Constitucionalismo da Revolução de 1817 é debatido em seminário
|Reportagem: Assessoria de Comunicação da Procuradoria Geral do Estado
Marco na crise do império colonial português, a Revolução Pernambucana de 1817 foi analisada sob o ponto de vista do constitucionalismo pelo professor Gilberto Bercovici, da Universidade de São Paulo (USP), durante seminário na noite de terça-feira (28) no salão nobre na Faculdade de Direito do Recife (FDR/UFPE). O evento foi promovido pela Procuradoria Geral do Estado de Pernambuco (PGE-PE), em parceria com a FDR/UFPE e Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), e reuniu público diversificado, com a presença de procuradores do Estado, advogados, professores e alunos.
Professor titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP, Gilberto Bercovici situou a revolução no contexto histórico e político internacional e na relação de Pernambuco com Portugal. “Nenhuma revolta ou luta anticolonial havia conseguido ir tão longe na história da colonização portuguesa. Com a Revolução de 1817, inaugura-se no Brasil a possibilidade de instauração de uma nova ordem política social, de uma nova legitimidade”, afirmou.
Para ele, embora Pernambuco tenha buscado apoio das capitanias vizinhas, a Revolução de 1817 é por excelência uma manifestação do nativismo pernambucano. “Não por acaso, a justificativa inicial da legitimidade da revolução não dizia respeito à soberania popular. O grande motivo da insurreição seria o descumprimento da Casa Real de Bragança, com a alta tributação e outras medidas, do pacto com a capitania de Pernambuco, que teria sido estabelecido com a expulsão dos holandeses e a restauração do poderio português ainda no século 17. Os próprios impressos oficiais do governo provisório da República de Pernambuco continham muitas vezes a fórmula ‘Segunda Restauração de Pernambuco’”.
Segundo Gilberto Bercovici, no decorrer do processo revolucionário há uma troca do discurso legitimador para o da soberania popular. “Isso fica claro com a edição das bases do governo provisório da República de Pernambuco, remetidas em 29 de março para discussão na Câmara de Olinda. As bases, na forma de uma lei orgânica, iniciam seu texto declarando que o governo provisório é um governo revestido da soberania do povo desejando corresponder à sua confiança e convocando uma assembleia constituinte”, relatou.
“A questão constitucional é central no processo revolucionário de construção de uma nova ordem”, lembrou, contextualizando a crise angloamericana que resultou na independência dos Estados Unidos. “O texto das bases incorpora os princípios básicos do liberalismo das revoluções burguesas do século 18, com a divisão de funções e poderes do Estado e afirmação dos direitos individuais. A distinção entre as funções executiva, legislativa e judicial está assegurada em vários artigos bem como a responsabilidade dos agentes públicos que eventualmente pudesse prejudicar a soberania popular e os direitos individuais. A liberdade religiosa é assegurada, embora se mantenha o catolicismo como a religião oficial do Estado, e é garantida a liberdade de imprensa”, destacou.
Bercovici expressou sua opinião de que a Revolução de 1817 foi um movimento preferencialmente de elite, apesar do apoio de determinadas camadas populares. Segundo ele, assim como na revolução americana havia um problema central que dividia os revolucionários de 1817: a escravidão. “Houve colaboração de escravos com a formação de batalhões de cativos com promessa de alforria. Lideranças revolucionárias eram favoráveis à integração dos negros e à emancipação dos escravos, no entanto as propostas mais radicais de abolir a escravidão não tiveram como prosperar num movimento cujas principais lideranças eram proprietários rurais que possuíam escravos”, afirmou.
Em sua avaliação, a disputa entre as alas ajudou a retrair o apoio revolucionário e a quebrar a unidade em prol do movimento, facilitando a restauração monárquica. Para Bercovici, no entanto, mais importante do que discutir se a revolução era abolicionista ou escravocrata, constitucionalista ou nativista, é observar que, “apesar dos recuos e das derrotas, em 1817, pela primeira vez no Brasil a sociabilidade dominante, por um brevíssimo período, foi quebrada. E a mera possibilidade de uma nova reconfiguração social serviu de alerta para todas as camadas dominantes do império português e, depois, do império brasileiro”.
