Discurso de posse do Reitor: balanço e caminhos para o futuro
|Confira na íntegra o discurso de posse do Reitor da Universidade Católica de Pernambuco, Padre Pedro Rubens, para o seu terceiro mandato:
Tornou-se banal caracterizar a crise atual como um tempo de mudanças e não uma simples mudança de tempo. Menos evidente, porém, é o grau de humanização alcançado: nunca a humanidade atingiu um patamar tão elevado de conhecimentos, mas estamos cercados de dúvidas e incertezas; chegamos a uma ampla globalização da economia, mas sem erradicar a pobreza e a exclusão social; constata-se uma verdadeira revolução nas relações, graças à possibilidade de comunicação sem limites, mas, somos surpreendidos por novas formas de intolerância e de violência.
Seja como for, é precisamente, neste mundo paradoxal e interconectado que o Brasil aparece, no cenário internacional, como país emergente: para além de seu gigantismo territorial e sua rica biodiversidade, de seus contrastes e injustiças sociais, do perfil multicultural e sensibilidade religiosa de sua gente, o Brasil é, sobretudo considerado como um importante protagonista mundial que deve ocupar uma posição de liderança, assumir responsabilidades e propor alternativas. De fato, entre desafios e oportunidades, vive-se um tempo privilegiado de transformações que apontam para a construção de um verdadeiro Estado de Direito e uma legítima democracia social. No entanto, tudo fica questionado se não forem equacionadas desigualdades e injustiças históricas, se não houver uma melhoria significativa nos serviços públicos e incrementos na infraestrutura, segundo o padrão internacional. As mais recentes manifestações de rua, apesar de ambíguas e sem um projeto articulado, revelam o poder determinante das redes sociais, o grau de insatisfação generalizada e a busca de novas formas de participação. Esse momento de tantas incertezas, porém, é também um tempo favorável para afirmar nossa brasilidade, honrando os legados de nossa história e, ao mesmo tempo, universalizando o que nos é próprio, propondo assim uma contribuição real do Brasil no mundo globalizado.
A universidade brasileira não está alheia a esse processo histórico, mas não deve ser apenas coadjuvante de governos, mercados e imperativos históricos. Enquanto comunidade de saberes críticos e sistêmicos, a universidade deve assumir seu protagonismo na busca de alternativas sensatas, criativas e inovadoras aos grandes problemas da humanidade. Duas realidades podem servir de pistas ou de ponto de partida: a primeira é a própria juventude brasileira, em seu contingente e jeito expressivo, destacando aqui o papel decisivo da juventude universitária que, de formas diferentes e em diversos momentos históricos, reinventa maneiras de participação na sociedade. Exercita-se a cidadania crítica a partir do campus e do desejo de mudanças, preparando-se para assumir outros espaços na sociedade em vista de transformações sociais mais amplas. Certamente, a inquietação dos jovens e suas reivindicações nos incomodam, seja pela sua forma por vezes irreverente, seja pela impossibilidade de atendermos naquele momento ou daquela forma, embora concordemos com a legitimidade do pleito. Experiência difícil e conflitante para a direção, mas que assumimos como parte de nossa missão de educadores e aspecto formativo da comunidade que queremos ser. A segunda realidade interessante é o próprio conceito de universidade, definida com o tripé Ensino, Pesquisa e Extensão, apostando em sua integração constitutiva. Essa concepção de universidade, embora em permanente construção, é um verdadeiro patrimônio nacional e, aprofundado, pode representar uma bela contribuição do Brasil no mundo.
Dito isso, continuo o exercício, a partir dessa visão tripartite, vislumbrando a Unicap como uma comunidade que, nesses 70 anos, busca, teimosamente, a “terceira margem do rio” (Guimarães Rosa). A Unicap, nordestinamente, vive de teimosia, paixão e utopia. Nesse sentido, as duas margens do rio representam nossa realidade estreita e paradoxal; e, a terceira margem, é o horizonte de abertura, nossa utopia, tudo aquilo que acreditamos, desejamos e trabalhamos para que aconteça. A terceira margem do rio é, portanto, uma metáfora da esperança que nos guia e nos constitui como universidade comunitária, católica e jesuíta. Esses três aspectos da identidade com incidência sobre a missão da Unicap estão na carta de princípios, mas precisam ser constantemente atualizados.
Segundo a sua natureza institucional, a Unicap é uma universidade comunitária. A natureza comunitária da Unicap se expressa através de seus programas e ações, construindo pontes entre academia e comunidades desfavorecidas, desenvolvendo parcerias com organizações governamentais ou não, indo ao encontro daqueles que mais necessitam. A Católica de PE, portanto, inscreve-se no rol de instituições vocacionadas à missão da promoção e desenvolvimento humano, mediada pela educação. A afirmação de preceitos justos e a comunicação de saberes, a defesa da vida e o rigor científico, o aprofundamento de valores duradouros e a excelência das práticas acadêmicas, a partir de experiências relacionadas, milita nas convicções de uma vida comunitária comprometida com a região em que está inserida; região a partir de onde constrói a sua identidade, na perspectiva da universalização dos saberes e internacionalização do seu projeto institucional.
