Boletim Unicap

Secretário Geral da Fiuc faz palestra na Católica

Fotos: Carlos Vieira

O Secretário Geral da Federação Internacional das Universidades Católicas (Fiuc), Prof. Mons. Guy-Réal Thivierge, fez palestra na noite desta segunda-feira (26), no auditório G1 da Universidade Católica de Pernambuco, sobre a Teologia na Universidade Católica. A palestra  fez parte da programação dos 60 anos da Unicap e foi promovida pelo Centro de Teologia e Ciências Humanas (CTCH). Estavam presentes na mesa, além do palestrante, o Reitor, Prof. Dr. Padre Pedro Rubens; o diretor do CTCH, Prof. Dr.Degislando Nóbrega; o coordenador do curso de Teologia, Prof. Dr. Cláudio Vianney Malzoni; e o coordenador do curso de Filosofia, Prof. Dr. Danilo Vaz Curado. Confira abaixo o texto da palestra na íntegra:

A TEOLOGIA NA UNIVERSIDADE CATÓLICA

Introdução

Agradeço, de todo coração, às autoridades desta universidade, especialmente, a seu Reitor, o Sr. Padre Pedro Rubens. Sinto-me muito honrado pelo convite para falar perante vocês hoje. Peço-vos desde já que me desculpem por não me poder dirigir a vocês perfeitamente na vossa bela língua, o português do Brasil. Mas contando com a vossa indulgência, eu vou tentar!

Nosso encontro está inserido no contexto das celebrações do sexagésimo aniversário de fundação da Universidade Católica de Pernambuco. Em nome da Federação Internacional das Universidades Católicas, à qual pertence vossa universidade desde 1991, tenho o prazer de oferecer a todos os artesãos, passados e presentes, responsáveis por este magnífico sucesso que representa vossa instituição de ensino superior, nosso maior reconhecimento e felicitações mais sinceras e fraternas. Agradeço especialmente às autoridades que se comprometeram no apoio fiel e na colaboração ativa e generosamente oferecida à vida e ao desenvolvimento de nossa Federação.

Também me informaram de que este ano marca ainda um momento importante na vida de vossa instituição: a da recepção dos estudantes de teologia de várias dioceses próximas da cidade do Recife. É um motivo de uma grande alegria, claro, que implica uma delicada transição tanto para os próprios seminaristas, como para a universidade, mais especialmente para o departamento de teologia. Par uns, será sem dúvida uma oportunidade para novos encontros, novas questões e novos posicionamentos relativamente à sua formação sacerdotal e às necessidades do mundo atual e da Igreja; para outros, será o momento de um aprofundamento da vocação acadêmica e eclesial da totalidade da comunidade universitária, que ultrapassa o departamento de teologia. Porque a teologia na universidade católica deve ser um espaço de discussão entre faculdades e departamentos, um ponto excepcional de enriquecimento de todos pela prática da interdisciplinaridade, dos diálogos entre fé, culturas e religiões, e fé e ciências. Tanto a uns como a outros, é preciso desejar que tenham a audácia do encontro na busca humana, acadêmica e espiritual da Verdade e da Sabedoria.

Antes de abordar especificamente minha intervenção sobre A Teologia na Universidade Católica, parece-me importante, numa primeira fase, proporcionar alguns esclarecimentos sobre a situação da tradição cristã da educação, suas raízes e suas evoluções. Numa segunda fase, falarei do binômio universidade-católica, suas relações com a sociedade civil e a Igreja, para finalmente terminar com o papel e o lugar da teologia na universidade católica.

I – Tradição cristã da educação

Em jeito de introdução, coloco a questão seguinte: será que existe uma prática de educação especificamente cristã? A questão é a da originalidade própria de uma prática de educação que se refere ao cristianismo. Em primeiro lugar, existe o reconhecimento da difícil associação entre a dimensão existencial da fé e a objetividade social das instituições eclesiais. E, ainda mais fundamental, haverá um lugar próprio para a fé cristã? Desde sua origem que ela se situa no campo das Escrituras hebraicas, aramaicas e gregas, das quais é responsável pela interpretação e atualização. Da mesma forma, a fé cristã inscreve sua ação em inúmeros domínios de atividades que não lhe são específicos: por exemplo, a cultura, a educação, a sociedade, as ações beneficentes e solidárias, a política (a democracia cristã), entre muitos mais. Manifesta-se neles através de uma maneira de ser, de fazer, um estilo, uma atitude, uma abordagem, uma visão e valores.

