Mangabeira Unger faz palestra na Católica sobre pensamento e ensino jurídico
|Foi realizado na manhã de sexta-feira (24), no Salão Receptivo da Universidade Católica de Pernambuco, 1º andar do bloco G, a palestra “Pensamento Jurídico e Ensino Jurídico”. O evento, promovido pela Católica, Associação Brasileira de Ensino do Direito (Abedi), a FGV Direito – Rio de Janeiro e a OAB – Pernambuco, teve como palestrante o professor da Universidade de Harvard, dos Estados Unidos, Roberto Mangabeira Unger.
A mesa de abertura do evento foi composta pela Pró-reitora Acadêmica, professora Aline Grego, representando o Reitor da Universidade Católica, Padre Pedro Rubens, que estava em Brasília para participar de debate com os candidatos à Presidência da República; pelo presidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito (Abedi) e vice-diretor do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV – Rio), professor Evandro Carvalho, e pela coordenadora do curso de Direito da Católica e vice-presidente da OAB Pernambuco, professora Catarina Almeida de Oliveira.
Evandro Carvalho começou agradecendo à professora Aline Grego e à professora Cataria Oliveira. Em seguida, cumprimentou aos presentes, pró-reitores; diretores de Centros; gestores; professores, em especial professor Jayme Benvenuto, diretor do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) e diretor da Abedi; funcionários; alunos da Católica e professores convidados, professor João Maurício Adeodato, professor João Paulo Allain Teixeira e o professor Mangabeira Unger.
“A Associação Brasileira do Ensino do Direito tem iniciado um processo de discussão interna, muito forte em relação ao papel do docente, em toda essa discussão sobre o ensino jurídico. Ao longo desse segundo semestre, realizamos algumas atividades em torno de uma discussão bastante ampla, até de certo ponto clichê, sobre o futuro da educação superior em direito no Brasil, mas com o intuito de poder agregar sempre novos atores aos já conhecidos atores que discutem ensino jurídico no Brasil e poder ampliar a pauta, a agenda de debates a respeito da educação superior em direito. Com isso, realizamos em agosto, no dia 18, um seminário na FGV, com o apoio da FGV Direito Rio. Um seminário da Associação Brasileira de Ensino do Direito, que contamos também com a presença do professor Mangabeira, que está aqui como professor visitante da Fundação Getúlio Vargas. Então, estamos usando e abusando um pouquinho do tempo do professor para estimular este debate, que está disponibilizado na Internet. Esse conjunto de palestras, entre outras atividades que estamos realizando, é para dar subsídios aos encontros regionais da Abedi que se realizarão no ano que vem. Serão cinco e teremos um encontro regional, aqui no Recife, pela região Nordeste; outro em Porto Velho, pelo Norte; Porto Alegre, Belo Horizonte e Brasília. Então estamos convidando os professores para esse debate”, explanou Evandro Carvalho.
Para finalizar, o presidente da Abedi apresentou algumas posições da entidade, por meio de um texto lido e de sua autoria, com o objetivo de transmitir o espírito de discussão sob perspectiva da Abedi a respeito do papel que ela pretende exercer nesses dois anos de sua gestão à frente da Associação. Confira no final da reportagem o texto “Quem são os nossos inimigos”.
Em seguida, a coordenadora do curso de Direito da Católica e vice-presidente da OAB Pernambuco, professora Catarina Almeida de Oliveira, deu as boas-vindas ao público. “Gostaria de dizer que quando se pensa no direito, para além das leis, conseguimos perceber não apenas a técnica, mas também arte. O direito também é arte. Hoje, estou aqui feliz porque faço parte desta Universidade Católica, hoje como coordenadora do curso de Direito. Mas estou aqui também representando a Ordem dos Advogados do Brasil, seção Pernambuco, que tem uma preocupação grande e direta com, não apenas, a quantidade dos nossos cursos jurídicos, mas principalmente com a qualidade. Para encerrar, gostaria de agradecer por poder participar deste evento”, ressaltou a professora Catarina.
A segunda mesa foi composta pelo professor da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, Roberto Mangabeira Unger; pelo diretor do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) e diretor da Abedi, professor Jayme Benvenuto; professor da Universidade Federal de Pernambuco João Maurício Adeodato, e pelo membro da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-PE e professor das Universidades Católica e Federal de Pernambuco, João Paulo Allain Teixeira.