Entre as margens estreitas do público e do privado, segregados como categorias políticas opostas, a universidade comunitária é uma invenção tipicamente brasileira, honrando a história de tantas instituições pioneiras que surgiram para suprir a insuficiência da rede estatal e, hoje, constitui um segmento consolidado, com direito de cidadania, parceiro do Estado e em permanente diálogo proativo com o Ministério da Educação. Nem públicas estatais, nem privadas particulares, as comunitárias deram um importante passo histórico com a Lei 12.881, de 12 de novembro de 2013, sancionada pela Presidente Dilma Rousseff. A nova Lei traz benefícios e obrigações, reconhecendo o seu diferencial dentro do sistema nacional e definindo um marco regulatório do “terceiro setor” como serviço “público não-estatal”. Enquanto diretoria da Associação Brasileira de Universidades Comunitárias, participamos do debate, elaboração, articulação e aprovação da nova lei. E, nesse contexto, fui eleito presidente dessa mesma associação. Portanto, a Unicap não se contenta apenas em aderir às políticas públicas, mas busca contribuir efetivamente com as mudanças do próprio sistema nacional de educação.
Segundo sua inspiração fundacional, a Unicap é uma universidade católica, de acordo com a identidade e missão postulada pela carta magna das universidades católicas, a constituição apostólica Ex Corde Ecclesiae (ECE), de João Paulo II: “Nascida do coração da Igreja, a Unicap palpita no coração da sociedade. Enquanto “universidade”, “a UC é uma comunidade acadêmica que, de modo rigoroso e crítico, contribui para a defesa e o desenvolvimento da dignidade humana, como também para a herança cultural, mediante a investigação, o ensino e os diversos serviços prestados às comunidades locais, nacionais e internacionais” (ECE, 12). Enquanto “católica”, a universidade deve possuir as seguintes características: inspiração cristã dos indivíduos e de toda a comunidade; reflexão incessante sobre o tesouro crescente do conhecimento humano; fidelidade à mensagem cristã tal como é apresentada pela Igreja; empenho institucional para servir ao povo de Deus e à família humana na busca do sentido transcendente da vida (ECE, 13).
Isso significa que a catolicidade da Unicap não se expressa da mesma forma que em uma paróquia, movimento espiritual ou instituição religiosa, mas a partir de uma missão específica de diálogo da Fé com a Razão, na pluralidade de religiões e diversidades de mentalidades culturais, conforme a própria compreensão da Igreja na Ex Corde Ecclesiae. Dois gestos significativos confirmaram, recentemente, nossa pertença “católica”: primeiro, em 2010, fizemos um convênio com a Arquidiocese de Olinda e Recife e as dioceses de Afogados da Ingazeira, Palmares e Nazaré da Mata, assumindo a formação filosófica e teológica dos seminaristas; e, brevemente, nosso curso de Teologia passará a ser um Instituto afiliado da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma; o segundo gesto significativo foi feito em 2011, quando a Unicap recebeu a condecoração máxima da Federação Internacional de Universidades Católicas (FIUC), a medalha Ex Corde Ecclesiae, por reconhecimento e mérito. E, em julho de 2012, na Assembleia da mesma FIUC, mediante eleições diretas, fui nomeado Presidente da Federação para o triênio. Somos, portanto, instituição-sede da Federação internacional, com 215 universidades afiliadas. Essa visão ampla da catolicidade, enfim, reflete o que pedia explicitamente o Papa Bento XVI aos jesuítas, de ir às “novas fronteiras” da sociedade; e, ao mesmo tempo, corresponde ao estilo do Papa Francisco, que não cessa de nos convidar sair de nossas zonas de conforto para ir ao encontro do outro, com abertura de coração às mais diferentes situações humanas, movidos pelo Espírito e focados no essencial da fé cristã, segundo o Evangelho de Jesus Cristo.
Segundo sua tradição inspiradora e carisma, a Unicap é uma universidade da rede jesuíta de educação, marcada pela busca incessante da excelência acadêmica em vista da excelência humana. A presença jesuíta criou obras em vários lugares do mundo, nem sempre com boa aceitação: inclusive a ordem sofreu perseguição e até supressão. Celebramos, precisamente em 2014, o bicentenário da restauração da Companhia de Jesus. Em nosso continente, a Educação Superior Jesuíta atua em rede, graças à Associação latino-americana de universidades confiadas aos jesuítas (AUSJAL), da qual a Unicap é membro-fundadora.
