na residência e pediu para trazer justamente esses papéis. Eu gelei! Fiquei calada e vim embora. Procurei no lixo. Haviam tocado fogo e tinha chovido. Voltei lá, depois de um tempo, pensando: ele vai me dar uns tabefes, vai me dar uma surra! Falei pra ele que sabia que não era para mexer, mas precisei limpar a mesa e rasguei tudo. Desabei no choro. E eu disse: “Pode fazer o que quiser”. Ele falou: “Não há nada que valha as suas lágrimas. Vá ali e pegue um pacote de Minister (marca de cigarro) e pegue um pra você”.

B.U – O que aconteceu quando ele descobriu que você fumava?

V.D – Eu comecei a fumar na escola com 17 anos. Ele era fumante, mas obviamente eu não fumava na frente de nenhum Padre porque era a maior falta de respeito. Cada vez que eu queria fumar, eu saia e ia direto para o hall do bloco A. certo dia, ele disse: “Eu sei que você está saindo daqui pra fumar. A partir de hoje você vai fumar aqui”. Eu perguntei: “Na sua frente?” “Sim, na minha frente”. Cheguei  em  casa e fui peitar minha mãe. Ela ficou brava! Foi a única coisa que eu fui atrevida com ela (foi quando Valdice começou a fumar na frente da mãe).

B.U – Fica claro que Padre Abranches não foi apenas um chefe. Ele teve um papel paternal em sua vida. Qual foi o impacto da morte dele para você?

V.D – O sepultamento foi um dos mais bonitos que eu já vi no Recife. A TV Universitária fez um programa chamado ‘Uma vida, Um exemplo’ e eu ajudei a fazer o programa. Padre Abranches morreu nos meus braços. Eu estava fora do quarto quando Padre Mosca me chamou e disse: “Venha. Seu lugar é aqui dentro.” Estavam os outros Padres e aí ele se foi. A partir daí eu passei a dar muita assistência aos jesuítas idosos.

B.U – Além de trabalhar, você teve a sua formação acadêmica na Unicap…

V.D – Padre Abranches achava que eu tinha jeito pra conta e me incentivou a cursar Economia. Detestava aquelas contas. Passei dois anos e fui reprovada em contabilidade pelo professor Simão Coutinho, aí eu tranquei o curso. Ele vivia perguntando quando eu iria voltar, se estava esperando ele morrer (risos). Eu me irritei e fui fazer Direito. Conclui em 1977, mas nunca segui carreira. Não era a minha praia. Eu gostava mesmo era de Administração.

B.U – Você conviveu com sete dos oito reitores da Unicap. Alguma personalidade mais marcante entre eles?

V.D – Eu só não trabalhei com Padre Francisco Tavares de Bragança. Quando eu entrei aqui o Reitor já era Padre Aloísio Mosca. Todos, a seu modo, fizeram bastante pela Unicap. Convivi bem de perto com todos eles.

Acho que quem fez um pouco menos, porque passou pouquíssimo tempo, foi Geraldo Freitas, mas ele foi maravilhoso pra mim (risos). Ele me livrou de um estágio pedagógico na época do Colégio Vera Cruz. Eu tinha que dar aula lá em Nova Descoberta e detestava. Ele perguntou: “Quando é que você vai começar a trabalhar os dois expedientes aqui?”. Respondi que somente quando eu me livrasse do estágio. Ele foi falar com as freiras do Vera Cruz para ver se elas me liberavam. Logo depois uma delas me disse: “Para eu me ver livre do cachimbo daquele Padre eu liberei você. Eu não queria aquele Padre duas vezes aqui de jeito nenhum” (risos).

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Valdice acompanhou a expansão da Unicap

Padre Abranches como Tesoureiro, atuava também na captação de recursos externos e desenvolvia os projetos de expansão do campus. Quando ele morreu, deixou os blocos A e C prontos e o B em andamento. Adquiriu o Colégio Arquidiocesano, que funcionava no prédio onde hoje é a Fasa, e recebeu por doação o Liceu. De modo especial essa ajuda foi obtida através dos amigos e deputados federais Antonio Geraldo Guedes e Estácio Souto Maior (pai do ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet), que foi ministro da Saúde. Ao deputado Estácio Souto Maior foi prestada homenagem da Unicap com a colocação de placa no bloco A. A ajuda consistia em liberação de verbas federais, via emendas dos deputados para as obras de expansão da Universidade. Tudo isso através de projetos que constavam inclusive da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias).

Padre Lóssio deu um grande incremento gerencial na administração da Universidade. Já Padre Amaral contribuiu muito com sua experiência acadêmica e de conhecimento de informática. Ele veio da PUC-RJ onde havia implantado o primeiro computador do Brasil. Foi ele quem implantou o NIC (Núcleo de Informática e Computação da Unicap, pioneiro em Pernambuco, em 1973). Ele criou o curso técnico em processamento de dados que formou todo esse pessoal mais antigo de informática daqui do Estado. Foi ele também quem deixou pronto o prédio da Biblioteca.

Padre Peters mobiliou e ampliou o acervo da Biblioteca, construiu o bloco G4, inclusive implantando o Espaço Executivo com a contribuição do Padre Amaral na sua volta à Unicap. Construiu a Clínica Corpore Sano, incentivou a formação de docentes em programas de Mestrado e Doutorado, prestigiou a pesquisa e deu início, após intervalo, longo, às contratações de docentes em regime de tempo integral (RTI). Também aumentou os vencimentos dos empregados, ajustando as mensalidades aos níveis de mercado.

B.U – Na administração de Padre Pedro, a Unicap vive um novo momento expansionista. Qual a sensação de testemunhar tudo isso?

V.D – É agradável na medida em que a Unicap sempre vem melhorando, crescendo em termos acadêmicos. É muito gratificante ver o amadurecimento da Católica enquanto Universidade.

B.U – Saudade de algum momento?

V.D – No tempo de Padre Amaral, havia um grupo de funcionários que se reuniam, diariamente, ali perto da DSG, todos os dias depois do almoço. Saudade também dos encontros da associação dos antigos alunos…

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Fotos: Daniel França

B.U – Quais seus planos e metas para o futuro?

V.D – Quem sabe fazer uma terapia para me desligar da Unicap (risos). Com certeza eu vou ter que fazer porque não será uma saída fácil. Eu não penso nisso, mas vai chegar o dia. Eu tenho que fazer uma terapia porque senão vai ser uma depressão garantida. Esse foi o meu primeiro e único emprego. Eu tenho uma ligação familiar com a Unicap. Não dá pra ninguém entender a minha relação com a Universidade.

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