Fundamentalismo religioso e a mercantilização do sagrado no neopentecostalismo

Professor Drance Elias da Silva, experiente pesquisador dos estudos de religião pelo Programa de Ciências da Religião da Unicap, tem-se dedicado à pesquisa do fenômeno religioso, em religião e economia, especificamente na mercantilização do sagrado. Em entrevista a Paula de Andrade para a Revista Bravas, sob o título Iglesias neopentecostales: fundamentalismo religioso y mercantilización de lo divino,  falando do contexto e surgimento dessas igrejas, analisa o que representam na política brasileira (de ambiente bastante conturbado, como bem retratado em matéria postada pelos Estudos de Religião, em que os Jesuítas, em Nota, denunciam e expressam sua indignação com a condução das crises no Brasil), seus interesses no plano econômico e como se vinculam ao “espírito do capitalismo”, além do que significam para o avanço do fundamentalismo religioso no país. Veja a matéria completa dessa entrevista que reproduzimos na íntegra, a seguir.

Levando-se em conta a riqueza que construíram desde a fundação até hoje, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e a Internacional da Graça de Deus, ampliaram seu patrimônio em um curto espaço de tempo. Especialmente a Universal. Juntas, estas e outras denominações religiosas que se configuram como “neopentecostais” representam um poderio econômico no campo religioso brasileiro, com templos espalhados dentro e fora do Brasil, incluindo países da América Latina, Ásia e África. Tudo isso não significa somente “cristianização”, mas expansão de um poder econômico muito grande, afirma o sociólogo e professor Drance Elias da Silva, pesquisador da área de Ciências das Religiões, com interesse em religião e economia, mais especificamente quanto à mercantilização do sagrado. Na entrevista com Bravas, ele detalha o contexto de surgimento dessas igrejas, analisa o que representam na política brasileira, seus interesses no plano econômico e como se vinculam ao “espírito do capitalismo”, além do que significam para o avanço do fundamentalismo religioso no país. Na conversa que tivemos, buscamos entender o alcance dessas instituições no campo das doutrinas fundamentalistas repressivas na América Latina, e a capacidade que têm de transformar em mercadoria tudo o que diz respeito à fé.

[Bravas] Sua pesquisa aponta para uma sacralização do consumo na sociedade contemporânea.

— [Drance Elias da Silva] Sim, o projeto de pesquisa envolve estudos que buscam analisar a relação entre religião, mercantilismo do sagrado e ética do consumo, buscando identificar no discurso pentecostal um caráter de expressão induzida: um consumismo associado à prosperidade como condição de pertencimento religioso. No Brasil, além da IURD, que é uma das mais importantes, por ser uma espécie de fundadora do neopentacostalismo, estão entre as grandes igrejas neopentencostais a Internacional da Graça de Deus, a Mundial do Poder de Deus e a Igreja Renascer em Cristo. Todas elas e outras igrejas menores, mas sobretudo essas grandes, movimentam uma produção que vai desde um discurso acerca da relação “ser humano-deus- mundo”, até uma variedade de produtos que incluem discos, livros, vídeos, programas de rádio e TV, alcançando o mercado religioso em uma escala bastante significativa para o caminho que pretendem desenvolver em termos de crescimento econômico.

 

[Bravas] De que maneira o neopentecostalismo está inserido nessa perspectiva de sacralização do consumo?

— [DES] As igrejas neopentecostais praticam uma religião de mercado. Elas vendem, de fato, uma experiência religiosa, porque todos que lá estão pagam, e sempre pagaram para fazer essa experiência, a qual, necessariamente, tem que ter um resultado. Não há neopentecostalismo sem resultado. Nenhum pastor permite que no seu templo não existam testemunhos de metas alcançadas, tanto da parte dele (em relação ao que vai ser testemunhado em termos de vitória ou conquista), como da parte dos fiéis que, de alguma maneira, pela “experiência” que custearam querem testemunhar o resultado, pois o fiel está ali para alcançar o que busca em termos de realização, sobretudo material. Então há uma prática entre os fiéis que corrobora para a “perspectiva mercadológica” que está colocada hoje em termos de sociedade, de maneira ampla, para além do campo religioso. Com isso, quero dizer que as neopentecostais são grandes colaboradoras para que o mercado seja o que está sendo, em termos de sua fase capitalista atual, que não vive mais de uma mera produção que vem do industrialismo, mas de uma megaprodução diversificada, na qual todas as pessoas, independentemente do campo específico em que estejam, possam ser grandes colaboradoras para essa perspectiva.

