Universidade Jesuíta e Democratização da Sociedade – conferência do Pe. Arturo Sosa
|Confira abaixo o texto da conferência do Superior Geral dos Jesuítas, Padre Arturo Sosa, realizada na manhã desta terça-feira (24/10), na Universidade Católica de Pernambuco, na abertura das comemorações dos 75 anos da Unicap e da 15ª Semana de Integração Universidade Sociedade.
Universidade jesuíta e democratização da sociedade
1. Nesta primeira visita ao Brasil como Prepósito Geral da Companhia de Jesus, alegra-me, como venezuelano¹, vir à “Veneza brasileira”, e conhecer algo do povo pernambucano, sua cultura, sua Igreja, que presenteou a Igreja universal com o profeta Dom Helder Camara.
Com esta visita, confirmo a missão dos meus companheiros jesuítas nesta Universidade, a primeira “católica” do Norte e Nordeste do Brasil. A Universidade Católica de Pernambuco é um sinal inequívoco da firme decisão missionária da Companhia de Jesus: ao longo da história, os jesuítas foram expulsos de Pernambuco várias vezes; em diferentes períodos, colégios foram abertos e fechados. O antigo Colégio Nóbrega celebra este ano o centenário de sua fundação com a determinação de seguir em sua missão educativa reinventada a partir da Universidade, no Liceu Nóbrega e no centro Fé e Alegria. Da mesma maneira, a antiga capela do colégio converteu-se no Santuário Arquidiocesano de N. Sra. de Fátima. Entre desafios e oportunidades, presentes no centro e na periferia, os jesuítas confirmam este lugar e o trabalho educativo como estratégicos para irradiar sua missão no Nordeste do Brasil. Em 2018, a UNICAP celebrará seu 75º aniversário. Nascida como Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manuel da Nóbrega. Trata-se de um desdobramento do trabalho educativo do antigo Colégio Nóbrega. De fato, as universidades da Companhia não nascem por “decretos de governo”, mas como resposta aos apelos da nossa missão evangelizadora, como fruto de um processo de discernimento, em colaboração com a sociedade e a serviço da Igreja.
2. Agradeço-lhes pela acolhida que recebo e com muita satisfação inauguro a programação deste ano jubilar com a abertura da 15ª Semana de Integração Universidade/Sociedade. Disseram-me que, ao longo de uma semana, o campus se transforma em um grande fórum de encontros, reflexões e atividades: um tempo favorável e um espaço oportuno para renovarmos nosso compromisso como universidade jesuíta, no contexto da sociedade contemporânea, aqui e agora. Importa, portanto, celebrar o jubileu da UNICAP com memória agradecida e visão de futuro, olhando o presente como consolidação deste vigoroso projeto universitário, que tem enfrentado dificuldades de todo tipo, mas, hoje, respondendo plenamente às exigências de uma verdadeira universidade, com qualidade acadêmica reconhecida por gerações, com crescimento notável na pesquisa e incidência social por meio de seu programa de extensão.
No espírito inaciano do Magis – buscar sempre melhorar – a UNICAP, ao longo de sua história, foi configurando seu espírito comunitário, marcado por uma catolicidade aberta, fiel ao Evangelho e segundo as orientações da Igreja, além de ser uma instituição amplamente conhecida por seus valores humanísticos e reconhecida por seu compromisso com o desenvolvimento regional, a Católica de Pernambuco dilata-se cada vez mais, com o mundo em rede.
Eu gostaria de refletir com vocês, caros representantes da comunidade acadêmica da UNICAP, a partir deste patrimônio vivo, olhando para o futuro desta instituição; professores, responsáveis administrativos e estudantes, jesuítas e outros, todos colaboradores em uma missão comum. Para uns, a motivação a partir da fé cristã é explícita; para outros, permanece no segredo dos corações e dos processos; mas todos estão comprometidos em buscar, responsavelmente, alternativas para uma nova sociedade, particularmente frente à profunda crise em que se encontra o Brasil, não sem relação com o contexto latino-americano e internacional. Se, por um lado, a Universidade não pode transformar toda a sociedade, em sua complexidade cada vez mais plural, por outro, tampouco pode prescindir de dar sua contribuição na formação de agentes sociais. Como diz o Papa Francisco em Evangelii Gaudium² e a Companhia de Jesus retomou na recente Congregação Geral 36ª: o que precisamos priorizar são as ações que geram processos novos na sociedade³.