Em sua palestra, o professor Mangabeira Unger propôs uma reflexão. “Eu proponho uma reflexão a respeito do futuro do pensamento jurídico não só especificamente no Brasil, mas no mundo. Embora o meu foco imediato seja o ensino do direito no nosso país. Dividirei a minha reflexão em duas partes. Na primeira parte, enumero alguns pontos de partida que servem como premissas da ideia programática a apresentar. E na segunda parte, esboço as grandes linhas de uma outra reconfiguração do ensino do direito”, explicou professor Unger.
“Para servir o objetivo da clareza, eu formularei minha proposta de uma maneira radical. Quer dizer, descrevendo uma forma do ensino do direito muito diferente da forma que existe hoje no Brasil ou em qualquer outro país. E explico de que perspectiva abordo a tarefa do pensamento programático. Entendo que em qualquer proposta o mais importante sempre é a combinação de dois atributos. O primeiro atributo é a demarcação de um caminho, de uma trajetória, entendida como uma sequência de passos. O pensamento programático não é arquitetura, é música. Tem a ver com uma descrição de um rumo e qualquer rumo que vale a pena ser pensado pode ser descrito de um ponto de vista relativamente próximo ao que existe ou de um ponto de vista distante do que existe. Não importa o grau da proximidade ou da distância, o que importa é a direção. Aqui nesta intervenção, eu formularei a proposta de uma forma relativamente distante do que existe, só para com isto esclarecer melhor a direção que proponho. E o segundo atributo de um pensamento programático é que descreva de forma concreta e seletiva os primeiros passos para ingressar naquela direção. O que fazer amanhã, como começar.”
“Primeira parte da minha reflexão. Pontos de partida. O primeiro ponto de partida é uma reflexão a respeito do ensino do direito, em geral, no mundo. Em geral, o ensino de direito, em todo o mundo, sofre do seguinte problema: não é nem teórico, nem prático. Está, em geral, situado no nível intermediário de um dogmatismo conceitual, de uma escolástica do pensamento, que não é nem inteligência teórica, nem instrumento prático. E esta dogmática jurídica é como que a sobrevivência de uma forma de pensamento que se tornou anômala na cultura moderna. É uma forma que encontramos, por exemplo, na gramática em contraste com a linguística, ou na teologia em contraste com a filosofia, ou a sociologia da religião. É um conhecimento por dentro, participante, que formula um conjunto de conceitos que elide o contraste entre o prescritivo e o descritivo.”
“Agora vem o seguinte paradoxo. Parece que os países ou as culturas jurídicas que mais avançaram na rebeldia contra esse enfoque dogmático, isto é nem teórico nem prático do ensino jurídico, são países em que a grande maioria dos que frequentam a faculdade de direito pretendem exercer as carreiras jurídicas, no sentido estrito, por exemplo, os Estados Unidos. Hoje as escolas de elite de direito nos Estados Unidos adquiriram uma abrangência maior, tanto numa direção teórica como numa direção prática, embora o corpo dos alunos seja constituído majoritariamente de candidatos a exercer uma profissão jurídica, no sentido estrito. Por outro lado, no resto do mundo onde ainda prevalece de forma mais completa esse enfoque dogmático, não teórico e não prático, os alunos que frequentam as faculdades de direito não estão majoritariamente destinados às carreiras jurídicas, no sentido estrito. Países como a Rússia, o Japão.”
“Quem é que vai às faculdades de direito? São pessoas que procuram uma incorporação à elite nacional, seja empresarial ou burocrática ou diplomática ou política. O que buscam nas faculdades de direito é entender o pacto do poder, que prevalece naquela sociedade e a retórica, o discurso predominante em que esse pacto do poder se elabora. Mas não é isso que encontram. O que encontram na grande maioria é a escolástica da doutrinação jurídica, não teórica e nem prática. Com isso, quero sugerir que a orientação predominante do ensino do direito no mundo não pode ser compreendida como o resultado de um imperativo funcional. É um produto de um conjunto de contingências, de acidentes históricos. Há um descompasso entre aquilo que se procura e aquilo que se oferece e desse descompasso surge uma oportunidade transformadora.”
