Boletim Unicap

Professor Carlos Brito apresentará artigo em Congresso Internacional

IMG_6259O professor do curso de Psicologia da Universidade Católica de Pernambuco, Carlos Brito, teve um artigo aprovado para ser apresentado no 12º Congresso Internacional de Tecnologias da Educação, que vai acontecer entre os próximos dias 17 e 19 de setembro no Centro de Convenções de Pernambuco. Intitulado de Geração ritalina: sociedade, família e a escola frente à complexidade do processo de aprendizagem infantil, o trabalho vai ser apresentado num dos eventos mais importantes desta área. O congresso terá a participação de pesquisadores de países como Portugal, Espanha e Estados Unidos. Esta será a sexta vez que Carlos Brito participará do congresso. Confira abaixo a íntegra do artigo.

GERAÇÃO RITALINA: SOCIEDADE, FAMÍLIA E A ESCOLA FRENTE À COMPLEXIDADE DO PROCESSO DE APRENDIZAGEM INFANTIL.

 

                                                                                                                                             Carlos Brito 1

 

REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE UM TEMA TÃO COMPLEXO

 

            Nos dias de hoje, lida-se de forma visceral e gritante com os paradoxos do mundo pós-moderno.  Propaga-se e respeita-se uma sociedade da diversidade, na qual novas configurações familiares são contempladas e acolhidas. Cada vez mais, convive-se de maneira harmônica com as diferentes orientações sexuais, crenças religiosas, ideais políticos e éticos.

           

Por outro lado, a sociedade nunca foi tão injusta e rigorosa com as crianças, em particular com as que ousam buscar formas singulares no acontecer pedagógico.  Nunca houve tanta atenção e rigidez em relação a uma temporalidade cada vez mais inflexível quanto ao ritmo e desempenho na aprendizagem escolar.

           

As escolas parecem cada vez mais terceirizar suas “responsabilidades” para além dos muros de sua propriedade pedagógica.  As famílias, por sua vez, cobram resultados aos educadores e sinalizam dificuldades em compartilhar e assumir sua parceria junto às instituições.

           

Gozo pleno, imediatismos no prazer, sucesso acima de tudo, popularidade incondicional, planejamentos acirrados sobre o futuro das crianças, tudo isso vem afetando gradativamente o modo de ser e estar infantil.

           

Em um mundo cada vez mais globalizado, em que se apresenta e se articula, de forma cada vez mais estreita e objetiva, a relação entre cobranças quanto ao desempenho e resultado escolar e sua hipotética garantia quanto ao futuro profissional das crianças, torna-se urgente refletir sobre o impacto desse imperativo na subjetividade infantil.

           

1- Psicólogo, Fonoaudiólogo, Terapeuta de crianças e adolescentes, Especialista em Metodologia do Ensino, Mestre em Linguagem ( PUC-SP), Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UNICAP.

 

 

Diante desses fatos, presencia-se uma busca desenfreada por explicações e soluções para aquelas crianças que, por razões singulares e existenciais, não se enquadram nos desejos culturais, sonhos familiares e, principalmente, nas exigências escolares. A solução mais fácil parece ser buscar na natureza da criança a etiologia para essa tendência “desviante”.

 

            Encaminhamentos, avaliações e acompanhamentos especializados parecem não estar mais dando conta do desamparo que a sociedade, a família e a escola vivenciam e que, por sua vez, projetam em suas crianças, afetando-as igualmente.

           

Em conjunto, essas angústias e seus mecanismos de defesa podem levar a problemas de sono, alimentação, depressão, agressividade, apatia e, principalmente, de rendimento e desempenho escolar. Atualmente, a tendência médica vigente, prescrita pelo DSM e com impacto direto em algumas linhas psicológicas e educacionais, tem sido a de recortar e isolar esses transtornos do resto do vivido.

           

Ora, tratar o transtorno ou a fobia sem levar em consideração seu contexto etiológico faz com que se perca o sentido do sintoma. Diante dessa situação, a medicalização da infância vem tomando proporções alarmantes.