3. O Padre Adolfo Nicolás, meu predecessor, em sua conferência, aqui na UNICAP, em 2013, havia-se inspirado em perguntas que nos fazem pensar: Por que uma universidade jesuíta aqui no Recife? E no Brasil, país emergente e promissor, até que ponto ainda se justifica a necessidade de atuação jesuíta na educação superior? Quais os desafios do apostolado
acadêmico e quais as novas fronteiras da educação? O que distingue uma universidade jesuíta de outras instituições? Quais são as perspectivas de futuro de uma universidade católica, jesuíta e comunitária no contexto de uma sociedade cada vez mais laica, um mundo totalmente globalizado e uma economia de mercado que se impõe? Naquela época, ele havia optado por dar um título poético a sua conferência: Na cidade das pontes, uma universidade sem fronteiras.
Tanto as perguntas quanto as orientações do P. Nicolás continuam atuais e válidas. Entretanto, passados quatro anos, houve muitas mudanças, especialmente no país. As múltiplas facetas da crise brasileira – política, ética, social e econômica – têm causas e fatores conjunturais próprios, sem desprezar sua relação com a crise mundial. Coloca-se em questão o projeto das democracias do pós-guerra e, inclusive, exige-se uma revisão das estratégias de diálogo com as realidades deste mundo, o que exige que atualizemos nossa missão profética.
Assim como o Papa Francisco destacou que não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise Sócioambiental⁴, também podemos dizer que não existe uma crise brasileira e outra mundial, uma crise política e outra financeira e outra ética: há uma complexa crise das sociedades democráticas e dos valores humanísticos. Podemos, portanto, falar do desafio da redemocratização em pelo menos dois sentidos: primeiro porque a situação de muitos países, incluindo-se o Brasil, requer novas elaborações ideológicas e práticas, nas quais se reconcilie o tecido social, trabalhando a credibilidade das instituições democráticas, não sem transformá-las.
Em segundo lugar, trata-se de construir uma nova fase democrática, porque as mesmas democracias ocidentais se encontram-se em uma crise de modelos, de representatividade e de liderança. Demo-nos conta de que a formalidade democrática do sufrágio não garante, por si mesma, a legitimidade dos processos, a coerência dos grandes princípios e a atualização das conquistas democráticas. Por sua vez, os imperativos da globalização do mercado e da globalização sem fronteiras reforçam o neoliberalismo sem piedade e suscitam chefes de estado de perfil volátil, personalista e duvidoso.
No entanto, todas as grandes questões da sociedade e os problemas da humanidade não são somente desafios, mas também oportunidades para atualizarmos nossa missão, faz-nos repensar nossa parte de responsabilidade e testar nossa capacidade de transformação. Por isso, inspirado na tradição da Igreja e no modo de proceder da Companhia de Jesus, gostaria de aprofundar uns pontos importantes que dizem respeito à missão de uma universidade católica jesuíta, bem como assinalar alguns aspectos de sua contribuição específica ao projeto de reconstrução das bases democráticas que permitam caminhar na direção de uma sociedade sustentável e reconciliada, inspirada no humanismo cristão, no diálogo com os demais, na perspectiva do Reino de Deus.
4. A experiência milenar da Igreja adverte-nos quanto aos riscos dos idealismos utópicos em períodos de crises de época. Vivemos um paradoxo: se, de um lado, a modernidade com seu projeto de autonomia dos indivíduos e as sociedades desmontaram os feudos e o sistema da cristandade medieval, decretando inclusive a morte de Deus, por outro lado, as promessas da modernidade não apenas não se cumpriram, mas também são questionáveis pelos mesmos resultados dramáticos e os desequilíbrios que geraram, não somente entre povos e nações, mas inclusive no ecossistema.
É bem verdade que muitas conquistas modernas, tanto da ciência quanto da consciência de direitos humanos são irrenunciáveis. Mas, paradoxalmente, as consequências do projeto moderno indicam os sintomas de uma crise sistêmica. Faz-se particularmente visível na desigualdade social cada vez mais grave, nos novos rostos da violência e nas guerras, nas graves ameaças socioambientais etc.
