A Igreja dos Pobres da Nação Romeira
|1º Seminário de Romeiros/as da Pastoral de Romaria
(Anotações e impressões de um participante)
Terra de meu padrinho Cícero, de 13 a 15 de julho de 2012
Por Artur Peregrino[1]
“Isso que vimos e ouvimos, nós agora o anunciamos a vocês” (1 Jo 1,3).
As cidades de Juazeiro e Crato estavam super movimentadas nesse final de semana. Tudo indicava que algo importante estava para acontecer. A tarde caía e a “Nação Romeira” ia chegando. O lento anoitecer do dia era coroado com ardentes sóis simbolizados em tochas que abriam essa assembleia magistral com um belo momento oracional. Tudo começou com uma caminhada da entrada do Centro de Formação até o salão de reunião. A voz crepuscular dos romeiros e romeiras, que tomaram conta do espaço chamado Centro de Expansão, simbolizava a grandeza do evento a se iniciar.
“A gente começa com Deus na frente”, disse um romeiro. Era 13 de julho do ano 2012. No Centro de Expansão da diocese do Crato, Ceará, teve início o 1º Seminário de Romeiros/as da Pastoral de Romaria. Esse encontro da Igreja dos Pobres logo começou a ser chamado de Concílio. O termo “Igreja dos pobres” foi utilizado, pela primeira vez, pelo papa João XXIII na convocação do Concílio Ecumênico Vaticano II (10.09.1962): “A Igreja apresenta-se como é, e como quer ser, como a Igreja de todos, particularmente a Igreja dos pobres”. A Pastoral de Romaria da diocese do Crato escolheu a melhor maneira de comemorar o quinquagésimo aniversário do início do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962 – 1965): reunir o povo romeiro do Nordeste em Concílio, acolhendo a ação do Espírito nos dias atuais e sempre de olhar no futuro.
Um Concílio é sempre um novo Pentecostes da Igreja, que, na sua problemática e disputada recepção, é sinal de contradição e apelo para conversão e mudanças, nos atuais invernos eclesiais e eclesiásticos. Tudo começa muito simples. É preciso acreditar e ter fé no Deus da vida que nos fala através dos pequeninos, seus preferidos.
Essa grande Assembleia do Povo de Deus teve a presença de mais de 100 pessoas. Reuniu cerca de 35 romeiros (Alagoas, Pernambuco, Sergipe e Ceará), 13 seminaristas, 55 membros das equipes de pastoral de romaria e mais 5 da Equipe de Pastoral diocesana. O que foi esse Concílio na Terra do Padrinho Cícero e da Mãe das Dores?
Reabastecidos no espírito missionário, de uma Igreja que se coloca como servidora dos mais humildes, fomos descobrindo a vontade de Deus naquele momento. A partilha das experiências foi nos orientando durante todo o encontro. Esse Concílio da Nação Romeira foi organizado por uma equipe de Pastoral de Romaria da diocese do Crato, sob a coordenação da Irmã Annette Dumoulin, religiosa da Congregação das Cônegas de Santo Agostinho.
O tema geral do seminário foi: Espiritualidades do Caminho e do Templo. O segredo da acolhida da Pastoral de romaria! Nós estávamos atentos a acolher o que o Espírito nos dizia. Através das experiências compartilhadas da “Nação Romeira”, fomos percebendo que aí estava bem presente uma “igreja que nasce pela força do Espírito no meio do povo”.
Historicamente, as expressões de fé do povo romeiro foram se firmando através do tempo. Constituindo-se assim numa eclesialidade romeira de uma tradição nordestina. Numa afirmação da Igreja dos Pobres. No caminho do Juazeiro e no próprio espaço da romaria o/a romeiro/a é sujeito. Não só tem um jeito próprio de ser, mas faz acontecer a romaria. Chamamos isso de protagonismo dos pobres. Esse termo vem como eco dos principais documentos da Igreja na América Latina após o Concílio Vaticano II.
A música, o canto, fez parte integrante de todo encontro. Do início ao final. O povo romeiro é um povo cantante. É um povo festivo. Através de seus benditos e cânticos expressa sua visão de mundo. O canto do povo romeiro faz voltar à fonte que anima a fé e irriga a esperança. Percebíamos que o cântico expressa a consciência da Nação Romeira. O canto na linha da tradição romeira é um alimento que mexe com raízes que vão para além do alcance da razão. De fato, o canto ajuda a não desistir da caminhada e a resistir em um jeito próprio de ser igreja no coração do Nordeste.
Tratando-se da espiritualidade do caminho procuramos olhar para Jesus de Nazaré. O que Jesus veio ensinar é bem simples. É o seu caminho. A vida de Jesus foi uma peregrinação. O evangelho de João mostra Jesus subindo à Jerusalém, para participar das festas do seu povo, de modo particular a da Páscoa e da festa das Tendas. Jesus participou das peregrinações do seu povo. Jesus se inseriu na cultura, mas foi além dela. Em sua missão, Ele teve uma postura muito crítica em relação ao templo. Jesus via um perigo no Templo (cf. Jo 2, 13-22). Por isso, teve uma atitude muito crítica em relação ao Templo como centro cultural e se refere a si próprio, ou a seu corpo, como sendo o Templo verdadeiro.