           

É nessa direção que se pretende encaminhar as reflexões que se seguem.

 

 

DO QUE SOCIEDADE, FAMÍLIA E ESCOLA ESTÃO FALANDO, AFINAL?

           

          

             Faz-se necessário iniciar este trabalho refletindo de forma breve sobre a sociedade, a família e a escola no mundo contemporâneo. Como estão contextualizadas e caracterizadas a sociedade, a família e a escola no século que há pouco se iniciou? Que papel cada uma dessas instâncias vem ocupando no mundo de hoje? Como cada um desses contextos pensa atualmente a criança, a aprendizagem e, por sua vez, o “possível” fracasso ou insucesso escolar que os alunos vêm apresentando já a partir da educação infantil?

 

A esse respeito, Debord (1997, p.13) afirma:

 

E sem dúvida o nosso tempo… Prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a reapresentação à realidade, a aparência ao ser… Ele considera que a ilusão é sagrada, e a verdade é profana. E mais: A seus olhos, o sagrado aumenta à medida que a verdade decresce e a  tal ponto que, para ele, o cúmulo da ilusão fica sendo o cúmulo do sagrado.

 

               A prática clínica traz diariamente pais angustiados com o processo de aprendizagem de seus filhos ainda na chamada educação infantil.  O medo do insucesso escolar e o concomitante desejo por alternativas rápidas e objetivas; a busca por escolas que enquadrem suas crianças em seus murais de honra. Por sua vez, escolas e educadores, às vezes sem a menor noção e bom senso sobre as relações entre desenvolvimento, aprendizagem e contexto sócio-histórico, e na ânsia inconsciente de buscar uma resposta no aluno, acabam encaminhando dezenas de crianças para avaliações psicopedagógicas e neurológicas, sem saberem de fato o verdadeiro sentido do encaminhamento.

 

            Parece mesmo existir um medo inconsciente, vivido pelas famílias e muitas vezes fomentado pelas escolas, quanto ao efeito que um possível desvio do esperado – traduzido por um aprendizado diferente, por um outro tempo para aprender – possa ser capaz de interferir no desejo de sucesso pleno, fazendo aparecer o fantasma do (in)sucesso, que a cultura contemporânea tanto teme e que vem incutindo, na construção da cidadania, como algo a ser evitado a qualquer custo. Vive-se uma época de intolerância camuflada por atitudes e acolhimentos “politicamente corretos”, através da adoção de medidas inclusivas que parecem excluir mais e mais.

 

              Nos dias atuais, a mídia fornece um mundo de informações por meio de organizações estéticas. A estética da mídia está assentada no mundo da informática, que  apresenta uma temporalidade cada vez mais veloz e mais distante do tempo da singuralidade e da subjetividade humanas. Há um modelo a ser seguido, que está determinado e que é almejado pela sociedade pós-moderna. O planejamento do futuro profissional, social e, até mesmo, emocional das crianças inicia-se, com muita freqüência, já nos primeiros anos da educação infantil.

 

             Há um modelo estético e ético que se cristaliza desde cedo. O vencer, o ter sucesso, a independência financeira e a realização profissional nunca tiveram tanto peso como nos dias atuais para essa geração com menos de sete anos de idade. Sobre isso afirma Safra (2004, p.140):

 

A cidadania, nesta perspectiva, instaura-se pela possibilidade que tem o ser humano de inserir sua singuralidade por meio de seu gesto. Qual a possibilidade do mundo atual para acolher um gesto que possa criar o inédito no campo do Mesmo? A criatividade celebrada pela mídia, na maior parte das vezes, seduz o ser com o já estabelecido, com a imanência sem transcendência, o cimento de seu gesto, ao esquecimento de si e de suas raízes.

 

             Diante dessas reflexões, objetiva-se neste momento compreender que a sociedade contemporânea apresenta um modelo de subjetividade a ser construído por qualquer ser que habite esse imaginário. Nesse modelo, o sucesso, as metas atingidas, o prazer imediato, as realizações instantâneas, a visibilidade, o prazer constante e os imediatismos frívolos, entre outras questões, acabam por se tornar os pilares que alicerçam a existência humana.