No Brasil, além da FAJE, importante centro de filosofia e teologia no qual muitos de nós estudamos, o carisma inaciano e jesuíta está presente em lugares estratégicos: presente na origem e fundação da primeira universidade católica do Brasil, a PUC Rio; no pioneirismo que criou o Centro Universitário da FEI, na região do ABC paulista; na fronteira sul do país, em São Leopoldo, onde irradia a Unisinos; enfim, presente no coração do Nordeste, desde 1943, com a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Manuel da Nóbrega, hoje Unicap. Desde os pioneiros, jesuítas e colaboradores, a Católica de Pernambuco é uma verdadeira paixão, marcada sempre por dificuldades, mas sem perder jamais a capacidade de sonhar e projetar-se para o futuro, rumo à terceira margem.
A diretoria, que hoje está sendo confirmada na gestão, é bastante conhecida da comunidade acadêmica: todos fomos alunos da Unicap, todos somos professores da casa, todos temos nossa história marcada pelos valores dessa instituição universitária. Entretanto, não haverá continuísmo, muito pelo contrário. Precisamente porque já conhecemos a instituição, em seus desafios e sonhos, bem como as pessoas com quem formamos comunidade, em seus anseios e projetos, nosso compromisso agora deve assumir outras feições. O tempo é, portanto, de consolidação do projeto universitário e temos que ousar na perspectiva do jubileu de diamantes da Unicap. O caminho a seguir está pautado pelo PDI de 2012-2016, construído com a colaboração de todos. Mas caberá aos dirigentes ir além da letra, animando a comunidade a ousar, a sonhar alto, com os pés no chão, mas com o espírito elevado. Indico três prioridades que devem perpassar nossas ações e congregar inúmeros projetos: primeiro, o incremento da pós-graduação para consolidarmos a Unicap como verdadeira universitas; segundo, o aprofundamento da visão humanística em cada aspecto da vida universitária e, terceiro, o desafio da internacionalização de uma instituição genuinamente nordestina, rumo a uma universidade sem fronteiras.
A UNICAP iniciou suas atividades com o Ensino, propondo cursos voltados para o estudante trabalhador. Até hoje nossos cursos noturnos atestam esse público-alvo que muito nos engrandece. No entanto, com os novos desafios e exigências da educação superior, uma universidade não poderia ser apenas uma “faculdade com muitos cursos”. Assim, na década de 60, a Unicap deu seus primeiros passos na linha da pesquisa: o caso mais emblemático foi a criação do ICINFOR-Instituto de Ciências da Informação, considerado o primeiro centro de pesquisas universitárias na área da comunicação do Brasil. Na verdade, sempre houve professores pioneiros e pesquisadores natos. Mas, somente há 15 anos, a pesquisa foi institucionalizada na Unicap e docentes de várias áreas passaram a contribuir com seus estudos, produção de novos saberes e formação de novos pesquisadores, orientando estudantes da iniciação científica até a pós-graduação stricto sensu. Retomando brevemente: na década de 70, foram criados os primeiros cursos de especialização; nos anos 90, os MBAs; em 1999, surgiu o primeiro mestrado em Psicologia Clínica. Nos anos seguintes, outros cinco mestrados foram abertos: Ciências da Linguagem; Ciências da Religião, Desenvolvimento em Processos Ambientais, Direito e Engenharia. Todo esse terreno propício foi preparado durante a gestão fecunda do Pe. Theodoro Peters, jesuíta, a quem quero expressamente agradecer, em nome de todos, por esse legado e tantos outros. Em 2006, aprovamos o nosso primeiro doutorado: Psicologia. Enfim, depois de um período de consolidação das equipes de pesquisa, o esforço foi reconhecido, em 2013, na avaliação trienal da Capes/MEC, atribuindo o conceito 4 a mais três de nossos mestrados, a saber: Direito, Ciências da Linguagem e Ciências da Religião. Além do merecido reconhecimento dos pesquisadores, aos quais agradeço, esse conceito nos credencia para encaminhar o projeto de novos doutorados.
O desafio continua, sobretudo porque não se trata de priorizar a Pesquisa isoladamente, mas insistir na sua relação constitutiva com o Ensino e a Extensão. Nesse passo, além de promover a mudança de matrizes curriculares de todos os cursos de graduação e criar cursos tecnológicos, encaminhamos dois novos projetos de curso, Enfermagem e Medicina, consolidando a Unicap na área de Ciências da Saúde, bem como sua arte de fazer parcerias.