“Agora proponho um segundo ponto de partida para o meu raciocínio. E esse segundo ponto de partida tem a ver com o rumo do pensamento jurídico no mundo. Vou agora fazer uma simplificação radical. Há uma narrativa predominante no mundo, hoje, sobre o que é moderno no pensamento jurídico. Qual é a onda em que se deva surfar? A narrativa básica é que o pensamento jurídico era dominado por um formalismo doutrinário e dedutivista. E agora, de acordo com essa narrativa surgiu algo mais avançado, que é a compreensão do direito como um conjunto de princípios e políticas públicas que ideologicamente orientariam a representação e a elaboração do direito. É uma representação, ao mesmo tempo, sistemática e ‘idealizante’ do direito. E nós sabemos que entre os centros irradiadores, nessa concepção do pensamento jurídico, estão hoje os Estados Unidos e a Alemanha, que juntos exercem imensa influência sobre o rumo do pensamento jurídico.”
“Agora, minha ideia com respeito a isso é a seguinte. Esta suposta sequela progressista avançada e iluminada do pensamento jurídico é uma mistificação. É um céu do avanço. É a reconstituição do formalismo doutrinário em nova forma. E a nós no Brasil, especialmente, convém repudiá-lo. Nós não queremos entrar nessa onda. A essa onda devemos dizer não, pelas seguintes razões básicas, em primeiro lugar, porque esta visão do direito promovida, hoje, pelos teóricos mais prestigiosos, dos países que nos acostumamos a tomar por referência é uma mistificação do direito. O direito não é isso. O direito não é um sistema idealizado em evolução. O direito é o produto de uma luta, de uma luta entre interesses e de uma luta entre visões. O fundo intelectual dessa concepção do direito é o hegelianismo de direita. Há uma lógica imanente na história, oculta na política, mas revelada pelos juristas. Isto não é uma verdade, isto não é uma revelação, isto não é uma descoberta. Isto é uma mistificação conveniente e, sobretudo, conveniente aos juristas que com isso se promovem, como ao mesmo tempo os reformadores e os intérpretes do corpo constituído do direito.”
“Em segundo lugar, não convém entrar nessa onda, porque essa onda representa o esvaziamento da democracia, a construção democrática do direito. A ideia básica de forma de imaginar o direito é que vai haver uma luta entre os partidos, entre as correntes ideológicas, mas depois o direito vai ser interpretado pelos juristas e os juristas vão mostrar que havia uma narrativa latente, subjacente, que os que formaram o direito não conheciam. Vai ser a tal coruja de Minerva, que são os juristas. Eles vão aparecer e vão dizer que o direito significa isso, embora vocês não soubessem.”
“E a terceira razão e a razão mais importante, pela qual nós devemos rejeitar entrar nessa onda é que esta maneira de representar o direito inibe o que é mais importante no direito, potencialmente, que é a imaginação institucional e a reconstrução institucional. Como diziam os estoicistas alemães, ‘o direito é a forma institucionalizada da vida de um povo’. Nós vivemos numa época, em que as grandes alternativas foram desacreditadas e ninguém sabe mais como construir ou imaginar alternativas. O material para a construção e a imaginação de alternativas existe em forma latente no direito. São as pequenas contradições, as pequenas anomalias que podem servir como pontos de partidas para alternativas maiores. Já que as alternativas sumiram no grande espaço da política e filosofia podem e precisam ser recuperadas de dentro para fora e de baixo para cima, a começar pelo direito. São todas as razões para rejeitar essa onda e imaginar que o pós-formalismo doutrinário possa e deva assumir uma forma muito diferente da forma que agora está sendo promovida por essa cultura jurídica prestigiosa do atlântico norte.”
“Agora o terceiro ponto de partida, para a minha reflexão. Tem a ver com o mundo, a situação do mundo. As sociedades contemporâneas, hoje, estão todas elas presas num repertório muito estreito de opções institucionais vivas. Há um número muito restritivo, um elenco muito limitado de formas conhecidas de organizar a vida social, econômica e política em diferentes domínios da vida social. Por exemplo, a maneira de organizar uma democracia, presidencialismo americano, parlamentarismo europeu, semiparlamentarismo. A maneira de organizar uma economia de mercado com pequenas variações dos regimes atuais de contrato e de propriedade e assim por diante. Este elenco restritivo de opções institucionais constitui o destino das sociedades contemporâneas. Rebelar-se contra este destino, exigiria ampliar o elenco das alternativas institucionais disponíveis. E o material para esta ampliação do elenco existe no direito. Esta é a tarefa do pensamento jurídico. A tarefa não cumprida da imaginação institucional. Todos os nossos ideais e todos os nossos interesses estão sempre pregados na cruz das instituições e das práticas que os representa de fato. E qualquer tentativa de avançar na realização dos ideais e interesses exige uma reconstrução de sua forma institucional e prática. Esta dialética entre os ideais e os interesses de um lado e as instituições e as práticas de outro é o que é essencial do direito. E é a razão principal pela qual o direito reconstruído tenha tanta importância para o futuro da humanidade.”