 

              Sendo assim, a escola e a família também parecem reeditar esses modelos em seus respectivos modos de estar no mundo. Na realidade, observa-se a escola e a família ávidas por assegurarem, a qualquer preço, o sucesso de seus alunos/filhos, fazendo com que pequenos ou graves sinais, que venham a quebrar a linearidade dos fatos, sejam vistos com preocupação e clamem por uma medida imediata.

 

             É bastante curioso pensar que tanto a escola como as famílias parecem esquecer-se de refletir sobre uma questão premente: Desenvolvimento e Aprendizagem são aspectos dialeticamente relacionados e historicamente inscritos em um contexto cultural.

 

            Nesse sentido, a sociedade, a família e a escola parecem temer lidar com a diversidade de singularidades e possibilidades de acontecimentos humanos que trilhem outros tempos, outros caminhos, outros modos de ser e estar no mundo.

 

              Frente a essa realidade, as crianças/alunos parecem vivenciar situações de angústia, desamparo e desacolhimento em sua ainda breve trajetória existencial. É preciso pensar na maneira com que as três instâncias até então apontadas vêm acolhendo a criança e, por conseguinte, educando-a em sua trajetória polimorfa de ser cidadão, filho e aluno. Como vêm lidando com essas situações? Quais as saídas encontradas e oferecidas para lidar com essas possibilidades?

 

            Quais as saídas encontradas pelas crianças/alunos para lidar com a situação acima descrita? Existe lugar para o uso e a vivência de espaços e situações criativas? Que sentido do “viver criativo” habita o imaginário da sociedade, da família e da escola num contexto coagido pela mídia, pelas drogas da obediência e pelas tecnologias da informação?

 

            Haveria espaço para outras intervenções mais criativas e, portanto, menos químicas e robotizadas para lidar com as situações conflitantes – muitas vezes necessárias – no complexo processo de aprendizagem? Haveria acolhimento para outras possibilidades de estar no mundo e viver as inevitáveis dificuldades inerentes a essa realidade? Onde estão e como são avaliadas outras formas de aprender?

 

             Ao se falar sobre acolhimento, é importante lembrar que ele deveria ser realizado pela sociedade, família e escola. Esse aspecto é fundamental, pois, numa perspectiva fenomenológica, não se pode perder de vista que a mãe, o pai e os que cuidam de crianças não são indivíduos, mas pessoas através das quais as questões fundamentais da família, da escola e da comunidade se apresentam à criança. De acordo com Winnicott (1970, p.95),

 

É através da percepção criativa, mais do que qualquer outra coisa, que o indivíduo sente que a vida é digna de ser vivida. Em contraste, existe um relacionamento de submissão com a realidade externa, onde o mundo em todos seus pormenores é reconhecido apenas como algo a que ajustar-se ou exigir adaptação. A submissão traz consigo um sentido de inutilidade e está associada à idéia de que nada importa e de que não vale a pena viver a vida. Muitos indivíduos experimentaram suficiente o viver criativo para reconhecer, de maneira tantalizante, a forma não criativa pela qual estão vivendo, como se estivessem presos à criatividade de outrem, ou de uma máquina.

 

            Para além de uma filiação partidária, pensar a pluralidade e dinamicidade do processo de aprendizagem é estar atento a uma epistemologia do conhecimento, ou concepção de prática pedagógica. Pensar o sujeito que aprende é necessariamente vê-lo como um ser plural, um sujeito no qual o corpo e a cognição se articulam necessariamente a um viver criativo, a uma condição de sujeito desejante.

 

APRENDIZAGEM E SUAS POSSIBILIDADES DE ACONTECIMENTO DENTRO DOS MUROS DA ESCOLA

 

            Neste momento não se quer discorrer sobre concepções de aprendizagem e práticas pedagógicas. Nem se objetiva, aqui, fazer proselitismo a uma determinada corrente epistemológica, tampouco criticar ou elencar modelos e estratégias que caracterizam o processo de ensino e aprendizagem.