A recepção criativa do Concílio Vaticano II no continente latino-americano havia revelado, desde o princípio, o reverso da história, particularmente as desigualdades sociais e o pecado estrutural, cujo resultado é ricos cada vez mais ricos à custa de pobres cada vez mais pobres. Mais que ideologias frias, são rostos sofredores, como nos fizeram ver os Bispos latino-americanos reunidos em Puebla (1979), revelando, à luz do Cristo, os crucificados deste mundo. Há pouco mais de 50 anos, o Concílio Vaticano II continua em processo de recepção, não apenas como uma referência a mais, mas como uma bússola para a Igreja em sua missão.
Os próprios fundamentos das sociedades democráticas estão hoje ameaçados, por seus paradoxos e contradições:
* Uma comunicação sem limites, sem critério para discernir a verdade;
* Instituições democráticas de controle e transparência que convivem com a corrupção estrutural nelas mesmas;
* Conta-se com recursos tecnológicos muito sofisticados, mas incapazes de acelerar a superação da pobreza e a miséria das maiorias;
* Um processo globalizador capaz de integrar a humanidade inteira como uma única comunidade, mas incapaz de frear o domínio financeiro sobre o sistema mundial;
* As Ciências e os diversos saberes capazes de otimizar os recursos naturais, mas incapazes de assegurar a preservação do meio ambiente e o equilíbrio social, dentro de uma ecologia integral;
* Existe consciência crescente dos direitos fundamentais e dos valores humanos inalienáveis, mas não se consegue conter a aparição de novas e múltiplas formas de violência, nem superar tantas formas de discriminação social, racial e religiosa.
A Igreja pós-conciliar foi marcada pela prática de discernir nos acontecimentos, nas exigências e aspirações, em que participa juntamente com os homens de hoje, quais são os verdadeiros sinais da presença ou da vontade de Deus⁵. É interessante destacar como os três Papas mais recentes, de formas distintas, mas convergentes, viram, na universidade católica, um
valioso instrumento de evangelização das sociedades.
Como respondemos à missão evangelizadora da Universidade a partir do carisma inaciano?
5. João Paulo II, depois de promulgar Sapientia Christiana (1979), com as orientações fundamentais para as universidades e faculdades eclesiásticas, aprofunda a identidade e missão da universidade católica, em Ex Corde Ecclesiae (ECE, 1990): nascida do coração da Igreja e inserida na sociedade humana⁶, a universidade católica é um instrumento, cada vez mais eficaz, de progresso cultural, quer para os indivíduos, quer para a sociedade⁷. Graças à autonomia institucional e liberdade acadêmica⁸ que lhe são próprias, a universidade católica deverá ter a coragem de proclamar verdades incômodas que não lisonjeiam a opinião pública, mas que são necessárias para salvaguardar o autêntico bem da sociedade⁹. Segundo este documento que orienta a Carta de Princípios da UNICAP (1995), a missão fundamental de uma universidade é a procura contínua da verdade, a conservação e a comunicação do saber para o bem da sociedade, e as universidades católicas participam dessa missão com o contributo das características e finalidades específicas¹⁰.
O que a “marca” jesuíta acrescenta a essa identidade e missão das universidades católicas?
*Primeiramente, trata-se de ser “verdadeira” universidade, segundo as exigências da qualidade acadêmica, para ter credibilidade e poder, assim, contribuir, eficazmente, na busca da verdade;
* Em segundo lugar, torna mais profunda a catolicidade nas fronteiras ideológicas e existenciais, conforme a tradição e os valores evangélicos;
* Em terceiro lugar, a marca jesuíta acentua algumas dimensões da universidade e de sua catolicidade, de acordo com o carisma e a espiritualidade inacianos, como bem expressa o lema da UNICAP: a qualidade acadêmica visa à excelência humana, inspirado no que havia dito o P. Peter-Hans Kolvenbach e a máxima inaciana Em tudo amar e servir;
* Esse estilo inaciano está presente em cada aspecto que caracteriza uma universidade católica: o serviço e a relação da Igreja com a sociedade; o diálogo com a cultura, não apenas científica, mas também outros saberes; a evangelização, em seu sentido amplo e a partir do meio acadêmico, e o serviço pastoral, que oferece espaços para fazer crescer na fé os que creem, fomentando a tolerância e ajudando na busca por Deus.
Em poucas palavras, como universidade católica e jesuíta, a UNICAP está chamada a:
*Aprofundar a compreensão da sociedade atual, seus contextos regional e nacional, contribuindo para identificar os problemas fundamentais e as causas desta crise complexa;
*Em nome de sua autonomia universitária, inspirada na liberdade cristã e na perspectiva da libertação do Reino, salvaguardar o bem comum, valor tão próprio das sociedades democráticas e dos estados de direito;
* E, ao mesmo tempo, proclamar sem medo verdades incômodas, ainda que não agradem a governos ou a outros poderes instituídos.