Debate – O procurador do Estado Marcelo Casseb e o coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unicap e procurador do Banco Central, Marcelo Labanca, debatedores do seminário, reforçaram o caráter pioneiro da revolução de 1817 e a importância de discuti-la. Para Casseb, na historiografia oficial, a importância de 1817 foi minorada porque não deveria ser lembrada. “E não deveria ser lembrada porque foi, com limitações e imperfeições, radical.” Citando Evaldo Cabral, Marcelo Casseb considera que o movimento pretendeu ser nacional. “Queria se formar a nação brasileira, com adesão das demais. Contestou a ordem com sucesso, embora breve. Foi a primeira vez que tivemos a contestação efetiva ao domínio português”, disse Casseb.
Ele pontuou que a gota d’água da revolução foi a criação de mais um tributo, que os pernambucanos tiveram de suportar para custear a iluminação pública implantada no Rio de Janeiro, a sede do governo. “Enquanto aqui nós estávamos no escuro, os portos não conseguiam escoar a produção e a insegurança era flagrante. Esse sentimento de injustiça aliado à circulação das ideias de liberdade encontra em Pernambuco solo fértil porque aqui já havia o desenvolvimento de centros, como o seminário de Olinda e o Areópago de Itambé (primeira loja macônica do Brasil), de tradição iluminista e liberal”, citou.
Para Casseb, as bases do governo provisório, ou lei orgânica, tentam de algum modo consagrar pelo menos provisoriamente esses ideais e trazer alguma legitimação ao governo. “Muniz Tavares diz que talvez um dos erros dos revolucionários foi perder tanto tempo na elaboração dessa lei orgânica, quando deveriam ter partido logo para a constituição elaborada diretamente pelo povo. Na minha opinião, a lei orgânica era necessária porque faltava um elemento essencial: o desenho geográfico dessa república. Como fazer uma constituição se não havia um território configurado?”, questionou.
Marcelo Labanca defendeu um estudo adequado da questão federativa na Revolução de 1817 e a inserção dos aspectos constitucionais do movimento na literatura constitucional no Brasil. “No meu ponto de vista, a lei orgânica de 1817 pode ser considerada a primeira constituição brasileira. Embora haja a questão territorial, nitidamente você tem uma carta constitucional nos moldes liberais. Foi o primeiro documento escrito no Brasil com todos os traços característicos de uma constituição, livre da interferência de Portugal e absolutamente negligenciada pelos manuais de direito constitucional porque vem do Nordeste. Um documento com tamanha riqueza, uma revolução negligenciada até hoje”, afirmou.
Labanca realçou que algumas das normas constantes da lei orgânica de 1817 estão na Constituição de 1988. Já outras como a igualdade de direitos em relação aos estrangeiros, inclusive em cargos públicos, demonstram um vanguardismo que não foi incorporado à legislação até hoje.
Professor da Faculdade de Direito do Recife, Maurício Rands, que assistiu ao seminário, estabeleceu comparações entre a Inconfidência Mineira e a Revolução de 1817. “O ideário da Revolução de Pernambuco era muito mais elaborado e adaptado a um projeto de república. Tanto que aqui a repressão foi cruel e atingiu todas as classes, e não apenas o alferes. A força da repressão mostra que entenderam o alcance, profundidade e clareza programática e de plataforma da Revolução”, disse.
Memória – O seminário foi coordenado pelo diretor da FDR/UFPE, Francisco Queiroz Cavalcanti, e pelo procurador-geral do Estado de Pernambuco, César Caúla; e organizado pelo coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE, Paulo Rosenblatt, e pelo procurador do Estado Walber Agra. Na abertura do evento, Francisco Queiroz e César Caúla ressaltaram a tradição de luta do Estado e a importância de discutir a revolução com reflexões para o momento atual.
“O Pernambuco de 1817 não é muito diferente do de hoje. Mudando os trajes, mudando as armas, as dificuldades são as mesmas em relação ao governo central. Uma província pobre e que tinha que contribuir com mão de obra e tributos. Hoje vemos o governo central desonerando com tributos, dificultando o regime de incentivos regionais, concentrando o poder nas mãos do poder econômico. Aquela época não é tão distante da nossa quanto pode parecer”, disse Francisco Queiroz.
“Comemorações como esta do bicentenário da revolução são simbólicas para combater nossa ignorância em relação à nossa história. Não permitir que as lutas e os sacrifícios caiam no esquecimento. Pernambuco perdeu territórios em seus movimentos libertários, mas ganhou muito na formação de sua identidade, essa feição libertária e altiva que continua necessária nos dias de hoje, quando há tanto a dizer sobre os contornos do nosso pacto federativo, sobre a injustiça na distribuição de recursos e de competências, para que haja mais desenvolvimento regional e mais igualdade entre os estados”, afirmou César Caúla.
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