 

            Objetiva-se, aqui e agora, pensar a questão da aprendizagem como possibilidade de construção e facilitação de uma cidadania, de um sentido de libertação e acontecimento humano. Por outro lado, é necessário estar atento às consequências e às fraturas ocorridas no Ethos infantil quando esse processo não se desenvolve de acordo com as normas e padrões determinados e esperados pela sociedade, família e escola.

 

            O processo de desenvolvimento e aprendizagem infantil não ocorre de forma autônoma, aleatória ou determinada exclusivamente por fatores internos. Todo esse processo tem a característica de ser global, integrado e interdependente. As consequências de um ambiente inadequado para a aprendizagem e o desenvolvimento de uma criança trarão cristalizações em qualquer um dos setores apontados, de acordo com a etapa em que se dê o seu acontecimento.

 

            Desde o nascimento, a criança vai elaborando um modo próprio de agir em diferentes situações que vivencia, à medida que experimenta sensações de desconforto ou de incerteza diante de aspectos novos, que provocam necessidades e desejos e parecem exigir novas respostas. Ela também elabora seu modo de agir nas situações prazerosas, experimentando diferentes reações por meio da exploração dos seus próprios gestos e da interação com brinquedos e com os vários objetos de conhecimento.

 

            Sendo assim, a criança, desde pequena, busca compreender o mundo e a si mesma testando, de alguma forma, as significações que constrói, modificando-as continuamente em cada interação, seja com outra criança, seja com as questões do conhecimento. Piaget (1967, p.15) ratifica esse entendimento:

 

A ação humana consiste neste movimento contínuo e perpétuo de reajustamento ou de equilibração. É por isso que, nas fases de construção inicial, se pode considerar as estruturas mentais sucessivas que produzem o desenvolvimento como formas de equilibração contínua, onde cada uma constitui um progresso sobre as precedentes.

 

            Vale salientar que a plasticidade das crianças pequenas permite que elas se adaptem a diferentes contextos e, particularmente, a ambientes com creches e pré-escolas. Esses espaços, porém, devem ser organizados de forma a responder às necessidades infantis, já que alguns critérios de qualidade são fundamentais para o desenvolvimento de crianças com menos de seis anos.

 

            Atualmente, o número de crianças que parece encontrar problemas ou dificuldades nessa trajetória é muito grande. Cada vez mais, crianças são encaminhadas para profissionais de várias especialidades, com o objetivo de serem avaliadas, analisadas e, se necessário, medicadas. O que vem acontecendo com as escolas? Quais os fatores que vêm contribuindo para que tantas crianças apresentem dificuldades na/de aprendizagem? Onde entra a participação da própria escola e sua maneira de trabalhar sua proposta pedagógica? E a família? Onde está?

 

            Essa realidade parece apontar para algo bem paradoxal e típico de uma sociedade que se diz aberta para toda uma diversidade e pluralidade de existência ao mesmo tempo em que acena e, às vezes, caminha em outra direção.

 

            Será que essas crianças que trilham outros caminhos em seu aprender vêm encontrando também outros caminhos de serem encorajadas e acolhidas nessa trajetória “diferente”? Será que podemos falar mesmo de uma escola verdadeiramente inclusiva?

 

            É importante refletir aqui numa questão que vem se tornando bem corriqueira na dinâmica escolar e, de certa forma, acolhida pela família e pela sociedade atual. Nos dias atuais, quando uma criança sinaliza algumas dificuldades no seu processo de aprendizagem – dificuldades muitas vezes normais e esperadas – uma necessidade de se encontrar uma resposta cristalizada surge de imediato.

 

            Neste artigo, foi sinalizada característica típica da sociedade pós-moderna: a necessidade de se enquadrar em um rótulo ou em um diagnóstico tudo aquilo que insiste em caminhar contra uma linearidade no modo de se estar no mundo.