— [Bravas] Quais as origens do neopentecostalismo? Quais seriam suas mesclas fundantes, imaginando que nada se cria totalmente “novo” no mundo atual?

— [DES] O neopentecostalismo é uma classificação elaborada por pesquisadores e estudiosos do campo religioso brasileiro ao analisarem agrupamentos religiosos surgidos a partir dos anos 1970, e a IURD nasce nessa década, precisamente em 1977. Perceberam que esses agrupamentos se expressavam na relação com os fiéis com um discurso que parecia reduzir tudo ao econômico, tudo ao financeiro. Observaram que havia um descolamento do pentecostalismo clássico e do protestantismo criado a partir da Reforma impulsionada por Lutero. O sociólogo Paul Freston situou esses agrupamentos como uma “terceira onda” na história do protestantismo no Brasil. O termo neopentecostalismo acumulou, do ponto de vista dos pesquisadores acadêmicos e da imprensa, uma conotação muito negativada por conta dessa relação com o dinheiro, com o modo como os fiéis tratam a relação com Deus, na qual consideram que há um compromisso de Deus para com eles. Ou seja, há uma exigência quanto a essa promessa de abundância, na qual “os céus” derramarão, mais cedo ou mais tarde, “todo ouro e toda prata” que estariam retidas nas mãos de Deus.

 

— [Bravas] O protestantismo nasceu rompendo com uma ideia de fé ou de prática religiosa que mercatilizava a relação com o divino. Isso era parte da crítica da Reforma proposta por Lutero em relação às práticas da Igreja Católica no período dos séculos XVI-XVII, pela venda das indulgências aos fiéis. O neopentecostalismo retoma prática semelhante? Ou seriam contextos distintos?

— [DES] Falando-se de religião e capitalismo, ligando-se o neopentecostalismo e as práticas da Igreja Católica do período da Reforma, há que se levar em conta que os contextos são muito diferenciados, e temos que considerar neste período havia um capitalismo ainda em gestação. Mas em se tratando de acumulação de riquezas, sobretudo através da aquisição de dinheiro, conforme as estratégias que cada instituição elabora para ampliar a sua base material e o seu domínio pelo caminho da economia, aí teríamos, sim, um ponto em comum em termos das práticas. Claro que as neopentecostais não são igrejas de vendas de sacramentos, como no caso da Igreja Católica, pois têm uma estratégia diferente para sobreviverem economicamente, e claro que os fiéis contam muito com o dízimo que entregam, mas não é somente o dízimo, é toda uma dinâmica que os pastores criam para que os fiéis estejam ali sendo responsáveis pelo que estão bancando em termos da experiência.

— [Bravas] E o que seria essa dinâmica?

— [DES] O dízimo iguala todos, mas existe uma criatividade com a expansão dessas denominações em termos de sua economia e diversificação de “produtos”. Por exemplo, a Igreja Universal do Reino de Deus teve seu primeiro momento de acumulação de riqueza “primitiva”, vamos dizer assim (risos), por meio das ofertas dos fiéis, e a televisão divulgou de maneira muito espetacular, no estádio do Maracanã lotado, o transporte de sacos de dinheiro com a coleta realizada entre as pessoas presentes. Então, historicamente, havia a mercantilização já naquela época, pois a Igreja Católica acumulou as suas riquezas numa perspectiva mercantilista. E o que ela tinha como fonte para fazer dinheiro era a venda dos sacramentos, porque era através dos sacramentos que se conquistava as “benesses do céu”. Assim, pessoas doaram terras e outros bens. Os pobres não tinham o que doar, a não ser migalhas, mas as fortunas da Igreja foram constituídas com doações de reis, príncipes e pessoas de posse, e eram doações feitas até no leito de morte. Assim, a Igreja Católica fez fortuna talvez não diretamente junto aos fiéis, mas por meio das elites econômicas da época. Já a Igreja Universal, ela não fez fortuna a partir das elites brasileiras, mas o início se deu nas costas dos fiéis, que começaram a migrar sobretudo do catolicismo popular, por exemplo, para as igrejas neopentecostais urbanas que prometiam essas realizações.