“Agora o quarto ponto de partida para a minha reflexão. Agora sobre o Brasil. Hoje, a tarefa principal do povo brasileiro é construir um novo modelo de desenvolvimento, baseado em ampliação de oportunidades para aprender, para trabalhar e para produzir. Um modelo que transforme ampliação de oportunidades e o fortalecimento de capacitações no motor do crescimento e que com isso dê conteúdo prático a ideia abstrata do crescimento includente. O problema é que a execução desta tarefa passa por aquilo que raramente fizemos em nossa história nacional que é inovar nas instituições, inclusive, nas instituições que definem uma economia de mercado. Não se torna uma economia de mercado mais includente sem reconstruir as instituições que a definem. Mas toda a nossa prática histórica predominante é a de copiar as nossas instituições, elas não são nossas, elas são como que roupa emprestada. Nós copiamos o formulário e o formulário não permite a realização desse objetivo nacional. A forma predominante da cultura jurídica, entre nós e, em geral no mundo, ao invés de ser parte da solução para este problema é parte deste problema, é a reprodução deste formulário institucional.
Agora, por fim, o quinto ponto de partida para a minha reflexão, que tem a ver com a educação em geral. Eu entendo que um critério rudimentar e básico para o ensino, para um curso, é que ele não possa ser substituído com proveito por um texto. Se um curso pode ser substituído com proveito por um texto, não deve ser ministrado. Por esse critério simples e elementar, a esmagadora maioria dos cursos que são ministrados no mundo, em todos os níveis de ensino, não deveriam ser dados, porque eles poderiam, com proveito, ser substituídos por textos. Que tipo de ensino, em geral, nós devemos querer? Quais são os atributos mais gerais da educação que interessam em qualquer nível do ensino?”
“Primeiro, que em sua orientação metodológica seja analítica e problemática, invés de ser informativa. Segundo, que em seu âmbito prefira o aprofundamento seletivo ao ‘enciclopedismo’ superficial, mobilize a informação com instrumento de capacitação analítica. Terceiro, que em seu contexto social repudie a combinação do individualismo e do autoritarismo que caracteriza a grande maioria das salas de aula, em todos os países e em todos os níveis de ensino e a substitua por uma orientação cooperativa, que caracteriza os estágios avançados e trabalhos científicos e pode ser antecipado pelos primeiros níveis do ensino. Em quarto lugar, na atitude para o conhecimento herdado e estabelecido promova sempre uma orientação dialética, ao invés de ter uma atitude canônica. Quer dizer, que abordo toda disciplina, toda matéria de pelo menos dois pontos de vista contrastantes, porque sem isso não há libertação do intelecto. São esses os pontos de partida que proponho para uma concepção de como deva e possa ser o ensino do direito.”
“Agora passo para a segunda parte da minha apresentação e vou simplesmente esboçar uma orientação do ensino do direito informada pelas preocupações que propus nestes pontos de partida. Uma concepção do ensino do direito definida tanto por respeito aos seus conteúdos curriculares como com respeito a sua prática metodológica. O primeiro currículo, o currículo básico poderemos chamar do currículo do direito nacional. Seria organizado em focos temáticos. O primeiro foco temático, por exemplo, seria a pessoa e a família na sociedade e incluiria, dentro da nossa cultura jurídica, a parte geral do direito civil, o direito de família e, talvez, o direito penal. O segundo foco temático seria a estrutura de coordenação, incluiria o direito das obrigações, tanto na sua parte geral como na sua parte especial, o direito das coisas e o direito da responsabilidade civil. O terceiro foco temático seria a empresa e o trabalho, incluiria o direito comercial e societário e direito do trabalho. O quarto foco temático seria o estado e a sociedade, com o direito constitucional e o direito administrativo.”