 

            Nomes como TDAH, espectro autista, Síndrome de Asperger, depressão, desenvolvimento cognitivo lento, entre tantos outros, circulam dentro e fora dos muros da escola. Será que nossos educadores estão saindo de sua graduação, e das infinitas pós-graduações em psicopedagogia, com um conhecimento apurado em desenvolvimento neurológico infantil, farmacologia e psiquiatria infantil?

 

            Quando apresentados a categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, a maioria dos psiquiatras, neurologistas, psicólogos e educadores atuais tenderão a aceitar que tais definições são, basicamente, objetos de um “discurso científico”. Isso significa, grosso modo, que a pretensa objetividade de suas distinções deve estar assegurada por um discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e claramente diferenciáveis através de uma realidade finita e operacional de características de base.

 

            Sendo assim, apesar de toda uma revolução pedagógica, iniciada com o movimento da Escola Nova e referendada há mais de trinta anos pelo Construtivismo, a escola e seus educadores ainda denunciam estar engatinhando na tentativa de compreender que a aprendizagem está para além de uma questão cognitiva e orgânica. É urgente pensar em uma educação que compreenda a criança como um ser desejante, quase sempre aprisionado a um discurso familiar e ideológico de uma sociedade que insiste em acreditar em um sucesso singular, globalizado e cristalizado.

 

            Cabe lembrar aos educadores e à sociedade em geral que uma classificação diagnóstica, por mais leve que seja, jamais é politicamente neutra, pois sempre veicula – necessária e implicitamente – uma visão de homem e de sociedade.

 

 

           

SOBRE O LUGAR E O ESPAÇO DA CRIATIVIDADE NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM INFANTIL: COMO A ESCOLA VEM TRABALHANDO ESSA REALIDADE?

 

            Boa parte da alegria e da riqueza na infância provém do jeito canhoto e literal através do qual as crianças compreendem o que se diz e se faz.  As cenas sociais, domésticas e escolares constituem enigmas que elas precisam decifrar. Essas cenas podem parecer bastante estranhas às crianças bem pequenas nesse mundo, exatamente como ocorria na terra dos contos de fadas.

 

            Brincar com múltiplas interpretações de uma palavra é fácil para aqueles que lembram bem que há muito pouco viveram em sua existência essas confusões, já que estão ainda se familiarizando com a linguagem e os costumes do planeta dos adultos, que quase sempre aparecem traduzidos de forma duvidosa no universo escolar. Corso (2011, p.245) afirma:

 

Quando crescemos, junto com a maior parte das memórias da infância, perdemos a familiaridade com sua lógica, esquecemos que, quando pequenos, ao nosso modo, também filosofávamos, tentávamos, de maneira rudimentar, compreender o mundo.


O psicanalista inglês D.W.Winnicott foi muito feliz ao falar da importância da transicionalidade como espaço para a saúde e o viver criativo na infância e também em outras etapas da vida. Foi a partir dessa questão que ele elaborou um outro sentido para o fenômeno da ilusão no processo de desenvolvimento do ser humano.

 

            Da perspectiva da totalidade da obra winnicottianna, os fenômenos transicionais são fundamentais para o amadurecimento humano, pois inauguram uma das etapas e uma das conquistas do amadurecimento, levando o indivíduo a um novo sentido de realidade, que, na saúde, irá instaurar uma área específica da experiência. Eles se situam exatamente no meio do caminho, como uma passagem intermediária e facilitadora da longa jornada do acontecimento humano, que vai da realidade subjetivamente concebida à realidade objetivamente percebida.

 

            Cotidianamente vive-se essa possibilidade de passagem. Por outro lado, para assegurar esse direito, faz-se necessário que o ambiente ofereça sempre, e para sempre, possibilidades acolhedoras que facilitem esse vir a ser constante. Desde muito pequena, a criança vai precisar encontrar um ambiente aconchegante na família e na escola que favoreça a experiência do holding.