 

— [Bravas] O que, na sua opinião, mais atrai as pessoas para o neopentecostalismo e como isso se materializa no cotidiano?

— [DES] Não existe um único fator. A pessoa não é atraída somente pela questão econômica, por exemplo. Há uma diversidade de ofertas em termos de sentidos que está colocada por dentro da Universal do Reino de Deus, desde questões que de fato as pessoas vivem em termos de necessidades materiais e também a ressignificação com a qual a Universal trabalha, em termos de uma relação do “fiel” e seu deus, levando em conta a experiência tradicional que a pessoa tenha tido (sobretudo no catolicismo). Então, existe uma gama de ressignificação de várias coisas. A pessoa é atraída pela realização pessoal de questões subjetivas relacionadas à família, em termos de uma prosperidade nesse campo; é atraída por uma prosperidade do ponto de vista econômico-financeiro que supere o contexto de crise econômica que todos estão passando e, finalmente, é atraída por um deus que atende de uma maneira mais rápida, vamos dizer assim, pela interpretação que se faz desse deus como um deus que realiza as esperanças das pessoas em termos do desejo de uma vida próspera. Claro, todas as religiões colocam a perspectiva da prosperidade, todas elas. Mas é praxe no discurso religioso neopentecostal uma visão de prosperidade reduzida à questão econômico-financeira. Talvez também pese na atração dos fiéis o fato de não serem religiões dogmáticas. Não existe uma doutrina, nem dogmas para se crer sem se discutir, como na Igreja Católica. Então, o laço é mais frouxo: se o fiel se aborrece em uma igreja neopentecostal, ele sai tranquilamente para outra, desde que fique no mesmo campo. Atualmente no campo religioso é difícil ser “fiel” a uma denominação a ponto de você ter dificuldade de se desamarrar, principalmente neste mundo globalizado, onde as coisas são meio efêmeras e as relações não duram. Então, este é outro atrativo nas igrejas neopentecostais, entre outras coisas.

— [Bravas] O neopentecostalismo é um fenômeno surgido no Brasil?

— [DES] No Brasil, sim. O neopentecostalismo a gente considera como tipicamente brasileiro. Mas, por exemplo, a Igreja Internacional da Graça de Deus está na África, na América Latina, na Europa. Esse processo começou com a Igreja Universal do Reino de Deus, que está em outros continentes, incluindo países asiáticos. A Universal foi fundada por Edir Macedo e a Internacional da Graça de Deus fundada por seu cunhado, o pastor R.R. Soares, que começou na Universal, rompeu com ela e criou a própria Igreja, e expandiu. É a segunda denominação mais forte do ponto de vista econômico e religioso dentro do campo neopentecostal.

 

— [Bravas] O fortalecimento econômico neopentecostal viabilizou uma relação com as elites brasileiras? Você diria que existe nessa relação interesses políticos convergentes?

— [DES] Aqui nós teríamos duas questões: religião e economia, religião e política. No Brasil, tivemos um longo período em que religião e política não se misturavam, mas como um discurso católico, e não do mundo protestante. Os neopentecostais vão, desde a origem, se importar com a política. Os anos 1980 e 90 foram cruciais para a alavancada dessas denominações em suas relações com a política  no Brasil e para descobrirem, nas eleições, um outro meio de expansão, influenciando no campo da política a seu favor do ponto de vista de crenças e de seus interesses materiais. E ser um pastor, um especialista na administração do “sagrado” sem interdição para exercer cargo de prefeito, vereador ou deputado, para a sua denominação religiosa é muito bom em termos de poder político, e para a força política dos próprios pastores. As candidaturas são trabalhadas nos templos não a partir de uma formação política, mas dentro de um discurso de visão positiva com relação à política. Eles podem ter visão negativa apenas em relação a alguns políticos, como tiveram com Lula, num primeiro momento, em 1989, ligando-o ao demônio, inclusive por causa da visão comunista negativada no Brasil. Hoje, mesmo difusamente, há uma intenção desse seguimento religioso de chegar à presidência, e que a candidatura venha exatamente do campo neopentecostal. Não é à toa que a eleição do prefeito do Rio de Janeiro, o Marcelo Crivela, esteja sendo tomada como referência no campo do neopentecostalismo de que há possibilidade de o Brasil ter um presidente evangélico, haja vista ter conquistado a prefeitura de uma das cidades mais importantes do país.