Não por acaso, a UNICAP recebeu a medalha Ex Corde Ecclesiae e, posteriormente, seu Reitor assumiu a presidência da Federação Internacional das Universidades Católicas (FIUC). Do mesmo modo, a UNICAP é membro fundador da rede latino-americana de universidades confiadas à Companhia de Jesus (AUSJAL).
6. Bento XVI, um Papa de perfil universitário, não deixou de refletir sobre as lógicas de uma sociedade moderna sem Deus e desmascará-las. Como jesuítas, seguimos sentindo-nos impulsionados pelo pedido que nos fez o Papa Bento XVI, em seu discurso à 35ª Congregação Geral da Companhia de Jesus, em 2008: A vossa Congregação desenrola-se num período de profundas mudanças sociais, econômicas, políticas; de acentuados problemas éticos, culturais e ambientais e de conflitos de todo o gênero […]. Como, mais que uma vez, vos disseram os meus Predecessores, a Igreja precisa de vós, conta convosco e continua a voltar-se para vós com confiança, em particular para chegar àqueles lugares, físicos e espirituais, aonde outros não chegam ou têm dificuldade de chegar. Ficaram esculpidas no vosso coração estas palavras de Paulo VI: “Onde quer que, na Igreja, mesmo nos campos mais difíceis e de ponta, nas encruzilhadas das ideologias, nas trincheiras sociais, existiu e existe confronto entre as exigências candentes do homem e a mensagem perene do Evangelho, lá estiveram e lá estão os jesuítas” (Discurso à 32ª Congregação Geral, 3 de dezembro de 1974).
Portanto, ainda que nem sempre compreendidos por alguns católicos, os quais nem sempre estão conscientes da missão específica de uma universidade, nossa convicção missionária nasce da obediência e da escuta à voz da Igreja que, por meio dos Pontífices, nos interpela, confia e envia às fronteiras mais desafiadoras, não apenas geográficas, mas também ideológicas
e existenciais.
De fato, uma universidade deve ser o lugar onde se discutem, séria e profundamente, temas que em outros espaços e âmbitos eclesiais têm menos possibilidade de serem discutidos. É uma tarefa ao mesmo tempo difícil e arriscada, que vai do discernimento das questões até o posicionamento em situações complexas, mas sempre no sentido da “paciência histórica”: sabemos que temas aparentemente incompatíveis com o cristianismo, em uma época, revelaram questões importantes que permitiram aprofundar uma atitude pastoral mais evangélica por parte da Igreja em outro momento da história. Por isso, uma universidade católica e jesuíta não poderá fugir dessas fronteiras da modernidade, das crises societárias e humanitárias, inclusive porque, se assim não for, a ausência da Igreja nessas questões seria uma omissão; o silêncio do Evangelho, uma lacuna; e os companheiros de Jesus, “desobedientes” ou surdos aos grandes chamados do Reino.
7. Em tempos de Papa Francisco, a Igreja e a Universidade são exortadas a entrar em uma dinâmica “em saída”, para expressar sua identidade e cumprir sua missão: a Igreja não deve ser autorreferencial, portanto, tampouco a Universidade deve permanecer encerrada em seu campus. O Papa convida a Igreja e, do mesmo modo, a universidade católica, a sair de seus muros. Isso significa não apenas sair das salas, dos laboratórios ou da geografia do campus, mas conhecer melhor a realidade, com a missão de transformar o mundo.
Em sua visita à Pontifícia Universidade Católica do Equador, confiada aos jesuítas, o Papa falou aos professores e estudantes sobre a importância da Universidade e seu papel específico: as comunidades educativas têm um papel essencial na construção da cultura e da cidadania. Mas também advertiu: Cuidado! Não basta fazer análises, descrições da realidade; é necessário gerar os âmbitos, os espaços de verdadeira busca, debates que gerem alternativas às problemáticas existentes, sobretudo hoje. É necessário ir ao mais concreto. Em outras palavras, a Universidade não apenas deve criar ambientes de verdadeira busca da verdade, promovendo estudos e debates abertos, mas, ao mesmo tempo, deve propor alternativas para os grandes problemas da humanidade.