 

            Nesse sentido, a família e, concomitantemente, a escola vão fazendo parte do que Winnocott chama de ambiente suficientemente bom: aquele ambiente em que possibilidades criativas são oferecidas à criança, para que ela possa, desde muito pequena, se lançar no mundo, fazendo, assim, despertar sua criatividade nata em sua condição de humano. Acerca disso, Dias (2004, p.169) afirma que

 

Winnicott formula a idéia de uma criatividade psíquica originária que é inerente à natureza e está presente desde o início. Cada ser humano cria o mundo de novo e começa o seu trabalho no mínimo tão cedo quanto o momento do seu nascimento.

 

            Não se pretende, nesse artigo, discorrer sobre a psicanálise winnicottiana, mas sim cunhar o sentido apresentado pelo teórico em questão no que se refere à importância do espaço da criatividade para construção de uma personalidade sadia.

 

            A escola precisa, talvez, apropriar-se de outro sentido de criatividade que está em toda e qualquer tentativa da criança em lidar, tanto com questões do cotidiano, como também com situações de aprendizagem dos conteúdos pedagógicos. Precisa compreender as diversas possibilidades encontradas e apresentadas pelas crianças para lidar com as questões da representação da realidade.

 

            Na apreensão do universo pedagógico, do conhecimento cientificamente trabalhado na escola, também há uma área intermediária, um viver criativo entre a realidade subjetiva (a maneira como cada criança compreende e experiência o mundo) e a realidade compartilhada (a maneira como a sociedade lida com esse universo e espera que a criança lide com ele).

 

            Sendo assim, a escola precisa estar atenta a toda e qualquer estratégia apresentada pelas crianças para lidar com as questões do universo pedagógico, no sentido de entendê-la como possibilidade criativa de lidar com o novo. Precisa e deve compreender e acolher as diversas tentativas de lidar com as dificuldades inerentes ao processo de aprendizagem, como tentativas criativas de se relacionar com as tarefas básicas oferecidas pelo ambiente e, principalmente, pelo universo desafiador do conhecimento.

 

            Sabe-se o quanto é desafiador lidar com novas formas de conceber a realidade. É preciso reorganizar os esquemas representativos, reorganizar as estruturas mentais e operacionais para mudar e repensar os paradigmas estabelecidos. Esse desafio não pode ser enfrentado apenas alimentando compulsivamente a mente infantil, com exercícios e tarefas cognitivas, traduzidas, quase sempre, em um grau crescente de dificuldades pedagógicas.

 

            Não se pode desconsiderar todo o avanço que a educação vem apresentando no sentido de abordar, de forma cada vez mais global, as questões epistemológicas, as questões inerentes ao conhecimento do mundo por parte da criança. Lida-se hoje com uma riqueza imensurável na forma como, através de projetos pedagógicos, a escola vem trabalhando a pluralidade interdisciplinar.

 

            Por outro lado, é necessário analisar como as crianças estão encontrando possibilidades de expressar criativamente essa riqueza que lhes é oferecida. Apesar de toda uma mudança paradigmática no ensino, ainda não parece haver lugar para a diversidade de compreensão e interpretação frente aos conteúdos pedagógicos. Criar e oferecer formas mais criativas na didática e avaliação não significa que se esteja respeitando de forma plural o modo como a criança vem representando o que lhe é oferecido.

 

 Os boletins trimestrais ou semestrais – chamados de processuais –, por mais “diagnósticos” e menos “classificatórios” que sejam, ainda se caracterizam por serem um expoente vivo da velha e tradicional avaliação formal. As contradições em sua estrutura e comentários anexos são, às vezes, absurdas e paradoxais. Faz-se necessário que a criatividade e a ludicidade infantil sejam respeitadas e estimuladas, para que as crianças não adoeçam, ou seja, não sejam taxadas de desatentas ou hiperativas, autistas ou depressivas, impulsivas ou distantes.

 Faz-se necessário refletir sobre a possibilidade de compreender que as dificuldades, inerentes ou não ao processo de aprendizagem infantil, não estão necessariamente ligadas à questão de uma natureza humana e individual, mas sim à questão da condição humana de estar no mundo.

 

GERAÇÃO RITALINA: UMA NOVA POSSIBILIDADE CRIATIVA DE ENQUADRAR O QUE NÃO CONSEGUIMOS COMPREEDER?