— [Bravas] Neste sentido, como você analisa o neopentacostalismo como força política?

— [DES] Na nova fase da Igreja Universal, a construção do Templo de Salomão, em São Paulo, é um espelho de influência nacional para ela mesma, no sentido de superar um pequeno declínio que ocorreu com a publicação dos dados do IBGE do último censo (2010), em que ela teve perda de 220 mil fiéis. O Templo de Salomão seria uma forma de sinalizar o novo projeto da Igreja Universal, não só de expansão mas de firmar-se como estratégia de poder dentro do campo religioso brasileiro. A Universal não reconhece essa perda de fiéis, mas havia um conflito, nesse período, de concorrência de outras igrejas neopentacostais. Ainda há muito conflito no campo da radiodifusão. Emissoras que detém concessões públicas alugam espaço para as igrejas, o que é ilegal, e esses espaços são disputados.

 

 [Bravas] O princípio da laicidade do Estado brasileiro preconiza a exclusão das Igrejas do exercício do poder político e/ou administrativo, pressupõe a não intervenção da Igreja no Estado. Contraria essa postura, por exemplo, o ensino religioso nas escolas e o uso de argumentos religiosos para a interdição da legalização do aborto no Brasil. A atuação dos pastores na política não entraria em confronto com a laicidade prevista na Constituição brasileira?

— [DES] Entraria não, entra. Esse conjunto de representações nos discursos dos pastores que entraram na política que ora são religiosas o que é errado, porque eles não são representações religiosas no Congresso Nacional, mas são representações políticas, por isso considero um equívoco quando a imprensa afirma a existência de uma “bancada evangélica”. Não existe uma bancada religiosa, mas dos partidos políticos. Quem lidera é uma liderança de um partido e não de uma igreja. Dizer que políticos formam bancada religiosa é um modo de dizer que tomaram um rumo na proposição de projetos a partir de valores religiosos, mas eles são representantes de seus partidos políticos. Em tese, nenhum parlamentar se candidatou a partir de sua igreja, porque as regras eleitorais não permitem, embora conste no nome do candidato, para efeito de eleição, a citação que se trata de um pastor, por exemplo, porque assim é conhecido, mas o registro envolve a separação Igreja e Estado. Esta é a dimensão laica do Estado. E nas campanhas eleitorais é difícil verificar que os votos de um pastor tenham vindo exclusivamente da igreja dele.

 

 [Bravas] A perda da laicidade contribui para o enfraquecimento dos partidos políticos, evidenciando-os como legendas para fins eleitorais?

 [DES] Sem dúvida. Agora, no Brasil há um reconhecimento da relação entre religião e política no sentido de que no momento atual a religião tem uma importância grande, como teve na construção da identidade brasileira, do próprio Estado brasileiro. Foi uma influência muito grande. O mundo católico influenciou durante muito tempo a condução das coisas públicas por dentro do Estado, inclusive foi religião oficial do país. Não que essa igreja ocupasse cargos oficialmente, mas havia muita influência. Quando o mundo evangélico se ocupa da política – levando em conta as denominações neopentecostais, pentecostais e as  do protestantismo histórico, em menor quantidade você visualiza um grupo de pessoas que obtiveram vitórias também pelo voto religioso, digamos assim, e esses candidatos acabam assumindo compromissos institucionais ou de valores dessas religiões. Há momentos em que se juntam todos os que são de denominações religiosas, independentemente qual seja, e, dependendo do projeto, eles não deixam passar. Qualquer coisa que esteja no campo da moral sexual ou referente ao conceito de família, por exemplo, é muito difícil nessas casas legislativas, como projetos referentes à homossexualidade, ao aborto…

 

 [Bravas] As igrejas neopentecostais ao criticarem outras religiões costumam “demonizar”, ou seja, apontar “o mal” presente em outras práticas religiosas como influência do demônio. Isso aconteceu no passado com o comunismo. Atualmente, os parlamentares ligados a igrejas neopentecostais demonizam políticas defendidas por feministas e a população LGBT. O feminismo tem confrontado essa prática denunciando o fundamentalismo religioso.