Qual é essa variante cristã que a fé cria nas práticas? Uma ética cristã caracteriza-se, entre outros, pelos limites ou acréscimos que proporcionaria às atividades privadas e públicas. Como indica Michel de Certeau, “o cristão seria aquele que, em suas tarefas, não iria além de determinados limites (pensem nos limites que impõe o Decálogo), ou que, ao contrário, ultrapassaria as marcas da normalidade estatutária por supererrogações ou excessos (amar sem limites, perdoar setenta e sete vezes). Um conjunto de paralisações ou de excessos resultaria das intervenções cristãs; elas poderiam desde logo ser caracterizadas como um trabalho sobre o limite. Porém, este varia em função dos indivíduos em termos de conteúdos definidos”. Eis uma constatação que dá lugar a múltiplas variações na determinação daquilo que é uma prática cristã (católica) da educação, que também é sempre função do contexto histórico, cultural e social do momento. Uma breve abordagem da história recente dos grandes textos publicados pelo Magistério, a revelação de determinados movimentos do pensamento, podem ajudar a compreender melhor certas evoluções na prática cristã da educação, que pemanecerá para sempre submetida à lei implacável da Encarnação.

A questão só foi colocada a partir do final do século XVIII e no século XIX, quando surgiram e se desenvolveram a escola e a universidade públicas. As relações entre família, a Igreja e o Estado foram colocadas então no centro da problemática. No século XIX, os Papas exprimiram-se pouco sobre o conteúdo exato da educação cristã. No entanto, alguns grandes princípios apareciam já no conjunto de seus ensinamentos e serão regularmente relembrados:

. A Igreja é, por definição, uma instituição de ensino (princípio profético);

. O princípio do conhecimento é o princípio da salvação; as matérias profanas têm um estatuto subordinado (princípio missionário);

. O ensino é obra da caridade (princípio diaconal);

. O ensino faz-se em nome da Igreja, que delega sua missão de ensinar (princípio confessional);

. Três agentes a considerar: a família, a Igreja e o Estado ou a sociedade civil; o direito e o papel de cada um são diferentes e complementares (princípio jurídico)

A importância relativa e o equílibrio destes cinco princípios são variáveis e permitem uma adaptação ao contexto da época ou do regime de ensino. Cada escola ou universidade católica de serviço público ou privado, atualiza estes princípios de forma diferente.

No século XX, a Encíclica Divini Illius Magistri, publicada pelo Papa Pio XI, em 1929, oferece uma primeira síntese da doutrina pontificial. Duas circunstâncias definem a ocasião: o totalitarismo e a vontade de controle do Estado sobre a educação e a corrente da educação nova e o seu naturalismo pedagógico. Em resposta ao totalitarismo, a Encíclica insiste na articulação das relações entre família, Igreja e Estado. Do ponto de vista das doutrinas pedagógicas, existe uma oposição, relembrando o pecado original, a qualquer liberdade absoluta da criança e do estudante, mesmo que sua cooperação ativa seja recomendada.

Em termos de estruturação do conteúdo, são evidenciados cinco elementos: os responsáveis pela educação, o sujeito, o meio, a fidelidade e a forma. Os responsáveis são as três sociedades necessárias, numa medida proporcionada e correspondente à coordenação de seus fins respectivos; a educação dirige-se ao homem na sua totalidade (sujeito), como indivíduo e como ser social, na ordem da natureza e na da graça, sem esquecer que subsistem na natureza humana os efeitos do pecado original; o entorno educativo deve estar em harmonia com o objetivo proposto, ainda que o meio escolar ou acadêmico deva ser harmonizado de forma positiva com a família e a sociedade civil; a educação consiste essencialmente na formação do Homem (finalidade), lhe ensinando aquilo que ele deve ser e como se deve comportar nesta vida terrena, de modo a atingir a finalidade sublime para a qual foi criado; sobretudo, é importante iluminar a inteligência e fortalecer a vontade através das verdades sobrenaturais e com o auxílio da graça (forma), sem a qual é impossível atingir a perfeição necessária para a ação educadora da Igreja. Como podem constatar, o debate sempre atual sobre o papel mais ou menos ativo do educador, a liberdade e a autonomia maior ou menor do aluno em sua própria formação e a relação entre saber, ciência e a lei divina (ciência e fé) já tinha começado. Contudo, foi preciso esperar pelo Concílio Vaticano II e a Declaração Grvissimum Educationis Momentum de 28 de outubro de 1965 para conhecer um novo esclarecimento sobre o snetido da educação para o mundo de hoje.