 

            Sobre a criança considerada hiperativa, Kelh (2001, p.95) afirma:

 

Criança hiperativa: O jargão psiquiátrico designa uma patologia, distúrbio do comportamento infantil que exige tratamento farmacológico… Por outro lado, as causas da angústia da criança diagnosticada como hiperartiva, os conflitos latentes no grupo social e familiar onde ela se insere, os imperativos do gozo que produzem nela, permanentemente, uma excitação aflita e sem objeto, nada disso entra em sofrimento infantil. Os desadaptados ao mundo atual sofrem de hiperatividade ou de déficit de atenção, assim como sofrerão na adolescência de sociofobia, de pânico ou depressão     

 

             Iniciar essa parte do trabalho a partir de uma citação em que se aborda a questão da criança dita hiperativa tem como objetivo trazer à baila a medicalização da infância, na qual a Ritalina ganha relevância. Objetiva-se aqui tentar desvelar o que parece estar por trás da psiquiatrização da vida cotidiana.

 

            É preciso deixar claro que não há a intenção, neste trabalho, de abordar a hiperatividade e os demais diagnósticos, apontados em tópicos anteriores, que circulam livremente dento e fora da esfera escolar. A pretensão aqui é abordar a verticalização crescente do número de crianças que são medicadas atualmente.

 

            A medicalização das dificuldades elencadas nas/pelas crianças no atual cenário educacional parece denunciar algo mais grave do que se pensa. Uma necessidade de rotulação é cada vez mais presente nas intervenções realizadas pelos envolvidos no processo escolar.

 

            De fato, não se atribui impunemente um nome a um estado mental – a fortiori uma qualificação a um sujeito – como quem cola uma etiqueta numa embalagem plástica. A embalagem, feita de átomos de substâncias diversas, ficará perfeitamente inerte frente a sua etiqueta; já o sujeito humano, feito de desejo, é tocado naquilo mesmo que o constitui. De acordo com Pompéia (2011, p. 121),

 

A doença mental situa-se, na evolução, como uma perturbação do seu curso; por seu aspecto regressivo, ela ocasiona condutas infantis ou formas arcaicas de personalidade. Mas o evolucionismo engana-se, ao ver nesses retornos, a própria essência do patológico e sua origem real. Se a regressão à infância se manifesta nas neuroses, é somente como um efeito. Para que a conduta infantil seja para o doente um refúgio, para que seu reaparecimento seja considerado um fato patológico irredutível, é preciso que a sociedade instaure entre o presente e o passado do indivíduo uma margem que não se pode nem se deve transpor; é preciso que a cultura somente integre o passado forçando-o a desaparecer. E nossa cultura tem essa marca.

           

            O impulso de novos significantes, tais como depressão, síndrome autista, TDAH, etc., contamina os espíritos dos sujeitos comprometidos por seus desamparos e desordens, assim como os espíritos daqueles que lhes são próximos, que acabam por buscar se agarrar a esses males, encontrando alívio por poder rotular esses sentimentos.

 

            Nas reflexões apontadas neste trabalho, objetiva-se alertar para que se pense a criança em situação de aprendizagem como um sujeito que necessariamente está inserido em contextos multifacetados, atravessados por desejos de Outros, que parecem circular desgovernadamente. Os sintomas que se cristalizam nos caminhos e descaminhos da aprendizagem exigem de educadores e da família uma atitude acolhedora e compreensiva, na qual todos os envolvidos nesse processo coloquem-se na posição de coadjuvantes e comprometidos.

 

            Não se pode compactuar com a hipótese de que os possíveis (in) sucessos no processo de aprendizagem infantil possam ser explicados a partir de dificuldades neuropsicológicas na criança, de dificuldades unicamente ligadas às funções psicológicas superiores. Não é possível aceitar passivamente que a medicalização de sintomas que não se consegue desvelar venha solucionar os crescentes casos de dificuldades de aprendizagem.

 

            No entanto, a busca por diagnósticos, com seus respectivos rótulos, faz com que a farmacologia acabe entrando como verdade soberana. Afinal, de que forma educadores, psicólogos e familiares poderiam questionar a imaculada verdade inabalável da medicina?