 [DES] O fundamentalismo religioso parece estar em alta no mundo. Parece estar em alta no mundo católico, no mundo muçulmano, no mundo evangélico… O campo religioso do ponto de vista global parece sinalizar para esse fundamentalismo religioso, que está ligado a várias coisas, desde o conservadorismo do ponto de vista político, na forma como compreendem o mundo no qual estão situados, como compreendem os seus interesses e o que defendem, tanto para fora, como para manterem-se como experiências institucionais concretas. Então, parece que a onda conservadora no mundo, do ponto de vista religioso, parece ser uma estratégia de sujeitos do campo religioso global de se manterem como agentes atuantes, para dentro do campo religioso e para fazerem frente a outras forças, discutindo com o mundo da política e da economia. Neste sentido, isso só é possível se nos atermos a um forte caldo geral conservador. Isso é um aspecto dentro do fundamentalismo religioso. Em tese, todas as religiões são conservadoras e esse conservadorismo estaria dentro dessa perspectiva fundamentalista também. Por outro lado, você tem outras expressões do fundamentalismo muito radicais na sua relação com o mundo e os interesses que defende, como se esses interesses fossem bons para todo o mundo. Há expressões de radicalidade desse fundamentalismo que impossibilita a existência do diferente. Não é apenas que negue. É que o outro que é diferente e que tem seus interesses e sua história, e quer que seus interesses sejam reconhecidos, e o reconhecimento passa exatamente por aí. O fundamentalismo religioso não permite isso de alguma maneira. Então, não se trata de ter seus fundamentos e defendê-los. Defender os fundamentos não é tão ruim, pois você tem uma base de referência que não abre mão pois configura sua identidade. Porém, os fundamentalistas religiosos atualmente estão para além disso: estão para a negação do outro como ele se apresenta e ameaça. O fundamentalismo religioso que temos no Brasil, e especialmente o que anda por dentro das igrejas neopentecostais, estaria agindo contra o relativismo, comungando mais com o absolutismo, à medida que absolutiza suas ideias e posições, e delas não abre mão. Essa perspectiva é radical. A demonização do outro está em colaboração com essa perspectiva fundamentalista: você faz do outro o que ele não é na perspectiva de ganhar poder a partir disso.

 [Bravas] E assim atuam os neopentecostais?

 [DES] O neopentecostalismo atualizou o discurso da demonização que já existiu na Idade Média. O demônio parece ser aquela figura que, de repente, a gente descobriu, num mundo em que ele parecia ter desaparecido, e voltou à tona. Não é que não exista mais a ideia de satanás, diabo ou demônio em outras igrejas, mas as neopentecostais têm isso como algo forte, como aquele aspecto importante para o seu crescimento, que cresce às custas do outro, negando o outro mas ressignificando as coisas que o outro tem, e se beneficiando. Na dimensão religiosa, por exemplo, dentro de uma  Igreja Mundial do Poder de Deus você tem, de repente, uma sessão de “desobstrução” ou “descarrego” que são momentos nos quais a pessoa está ali, expressando um estado de êxtase ou um transe, no qual o pastor traz a experiência dessa pessoa que foi ligada a uma religião de matriz afro- indígena, e vai trazendo de alguma forma que o que seria um ritual vai sendo ressignificado, tentando-se fazer com que aquela pessoa “se revele” como alguém possuído pelo demônio. E esse demônio veio de onde? De onde aquela pessoa estava antes, e precisa agora ser retirado! Ora, se lá não era demônio, porque demônio é uma categoria religiosa, sobretudo no mundo católico, então como, por exemplo, quando você fala dos orixás, quando você fala de exu, você associa a demônio? Exu não é demônio dentro da trajetória religiosa de matriz africana, não é um ser identificado com o mal. Quem demonizou exu primeiramente foi a Igreja Católica, evidentemente, e no discurso de hoje, as neopentecostais. Então, você tem uma figura que é do bem ressignificada como do mal. Você está utilizando os referenciais de sentido simbólico do outro, dando uma nova compreensão para o grupo que lhe assiste no templo, identificando aquilo como o mal. Então, assim todos os orixás vão ser sempre alguma coisa identificada com o mal, a exemplo da figura de exu que é muito popular no mundo católico e no mundo evangélico no Brasil, onde as igrejas neopentecostais mantiveram esse discurso como estratégia de crescimento. Então, demoniza-se religiões, experiências religiosas, seja ela qual for, demoniza-se o mundo da política, o mundo da economia, porém ressignificando.