“Com respeito a cada um desses focos temáticos em que se organizaria o currículo do direito nacional haveria a seguinte progressão metodológica na apresentação e na discussão do material. A primeira etapa seria uma apresentação do direito constituído inteiramente dissociada da compulsão de apresentá-lo como um sistema, porque nós sabemos que ele não é um sistema. Ele é um conjunto de contradições e de composições, o direito apresentado como ele é sem a mistificação sistêmica e idealizadora. O segundo passo dessa apresentação metodológica de cada um dos focos temáticos seria a contextualização histórica e atual. A genealogia dessa parte do direito. De onde vêm essas contradições? Essa correlação de forças espelhadas naquele fragmento do direito constituído e quais são as feridas vivas, agora? Os pontos obscuros de movimentação e de vida. O terceiro passo metodológico seria a investigação, o mapeamento da estrutura argumentativa daquela parte do direito. Em cada grande área do direito há certos argumentos estereotipados e recorrentes e entender essa estrutura argumentativa é a chave para o domínio de uma parte do direito. O quarto passo metodológico seria, então, usar um aprofundamento seletivo de certos temas e de certos problemas que são a fronteira daquela parte do direito. Em relação a que conflitos, a que controvérsias é que se forma a agenda atual de conflito sobre a transformação daquela parte de direito. E quais são as direções contrastantes que estão em jogo? E como se pode ampliar esse elenco de direções possíveis? Então esse seria o primeiro currículo.”
“O segundo currículo seria o currículo do direito global. O direito nacional dentro do mundo. É a tarefa, sobretudo, do direito comparado, mas agora entendida de uma forma inteiramente diferente da forma convencional. Não adianta estudar como faz os manuais tradicionais de direito comparado, os por menores de regras, doutrinas e instituições jurídicas em todos os países do mundo. É como é a enciclopédia, isso não serve para nada. O que importa para compreender a situação de direito no mundo é mapear esse repertório restritivo de opções institucionais traduzidas em direito que agora predomina no mundo. Que é aquilo que eu chamei o destino das sociedades contemporâneas. Há um número muito limitado de maneiras de organizar cada área da vida social, agora, disponíveis no mundo. E entender a arquitetura, os lineamentos dessas alternativas institucionais requer um instrumento mais poderoso para compreender o direito comparado e o seu verdadeiro sentido. Qual é a situação global?”
“O terceiro currículo seria o currículo da capacitação prática e profissional. Eu disse no início que o ensino do direito tradicionalmente no mundo não é teórico nem prático. A capacitação prática pode ser aliada da penetração teórica contra o escolasticismo doutrinário que não é nem teórico nem prático e tem um grande valor. Um outro grande valor que é libertar os alunos, que se destinem a atividades profissionais, da necessidade de trabalhar com advogados nas firmas para aprender alguma coisa de prático. Eles saem, agora, impotentes, não sabem fazer nada de prático. E tem que então se subordinar a uma aprendizagem para adquirir o equipamento profissional. Quanto mais equipamento se puder dar a eles, antes, mas livres estarão eles para ampliar as suas opções. E quais são essas capacitações práticas? São principalmente de três ordens. Em primeiro lugar o desenho transacional, como desenhar as transações. E há um espectro curtinho entre o desenho das transações e o desenho das instituições. Não há oposição simples entre o transacional e o institucional, são pontos de um espectro. A segunda vertente da capacitação profissional é a argumentação no contexto jurisdicional, no litígio ou na arbitragem. A representação dos interesses. A terceira vertente da capacitação profissional é aprender a pesquisar, a usar os materiais, os repertórios. Substituir o estudo da enciclopédia pela capacidade de usar a enciclopédia, essas três capacitações transformam inteiramente a situação prática do aluno e o emancipam da sua exorbitante dependência de uma capacitação exterior.”
“O quarto currículo é o currículo das disciplinas auxiliares, as disciplinas de fora do direito, necessárias à construção do direito. Aí nós temos uma desvantagem que nós podemos transformar numa vantagem. A desvantagem é que não existe no Brasil um ensino universitário geral. As pessoas optam por um caminho profissional quando têm 17 anos, um desvario. Mas essa desvantagem pode ser convertida numa vantagem no seguinte sentido. Esse caminho do ensino do direito e do pensamento do direito que eu estou propondo exige mais do que o direito, exige, sobretudo, informação pela economia política e pelas ciências sociais, ciências políticas e sociologia. Mas há o seguinte problema e é esse problema que eu estou imaginando transformar em uma oportunidade. O problema é que essas disciplinas, essas ciências sociais, tal como existem hoje, são parte da tal mistificação. Elas são anti-institicionais, por exemplo, não existem uma economia política verdadeiramente institucional. A chamada economia política institucional é uma economia política anti-institucional, ela procura apresentar as instituições da economia de mercado como o decesso quase darwiniano de um processo natural da evolução. Elas sonegam as alternativas institucionais, ao invés de revelá-las. E a mesma coisa acontece nas outras ciências naturais. Eu vou dar um exemplo, na ciência política dominante, conservadora e funcionalista uma das ideias centrais é a ideia de existir uma espécie de equilíbrio hidráulico entre institucionalização política e mobilização política. Qualquer política quente, de acordo com essa ciência política, tende a ser extra-institucional ou anti-institucional e uma política institucional é necessariamente um política fria. As instituições políticas podem diferir no grau de mobilização que organizam. Nós copiamos dos Estados Unidos o presidencialismo americano, que foi desenhado para estabelecer um vínculo intrínseco entre o princípio liberal de fragmentação do poder e o princípio conservador de desaceleração da política. O que eu estou dizendo com esses exemplos é que nós precisamos, para avançar, informar o direito com as ciências sociais, mas não com as ciências sociais que existem, estas que estão maculadas pelo hegelianismo de direita com outras ciências sociais que não existem. Esse é o problema e essa é a oportunidade de usar o quarto currículo, o currículo auxiliar das disciplinas de apoio para construir a partir do direito uma outra prática de abordagem nas ciências sociais.”