 

            Para pais aflitos, que não parecem saber o que fazer e como conduzir seus filhos “travessos”, “hiperativos”, “desatentos” ou “indisciplinados”, um caminho precisa ser trilhado atenta e efetivamente, antes de passar o possível problema para o neuropediatra ou psiquiatra. A primeira coisa é ouvir a sua criança. O que ela tem a dizer sobre sua escola e professores? Os seus amigos a tratam bem? Os educadores e profissionais da escola a escutam verdadeiramente? Mudar para uma escola que acolha e entenda melhor a singularidade de determinada criança deve e precisa ser seriamente levado em consideração.

 

            O problema não estaria na cabeça das pessoas, mas na sociedade e na escola. Se existem tantas crianças deprimidas, hiperativas ou desatentas, temos que entender que elas estão sendo produzidas pelo modo que vivemos todos nós. Nunca se tomou tanto remédio e nunca houve tantas crianças “adoecidas”. Deve haver algo errado. O que alguns médicos vêm fazendo parece ser uma biologia de um corpo morto, de um cérebro sem vida, sem afeto, isolado do meio em que se vive.

 

É preciso entender que nenhum sintoma isolado leva a uma “verdadeira” significação. Uma cadeia significativa de sintomas torna mais fácil a possibilidade de se encontrar um sentido para algo que se tenta compreender. A escola e a família precisam entrar nessa discursividade.

 

            Em vez de tratar com drogas os problemas de concentração e de comportamento, é necessário avaliar subjacentemente o problema que está causando o sofrimento da criança; não o cérebro da criança, mas o contexto social da criança.  

 

            Defende-se aqui, portanto, lidar com o problema do contexto social subjacente com psicoterapia ou acompanhamento familiar e orientação educacional. Essa é uma maneira muito diferente de ver as coisas, comparada à tendência contemporânea de atribuir todos os sintomas de uma disfunção biológica a um desequilíbrio químico no cérebro da criança.

 

 

 

 

ADVERTÊNCIAS CONCLUSIVAS:

 

            O efeito de cada drágea de cloridrato de metilfenidato, nome da substância química que é a base da Ritalina, dura em média cinco horas.  Assim como outras “ínas” – a cocaína, a cafeína e as anfetaminas –, ela pode ser considerada um psicoestimulante. Seu mecanismo de ação ainda não parece ter sido completamente elucidado. Acredita-se que ela pode aumentar a produção e o reaproveitamento da dopamina e da noradrenalina, conhecidos neurotransmissores associados às sensações de prazer, excitação e principalmente ao estado de alerta do sistema nervoso. A bula alerta para uma possível dependência física ou mesmo psíquica, além de elencar uma série de reações adversas como nervosismo, dificuldades em adormecer, irritabilidade, diminuição do apetite, dor de cabeça, palpitações, boca seca e algumas alterações cutâneas.

 

“NENHUM MEDICAMENTO NO MUNDO DARIA CONTA DA COMPLEXIDADE QUE É O PROCESSO DE ATENÇÃO E APRENDIZADO DE UMA CRIANÇA”

 

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

CORSO, Diana Liechtenstein. A psicanálise na Terra do Nunca: ensaios sobre a fantasia. Porto Alegre: Penso, 2011.

 

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1992.

 

DIAS, Elsa Oliveira. A teoria do amadurecimento de D.W.Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 2004.

 

KEHL, Maria Rita. 18 Crônicas e mais algumas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

 

SAFRA, Gilberto. A Pó-ética da clínica contemporânea. São Paulo: Idéias & Letras, 2004.

 

PIAGET, Jean. Seis estudos em psicologia. Rio de Janeiro: FORENSE-Universitária, 1986.

 

POMPÉIA, João Augusto. Na presença do sentido: uma aproximação fenomenológica a questões existenciais básicas. São Paulo: Educ-Editora PUC-SP, 2011.

 

WINNICOTT, D, W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1980.

 

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