 

 [Bravas] E essa demonização vai além da dimensão religiosa…

 [DES] Vai além. Veja que a Universal negativou Lula na política na primeira vez que ele foi candidato, na segunda vez… Mas quando ele se candidatou para a reeleição à presidência e ganhou, a Universal apoiou e fez discurso nacional para que nas igrejas o nome de Lula se dissociasse da demonização que fizeram em 1989, por conta de interesses políticos, frente à iminente vitória do candidato.  Então, a estratégia dessas denominações de demonização está na perspectiva de crescimento, defesa de interesses, evidentemente tomando-se cuidado para que ocorra uma ressignificação na qual se ganhe com isso.

 

 [Bravas] Deste modo, a demonização da luta por direitos das mulheres seria uma forma de destituir a força política das mulheres?

 [DES] Sim, e nessas referências que eles não abrem mão, como suas crenças, existe o machismo que está colocado por dentro, por parte do corpo de líderes religiosos, ao reconhecerem apenas uma forma de relação entre as pessoas, que é o heterossexualismo, porque seria a instituída por deus “desde o começo”, e olha que há contradição dentro dos próprios relatos bíblicos. Há quem tenha um olhar mais apurado para perceber a homossexualidade também nesses textos, mas nunca foi uma coisa fácil para as culturas, mesmo as antigas. E nos tempos de hoje, mesmo com todo o avanço do movimento no campo da homossexualidade, seja feminina ou masculina, ainda há muita perseguição, muita falta de reconhecimento nessa forma das pessoas viverem a sua vida de desejo sem terem que se encaixar dentro de uma coisa que foi criada pela cultura. A questão do machismo é forte, incrustada dentro dos partidos e em todas as instituições religiosas ou não, mas as religiosas sobretudo. Agora, a questão que está colocada hoje como perda de direitos não deve ser colocada simplesmente nos ombros da religião, no sentido de que recair sobre as “representações religiosas” que estão nas câmaras legislativas Brasil afora neste impedimento do avanço dos direitos. Há uma onda política conservadora que está somando com o conservadorismo expresso por dentro do fundamentalismo religioso. O capitalismo nunca foi revolucionário, nunca foi de esquerda. O capitalismo é de fato liberal e no campo liberal você tem muito mais sucesso pelo lado conservador, do que pelo lado não conservador do liberalismo. Temos um capitalismo dentro de uma nova estratégia no mundo do ponto de vista político e isso facilita evidentemente o avanço do conservadorismo.

Publicado originalmente em BravasBravas es una revista de la Articulación Feminista Marcosur que busca transmitir una visión del mundo que combine periodismo y enfoque feminista.

3 thoughts on “Fundamentalismo religioso e a mercantilização do sagrado no neopentecostalismo

  1. Realmente já de há muito tempo esses casos profetas, pastores e bispos vem enganando muita gente e por conta disso estão ricos.

  2. Bom dia, sou Harry Neto pesquisador de Consumismo Religioso (Pesquisei em meu mestrado na UFPB o Consumismo Religioso na Fogueira Santa de Israel – Discurso de esperança e sucesso e frustração), irei trabalhar para o doutorado (UNICAP PE) Uma nova Ética protestante e o Espírito do Consumismo ( Fazer uma análise da ética protestante na idade média – Weber – na idade moderna – Campbell e na atualidade e gostaria de algumas informações, pode ser?
    Como posso fazer para participar desta discussão?
    Indicações de Livros para a temática?
    Contato do Professor Drance Elias da Silva?

    agradeço!

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