“Eu conclui agora as duas partes principais da minha reflexão sobre o futuro do direito e eu quero, como últimas palavras, situar esta proposta numa visão da situação do pensamento social no mundo e numa visão da situação dos juristas no Brasil. O pensamento social no mundo, no atlântico norte, nos países referência a situação agora é que em todo o campo das ciências sociais e das humanidades há três correntes dominantes. Nas ciências sociais duras, como economia, o que prevalece é uma racionalização funcionalista, explica o que existe mostrando a naturalidade ou a necessidade ou a superioridade daquilo que existe. Nas disciplinas normativas, que são a filosofia política e a teoria jurídica o que prevalece é uma construção pseudofilosófica para justificar as práticas e humanização do modelo institucional existente. Há duas práticas de humanização mais importantes, uma é a redistribuição social compensatória, que é o objeto das teorias da justiça e a outra é a idealização do direito, que é o objeto dessas teorias jurídicas dominantes. Há uma pseudofilosofia. Há um jogo de abstrações filosóficas que propicia isto, para ornamentar esta ideia. A conclusão já é conhecida, que a social democracia conservadora e o único objeto em disputa é qual é a premissa da qual se deva deduzir a solução já pré-estabelecida. Isso não é pensamento, isso é o pensamento travestido. Finalmente, nas humanidades o que prevalece é a consciência, a subjetividade de embarcar numa montanha russa de aventuras narcisistas, subjetivistas inteiramente desconectadas do enfretamento da realidade social.”
“A proposta que eu fiz de reorientação do ensino do direito vale portanto uma rebeldia contra essas tendências dominantes a serviço da reafirmação desse fim. Mas aí chego aminha outra reflexão, derradeira, sobre o papel dos juristas no Brasil. O que mais incomoda, o que mais pode incomodar neste argumento é que é uma pretensão de grandeza. O que que nós fazemos no Brasil, na cultura jurídica como em todos os outros departamentos de nossa cultura, nós esperamos para ver o que está acontecendo na Alemanha, na França, nos Estados Unidos e aí nós representamos aquelas tendências aqui. As notícias chegam pelo navio e nós, então, adaptamos às nossas realidades. Isto é que não serve, não presta. Não é a maneira de fazer algo de valioso. Rebeldia, no fundo é isso que eu estou pregando. A rebeldia é uma condição necessária, mas não suficiente. A rebeldia precisa de uma aliada. A aliada da rebeldia é imaginação.”
Após a palestra do professor Unger, os professores João Maurício Adeodato (UFPE), João Paulo Allain Teixeira (comissão de Ensino Jurídico da OAB-PE/Unicap/UFPE) e Jayme Benvenuto (Unicap/Abedi) apresentaram suas considerações e, em seguida, houve um debate com os participantes.
A Pró-reitora Acadêmica, professora Aline Grego, que na ocasião representou o Reitor, Padre Pedro Rubens, falou da importância da discussão do pensamento jurídico e ensino jurídico na Universidade Católica de Pernambuco. “Temos nomes aqui extremamente importantes para a discussão, indiscutivelmente, o do professor Mangabeira Unger, que trouxe para os nossos docentes, já que a maioria da plateia foi formada por docentes do curso de Direito, a oportunidade de refletir e de discutir esse repensar do ensino jurídico em nossa Universidade.”