O Templo só tem sentido se for gerador de vida. O que o romeiro/a procura no Templo? Com certeza uma orientação para a vida que aponta para a realização dos grandes desejos humanos, superando os medos, as inseguranças e as dificuldades. Eis um grande desafio para o agente de pastoral de romaria que se situa a partir do Templo.
Preocupa-nos perceber que, muitas vezes, há um descompasso entre as expressões de fé do povo romeiro e a compreensão de alguns agentes de pastoral de romaria. É fundamental perceber e encarar a romaria como fazendo parte de uma lógica própria. Por isso, o agente de pastoral de romaria deve procurar captar as expressões de fé do povo, de origem indígena e africana, elementos mais profundos de seu pensar e viver religioso. Deve-se integrar o agente de pastoral ao esforço real de compreender a religião do povo, do pobre, sobretudo no seu pensar sapiencial, simbólico.
Esse Encontro Conciliar foi, sobretudo, um ponto de partida e colocou alguns desafios concretos no sentido de impulsionar uma pastoral de romaria que integre todos esses jeitos e expressões: procurar celebrar uma liturgia realmente romeira onde oração, fé e vida se implicam mutuamente; não perder a tradição e valorizar os cantos de raiz (expressão natural da alma de um povo), sobretudo, os “benditos” tradicionais já consagrados pela Nação Romeira; OLHAR o/a romeiro/a como sujeito da romaria (“se você não fita o cliente, você não se recomenda a ele”); ESCUTAR / FALAR com o/a romeiro/a para saber a origem de sua história; o GESTO deve expressar uma dinâmica psicológico-espiritual de profunda atitude de acolhimento.
Seria uma violência indevida contra os/as romeiros/as se esse protagonismo não continuar. O protagonismo dos/as romeiros/as se justifica profundamente pelo sacerdócio comum dos fiéis. Muitas experiências parecidas já demonstraram que o imobilismo gera o comodismo e este sacrifica a responsabilidade pastoral. O contrário do protagonismo é transformar os/as romeiros/as em ingênuos consumidores da romaria. É importantíssimo ter presente que o clero não está acima do romeiro e nem o romeiro abaixo do clero.
Anima-nos a resistência, a coragem e a determinação da Nação Romeira para prosseguir o caminho de vivência de uma tão rica e profunda espiritualidade. A espiritualidade vivida pela Nação Romeira reflete uma sede de Deus que somente os pobres e simples podem conhecer. É uma fé vivida, em grande parte, pelo povo trabalhador do campo. Vemos que a marca da romaria de Juazeiro é seu rosto de homens e mulheres tinturados pela dor e esperança. Pela alegria nordestina. É expressão de fé de um catolicismo profundamente inculturado. São vidas marcadas por experiências e práticas partilhadas em contato com a mãe terra. É um povo que vive da esperança de dias melhores e por isso anseia a efetivação de um mundo onde se viva a justiça e a solidariedade.
Vimos que seguir o caminho de Jesus é refazer, em cada momento da história, a atitude fundamental de Jesus. E a sua atitude fundamental foi a de ler nos acontecimentos a vontade do Pai. E os acontecimentos colocavam Jesus ao lado dos mais pobres, marginalizados até a doação completa de sua vida. Jesus se insere na tradição do Antigo Testamento em que os pobres eram os destinatários privilegiados da palavra e do amor de Javé. Jesus se identifica com eles (Mt 25), fazendo deles sacramentos de Deus. “Quem tem ouvido, ouça o que o Espírito diz às Igrejas” (Ap 2, 17).
Por fim, cada um experimenta algo próprio em sua romaria. Um percebe suas limitações e impotência, quando os pés não podem mais levá-lo ao horto; outro adquiri novos entendimentos; aquele outro sente que precisa mudar sua vida. Para o/a romeiro/a é importante a experiência da chegada. A romaria sempre tem um objetivo. Lá chegando, o/a romeiro/a chega a si mesmo, a Deus.
[1] José Artur Tavares de Brito é Mestre em Antropologia Cultural pela Universidade Federal de Pernambuco (1999). Possui graduação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1995), graduação em Bacharelado em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (1996), graduação em Teologia pelo Instituto de Teologia do Recife (1987). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia da Religião, atua principalmente nos seguintes temas: teoria da complexidade, antropologia urbana, sistemas simbólicos, ritualidade, catolicismo, terra, sertanejo, contemporaneidade, religião, cidade e pastoral. É integrante do grupo de pesquisa Transdisciplinaridade e Diálogo entre Culturas e Religiões. Atualmente é Professor da Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP e colaborador do Instituto Humanitas Hunicap – IHU.