De certo modo, vocês estão dando passos nesse caminho: quando a UNICAP afirma que seu campus é a cidade, entra de cheio nessa dinâmica de uma Universidade “em saída” tanto na maneira como concebe os processos de aprendizagem, relacionando teoria e prática, como na prestação de serviços às comunidades das periferias da região metropolitana.
Igualmente, essa dinâmica de “intercâmbio de saberes” na Semana de Integração da UNICAP/Sociedade é inovadora frente ao estilo academicista e elitista de algumas universidades. Nesta atividade, atuam os princípios da educação jesuíta: partimos do princípio de que as pessoas se transformam por meio da educação, e nossa aposta é que formemos pessoas para os demais.
Nas últimas décadas, tem havido, no Brasil, um grande desenvolvimento do “terceiro setor”, no âmbito da educação superior. Isso rompeu a polarização reducionista entre público e privado e abriu espaços para políticas públicas de inclusão social por meio da educação. A UNICAP faz parte deste processo desde o início. Levou à aprovação da “Lei das Instituições de Ensino Superior Comunitárias”¹¹. Nem pública estatal, tampouco privada particular, a universidade comunitária dá lugar a essa “terceira via”: uma instituição pública, sim, porque serve à sociedade, mas não estatal. Isso revela o papel sociopolítico de nossa missão em diálogo com outros para avançar em políticas comuns. Nesse sentido, a UNICAP é fruto da mesma sociedade civil organizada, sob a liderança de jesuítas de várias gerações, e segundo as orientações da Igreja e da Companhia de Jesus. A universidade coloca-se a serviço da sociedade, não apenas mediante a inclusão social pela educação superior, mas também pelo desencadear de processos de transformação social.
8. As Congregações Gerais da Companhia de Jesus, pondo em prática o Concílio Vaticano II, compreendeu a missão jesuíta como o serviço da fé e a promoção da justiça. Na 36ª Congregação Geral, (outubro/novembro do ano passado) fala-se de uma missão de reconciliação e de justiça. De fato, nos últimos anos, o tema da reconciliação vem apresentando-se cada vez com maior intensidade, dadas as tantas situações humanas de conflito, desde os bélicos até os de ordem pessoal. Contudo, não se trata de um novo binômio.
Na verdade, deveríamos reler a 32ª Congregação Geral desde o trinômio que já estava presente em sua intuição e agora se explicita: A missão da Companhia hoje é o serviço da fé, do qual a promoção da justiça constitui uma exigência absoluta enquanto faz parte da reconciliação dos homens, exigida pela reconciliação dos mesmos com Deus¹². Se, para uns, a fé e a
reconciliação com Deus não se apresentam de forma explícita, podemos igualmente trabalhar juntos na missão de reconciliação de tantas situações humanas e da justiça socioambiental.
Nessa perspectiva, à guisa de conclusão aberta, gostaria de destacar alguns pontos de atenção para o futuro da UNICAP:
(1) Uma Universidade comunitária, católica e jesuíta não pode “conformar-se” com a sociedade e seu status quo, mas deve buscar atores e meios para transformá-la, em nome do Evangelho e com vistas ao Reino de Deus.
Sabemos que a sociedade é leiga, segundo o estado democrático de direito, e já não depende da tutela da Igreja, como era no regime da cristandade. Por outro lado, a Igreja tem uma missão profética: deve denunciar aspectos desumanos e injustos na sociedade, para anunciar a Boa Nova de Jesus Cristo. Por meio do pensamento crítico, identificam-se processos contrários à dinâmica do Reino de Deus e se discernem palavras e ações que visam à liberdade humana profunda e a libertação efetiva.
Uma universidade católica, com essa visão mais universal e aberta, poderá contribuir ainda mais com a missão evangelizadora da Igreja, a partir da sua especificidade, isto é, da busca incessante da verdade, mediante o conhecimento científico e tantos outros saberes, em diálogo com a sociedade e com vistas a uma humanidade responsável, à imagem e semelhança de Deus.
(2) Concretamente, a sociedade brasileira está debilitada, golpeada por escândalos de corrupção e dividida entre dois grandes projetos políticos e ideológicos. Colocam-se em questão as conquistas do frágil processo de democratização que o país viveu nas últimas décadas.