O presidente da Associação Brasileira de Ensino do Direito (Abedi) e vice-diretor do curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV – Rio), professor Evandro Carvalho, falou da importância dessa discussão. “Na verdade, esse tema é um mote para discussão sobre o futuro do ensino superior de direito no Brasil. A grande discussão é saber se as faculdades de direito estão, hoje, preparadas para formar profissionais que o Brasil precisa no futuro e para isso a gente precisa discutir o modelo do ensino superior. A nossa avaliação, da Abedi, é que este modelo de ensino que está aí faliu, há muito tempo. Só que é preciso ter uma coragem e uma criatividade institucional para repensar esse modelo. Para repensar esse modelo, a gente começa a discussão com os professores, que são os atores importantes nesta discussão. É preciso que eles também queiram essa transformação.”
O Pró-reitor Administrativo da Universidade Católica de Pernambuco e advogado por formação, Luciano Pinheiro, comentou a palestra do professor Mangabeira Unger. “É importante escutar o Mangabeira Unger pela experiência em Harvard, pelo conteúdo, pela intelectualidade que ele representa. A gente precisa rever os parâmetros do ensino jurídico, ir para além da sala de aula, rever as matrizes desse ensino jurídico, que hoje são muito orientados através das decisões. Então você tem hoje uma judicialização do direito. Então a gente precisa rever esses parâmetros.”
Professor Jayme Benvenuto, diretor do Centro de Ciências Jurídicas (CCT), explicou o posicionamento da Católica neste movimento. “Na Universidade Católica e no curso de Direito, nós estamos num esforço de repensar o nosso método. O que significa repensar a forma de ensinar o direito e os próprios conteúdos. Nós temos a clareza de que a forma de ensinar direito, talvez no mundo, mas com certeza no Brasil, ela é equivocada e precisa ser repensada. O professor Mangabeira Unger propôs o desafio de construirmos um pensamento próprio brasileiro jurídico e, portanto, termos o ensino jurídico brasileiro.”
Para a coordenadora do curso de Direito da Católica, professora Catarina Almeida de Oliveira, a importância desse evento foi trazer a discussão nacional e internacional a respeito da dimensão do ensino jurídico, que não deve se resumir na postura de entrega de conhecimentos técnicos, mas na preparação das pessoas que vão fazer parte de um dos poderes, poder judiciário.
Quem são os nossos inimigos
Evandro Menezes de Carvalho[1]
Quem são os nossos Inimigos? Talvez esta seja a pergunta que nos cria mais embaraço e desconforto porque nela está implícito o fracasso da nossa capacidade de dialogar. Perguntar-se sobre quem são os nossos inimigos é admitir também a nossa potencial torpeza e correr o risco da impopularidade – pena das mais temidas atualmente. Talvez por estes motivos aquela pergunta costuma não ser exposta publicamente, embora nem sempre se consiga evitá-la no íntimo de nossos pensamentos e sentimentos. Fazer-se tal pergunta é admitir, em suma, a nossa imperfeição. E mesmo aqueles tomados como exemplos de conduta pela humanidade não deixaram de ter os seus opositores que viam no gesto e no discurso pacífico um ato claro de desafio contra os seus interesses. Dito isto, não ter inimigos somente é possível se seguirmos adiante em uma vida imersa em silêncio.
E já que neste momento eu falo, persiste a pergunta: quem são os nossos inimigos?
O artista plástico pernambucano Gil Vicente expressou de maneira convincente quem são os seus: a classe política, isto é, todos aqueles que detém o poder de decidir em suas mãos os destinos das pessoas. Na série de desenhos intitulada “Inimigos”, Gil Vicente se retrata ameaçando assassinar personalidades como Mahmoud Ahmadinejad e Ariel Sharon, Lula e Fernando Henrique Cardoso, a Rainha Elizabeth e o Bush. Para Vicente, é um protesto movido pelo seu desencanto e pela certeza de que nada vai mudar.[2]
Suas obras estão no centro de uma polêmica que tem como patrono o Presidente da OAB de São Paulo, Luiz Flávio Borges D’Urso que, no dia 17 de setembro de 2010, oficiou os curadores da Bienal de São Paulo para não expô-las sob o argumento de que elas fazem uma apologia ao crime e desrespeitam as instituições que tais pessoas representam. Para D’Urso, uma obra de arte “deve ter determinados limites para sua exposição pública”. Um destes limites seria o Código Penal, ou seja, o Direito.
O Presidente da seccional paulista da OAB parece ser, desde já, um forte candidato a se ver retratado em mais uma obra do Gil Vicente.