Esses sinais indicam a aposta no futuro, mas não podíamos avançar sem dar uma resposta a um problema antigo, a situação grave das licenciaturas, em âmbito nacional. Depois de estudos e buscas, criamos o programa “Unicap pró-licenciaturas” que se inicia em 2014, basicamente com dois grandes atos: primeiro, o estudo profundo do problema e a reforma das matrizes curriculares; segundo, a decisão de ofertar bolsas integrais (100% gratuitas) àqueles candidatos com perfil do PROUNI. Essa aposta institucional nas licenciaturas manifesta o compromisso da Unicap com as demandas estruturantes da sociedade e revela sua profunda visão de universidade comunitária, para além dos interesses do mercado. E, nesse horizonte de mudanças, foi criada uma nova coordenação de Extensão, organicamente articulada com os centros e áreas de conhecimento, favorecendo a abordagem transdisciplinar e a comunicação dos diversos saberes na perspectiva da incidência prática para as comunidades nas quais estamos inseridos. Queremos, assim, consolidar a articulação constitutiva do conceito de universidade brasileira como ponto essencial da formação integral e integradora, fazendo valer nossas máximas: nosso campus é a cidade e, na Unicap, a qualidade acadêmica visa à excelência humana.
Ora, o binômio “qualidade acadêmica, excelência humana”, mais do que um slogan, quer expressar a vocação humanística da Unicap, o seu compromisso com a formação integral da pessoa e com a elaboração de novos humanismos que, diante dos grandes desafios de nossa época, possam iluminar o caminho da busca de alternativas para a construção de uma sociedade sustentável e verdadeiramente humana. Nesse sentido, em 2010, foi criado o Instituto Humanitas Unicap. A partir da universidade, a missão do Humanitas é procurar estabelecer um espaço de reflexão nas fronteiras do conhecimento, em diálogo fecundo com a cultura e a sociedade. Para isso, é fundamental o conhecimento da realidade, identificando os problemas e buscando as respostas para os grandes desafios atuais. Não basta, porém, um olhar crítico: almeja-se também a transformação da realidade. Assim, o IHU deseja associar-se à missão da universidade no tríplice exercício: compreender a realidade, responsabilizar-se por ela e nela intervir visando à efetiva transformação social. Nessa tarefa, não estamos sozinhos: dentro da universidade, o Humanitas alimenta o espírito de interação e transversalidade; olhando para fora, ele identifica parceiros, cria laços e entra em rede. Esse dinamismo resgata o sentido primordial de uma verdadeira universidade, traduzindo-o para nosso contexto. Numa palavra, o Humanitas tem a vocação de congregar diferentes aspectos da vida acadêmica na perspectiva da formação integral, incluindo a cultura e a arte, o voluntariado e a solidariedade, a espiritualidade e a pastoral.
Genuinamente nordestina, a Católica de Pernambuco nasceu com uma vocação fortemente universalista: por um lado, o espírito pernambucano de dimensões oceânicas – “de Pernambuco para o mundo” – e, de outro, o sentido de toda universidade associado à tradição dos jesuítas, da Igreja e da visão cristã do mundo. Embora esses princípios estejam nos fundamentos da Unicap, as mudanças de tempo e os desafios de nossa época, apontam para a inclusão efetiva do nordeste na pauta nacional, não apenas como beneficiado de políticas públicas, mas como protagonista da construção do país que queremos; e, ao mesmo tempo, o momento é de internacionalização do Brasil. Nesse passo, a Universidade Católica de Pernambuco não está encerrada em seu campus, mas participa de uma agenda ampliada. Na região, a Unicap amplia sua atuação graças a inúmeras parceiras com a Igreja católica, governo municipal e estadual, empresas, ONGs e organizações da sociedade civil. Participamos ativamente da agenda nacional, tanto na Associação Nacional de Educação Católica (ANEC) quanto na Associação Brasileira de Universidades Comunitárias. E, no âmbito internacional, estamos na Associação de IES jesuítas (Ausjal) e na Federação Internacional de Universidades Católicas. Essas agendas múltiplas revelam, de forma bastante visível, o lugar que a Unicap ocupa e seu protagonismo institucional, para além do campus. Enfim, como disse Pe. Adolfo Nicolás, Superior Geral dos jesuítas, em sua visita à universidade (julho 2013): na cidade das pontes, a Unicap é uma universidade sem fronteiras.
Diante da comunidade acadêmica aqui representada, dos jesuítas com quem partilho essa missão, dos representantes da igreja, do poder público e da sociedade pernambucana, assumo, com agradecimento sincero e firme compromisso, a responsabilidade de honrar a tradição unicapiana de qualidade acadêmica em vista da excelência humana. Mas, como dizia João Cabral de Melo Neto: “um galo sozinho não tece a manhã”. Agradecendo, de coração, a presença de todos, concluo com um convite aos nossos professores, funcionários e estudantes: lapidemos juntos a pedra preciosa que nos foi confiada; caminhemos, rumo à terceira margem, na perspectiva do jubileu de diamantes.