O Brasil deve seguir seu processo de “memória e verdade”. Recordemos o assassinato do P. Henrique, em 1969; coordenador da pastoral juvenil e universitária, missão recebida do seu amigo Dom Hélder. Apenas agora foram revelados os fatos sobre sua morte. Esse é um processo doloroso, mas que não pode ser evitado se se quer honrar as vítimas e criar uma memória histórica nas gerações mais jovens, evitando-se, assim, que se alimente a ideia equivocada de que a violência e a falta de respeito pelos direitos humanos e cidadãos, a ruptura do estado de direito, possam ser caminho de solução.
Por meio da Cátedra Dom Hélder de Direitos Humanos e do serviço jurídico oferecido por outros núcleos da Universidade a pessoas e comunidades periféricas, a UNICAP promove estudos que aprofundam os fatos, fazem memória e justiça. Sem memória e verdade, não existe o verdadeiro processo de reconciliação. A UNICAP, com os serviços que presta nesses campos, está respondendo, de maneira exemplar, ao chamado da Congregação Geral 36ª, que convidou toda a Companhia a viver como companheiros em uma missão de Reconciliação e de Justiça.
(3) Convém, pois, discernir, com base na pesquisa acadêmica e nos saberes populares, tanto no plano político quanto no existencial, as causas e os efeitos de uma onda de conservadorismo retrógrado que se faz notar em muitas partes do mundo, sem excluir o Brasil. Como nos recorda uma e outra vez o Papa Francisco, não podemos admitir o imperativo de uma tecnociência a serviço da globalização do mercado neoliberal, pondo em risco conquistas democráticas e atentando contra os grandes valores humanísticos inspirados na tradição cristã, bem como no valor de outras expressões religiosas e a sabedoria de tantas culturas.
As universidades, portanto, têm um papel indispensável. Cabe a elas tanto o estudo crítico dos fatores e causas dessa realidade global quanto das alternativas possíveis a curto, médio e longo prazo.
(4) O mundo funcionando cada vez mais em rede. Ninguém pode ou deve fazer as coisas por conta própria, isolado. A mesma complexidade da sociedade e as novas maneiras de atuar nela o impedem. Por isso, encorajo a comunidade universitária da UNICAP a continuar incrementando e fortalecendo sua participação nas redes nacionais e internacionais, católicas e jesuítas, com outras instituições acadêmicas (comunitárias, públicas, estatais), com organizações eclesiais e outras organizações sociais.
Sem colaboração e sem trabalho em rede, é impossível, hoje em dia, que uma Universidade cumpra com sua missão. O Instituto Humanitas Unicap é um exemplo a mais da atenção posta na transversalidade dos saberes e na integração das diversas dimensões da missão universitária, construindo pontes entre a Universidade e a sociedade.
Caberá à UNICAP, neste ano jubilar, discernir formas de expansão, sempre por meio de diversos tipos de associação e colaboração com outras obras (da Companhia de Jesus, Igreja e sociedade civil). Nesse sentido, o horizonte da colaboração com os profissionais egressos de suas salas de aula é uma oportunidade privilegiada para obter mais e melhores resultados no esforço comum pela construção de uma nova sociedade mais justa e solidária.
Desejo a toda a comunidade universitária que esta Semana de Integração e as atividades do Jubileu consolidem a UNICAP como verdadeira universidade:
*Católica, segundo as diretrizes de Ex Corde Ecclessiae;
*Comunitária, em conformidade com a legislação brasileira;
* Jesuíta, na dinâmica do espírito que anima a Companhia de Jesus em sua missão: formar homens e mulheres para os demais.
A Universidade Católica nasce do coração da Igreja para pulsar no coração da humanidade.
Arturo Sosa, S.I.
24 de outubro de 2017
¹. Nota do tradutor: O nome Venezuela significa “pequena Veneza”, e foi dado pelo explorador Américo Vespúcio, que encontrou casas construídas dentro do lago Maracaíbo, e achou parecido com a cidade italiana.
². n. 223.
³. Congregação Geral 36ª (CG 36), D. 1, 37; veja-se também “Alocução do Papa Francisco à
CG 36”, 24 de outubro de 2016.
⁴. Laudato Si’, n. 139.
⁵. cf. Gaudium et Spes n. 11, § 1.
⁶. ECE n. 37.
⁷. ECE n. 31.
⁸. ECE n. 37.
⁹. ECE n. 32.
¹º. ECE n. 30.
¹¹. (Lei 12.881/2013) sancionada pela Presidente Dilma Rousseff.
¹². Congregación General 32ª, D. 4, n. 2.