Mais do que um desenho, elas são um apelo, um desabafo expresso em imagens, um pedido de socorro talvez. Supor que ali há um desejo de matar, é ver nas imagens apenas o que elas trazem na superfície. O valor da arte está no que ela evoca àqueles que por ela são atraídos. Mais do que um desejo de matar, os desenhos do Gil Vicente podem ser a evidência de sua inocência e inofensividade. Ao se retratar com arma em punho contra os representantes de instituições, o artista expôs não somente a sua condição demasiadamente humana, mas encontrou a forma mais explícita de transmitir a sua excessiva fragilidade e impotência diante de tanta violência contra o ser humano perpetrada pelas mesmas instituições.
O Presidente da OAB de São Paulo interpretou as obras por meio dos olhos do direito e logo viu ali um crime. São olhos condicionados para ver o mundo por meio dos filtros da lei. E de qual lei? Das instituições contra as quais o próprio Vicente se insurge. E se o direito serve a estas instituições, o que esperar dele?
Sendo assim, quem são os nossos inimigos?
Esta pergunta talvez devesse ter sido enfrentada de maneira explícita pela ABEDi no debate que ela travou dentro de si mesma a respeito do seu futuro. Mas a tendência de insistir na existência de um altruísmo dos juristas nos faz repudiar aquela pergunta. Afinal, acreditamos que somos formados para solucionar conflitos e não criá-los. Não seria este um dos maiores mitos do ensino jurídico? Se sim, não seriamos nós, professores de direito, formadores de inimigos para a sociedade?
Provavelmente esta reflexão será rejeitada com veemência. E talvez devesse ser rejeitada. Mas não pelo impulso irrefletido de um vigilante a serviço do poder; e sim após um processo de reflexão consistente a respeito do papel do professor, do ensino jurídico, das instituições e do direito em nossas vidas.
Não temos a coragem necessária para enfrentar uma reflexão cujo ponto de partida seja tão radical e que exija um desprendimento institucional e uma capacidade criativa capaz de nos permitir ir às profundezas de nossas inquietações sem perder a lucidez. O direito é interpretado de uma forma tal como aquele que vê a obra de arte e nela só enxerga os traços que a explicitam e nada mais. O direito não é arte, é certo. Mas é mais perigoso e ofensivo que ela quando mal interpretado.
E dado que o direito, tal como a obra de arte, tem também o seu autor, torna-se legítimo perguntar quem são os inimigos na obra jurídica e que são os inimigos da obra jurídica.
Mais do que saber de que lado você está, esta questão tem o benefício de nos retirar do suposto estado de inocência no qual o ensino jurídico se coloca. E se assumirmos que esta suposta inocência do ensino jurídico tem como um de seus maiores defensores os próprios professores, então fica fácil responder quem são os nossos inimigos. É um paradoxo com o qual a ABEDi se defronta.
O artista pernambucano, em entrevista recente, disse não adiantar ter esperança em nada. Tal afirmação faz-me indagar se não teria querido ele, com estas palavras e na angústia de sua indignação, apontar a arma contra a própria cabeça ao direcioná-la contra os cabeças das instituições.
Assim, quando, no início desta fala, indaguei quem são os nossos inimigos, diria que somos nós mesmos, os professores. Recusamo-nos a admitir que o modelo atual de ensino faliu e que exige uma recriação institucional capaz de eliminar aquele perfil de professor autoritário, descomprometido com os alunos e com a instituição de ensino, sonegador de conhecimento, improdutivo e amante do poder, para colocar em seu lugar o professor que saiba exercitar a escuta, que seja colaborativo, comprometido com a instituição, produtivo e amante do saber. Nós precisamos encarar de frente este problema se quisermos seguir adiante no debate sobre o futuro do ensino jurídico no Brasil.
Se eu pudesse sugerir ao Gil Vicente um desenho, certamente lhe sugeriria um com ele apontando uma arma contra a cabeça de um professor e que poderia ser a minha própria.
[1] Discurso proferido na abertura do seminário “Pensamento Jurídico e Ensino Jurídico” promovido pela ABEDi, com apoio da FGV Direito Rio e da UNICAP, no dia 24 de setembro de 2010.
[2] “Gil Vicente: ‘Obras são protesto movido pelo meu desencanto’”. Entrevista concedida ao Terra Magazine, 22 de setembro de 2010, por Ana Cláudia Barros. Em http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4692235-EI6581,00-A+OAB+tem+minha+eterna+gratidao+ironiza+artista+Gil+Vicente.html