Com este texto, temos uma nova carta da educação cristã, cujo tom otimista e aberto é típico do contexto do Concílio Vaticano II. Em relação a Pio XI, que iniciou a reflexão sobre a educação nas instituições, a Declaração conciliar parte do Homem e da sua vocação. Ela situa a educação num contexto antropológico. A Igreja, em virtude de sua missão, coloca-se ao serviço do direito à educação, que está ligada à dignidade da pessoa e à sua liberdade; “ela se oferece para trabalhar com todos os homens a fim de promover a pessoa humana na sua perfeição, bem como para asseguar o bem da sociedade terrena e a construção de um mundo sempre mais humano”. (nº 3)

A Declaração proclama princípios gerais que devem reger qualquer educação digna para o Homem. É interessante notar que o documento conciliar versa sobre a “educação cristã” e não exclusivamente sobre a educação católica. Muito longe de defender o seu único domínio, o dos batizados, a Igreja tem a missão de libertar e de salvar todos os homens. Este princípio da intenção pastoral leva a destacar essencialmente a educação da fé, seja qual for o meio educativo. Para o Papa Pio XI, a escola (e os meios de ensino) tinha um caráter secundário em relação à família e à instituição eclesial. A Declaração conciliar apresenta-se como um “centro onde se encontram, para partilharem as responsabilidades de seu funcionamento e progresso, famílias, professores, grupos de todos os tipos criados para o desenvolvimento da vida cultural, cívica e religiosa, a sociedade civil e, finalmente, toda a comunidade humana”. (nº 5)

É evidente que a presença da Igreja nos domínios escolares e universitários se manifesta de forma especial nos contextos das escolas e universidades católicas. Tal como os outros meios de educação, estes perseguem objetivos culturais e a formação humana dos estudantes. Sua particularidade “é criar para a comunidade escolar (e universitária) uma atmosfera animada com um espírito evangélico de liberdade e de caridade, ajudar os adolescentes (e os estudantes) a desenvolverem a sua personalidade, fazendo crescer ao mesmo tempo esta nova criatura em que se transformaram pelo batismo, e finalmente ordenar toda a cultura humana a partir do anúncio da salvação, de tal forma que o conhecimento gradual que os alunos adquiram do mundo, da vida e do Homem seja iluminado pela fé”. (nº 8)

Podemos constatar que nossa missão é sempre marcada por esses “limites”, por essas aberturas em positivo e em negativo, por essas tensões que, longe de serem paralisantes ou até mortíferas, são forças criadoras de futuro, uma vez que nos convidam à ponderação e à superação em uma dupla fidelidade ao homem e a Deus. De alguma forma. uma relação inamissível com a terra e o céu, a história e a eternidade, a razão e a fé, a construção do mundo de hoje e o Reino presente e futuro. isto indica até que ponto é nosso dever assegurar a síntese entre a cultura e a fé, por um lado, e entre a fé e a vida, por outro. A primeira destas sínteses é realizada por assimilação, à luz da mensagem evangélica, do saber humano contido nas diferentes disciplinas. a segunda, pela aquisição do espírito e das virtudes que caracterizam o cristão.

II – Universidade e Católica

Neste vasto contexto de educação cristã que nos oferece os pontos de referência essenciais nesses domínios, vamos debruçar-nos agora mais particularmente na universidade católica. O primeiro fato que gostaria de sublinhar é que a universidade não é uma construção teórica, mas uma realidade viva e que, deste modo, faz parte do mundo contemporâneo. Nossas universidades católicas estão também presentes e agem em vários países, frequentemente, de forma significativa. Duzentas e quinze dentre elas fazem parte da Fiuc, as mais importantes, mas o número de estabelecimentos de ensino superior católico no mundo ultrapassa largamente este número e se aproxima das 1.500, de acordo com as últimas estatísticas estabelecidas pela Congregação para a Educação Católica; mais de 220 dentre elas encontram-se na América Latina. Esta presença traduz-se em condições institucionais e culturais muito diversas: países ricos, países pobres, países em via de desenvolvimento, países de tradição cristã e católica, países onde predominam outras tradições religiosas. Em alguns casos, se beneficiam da ajuda financeira do Estado, enquanto, em outros locais, vivem situações de pobreza trágica ou de marginalidade, podendo até chegar praticamente a sofrer perseguição em determinados casos. Tanto nas instituições seculares da Europa, como nos novos estabelecimentos que são criados todos os anos novos continentes, os problemas acadêmicos e financeiros com os quais são confrontadas são consideráveis e só podem ser ultrapassados com uma convicção forte, profunda e amplamente difundida, do sentido e da importância da missão que lhes é confiada.

São estas convicções que, no meio de situações radicalmente diferentes, alimentam as mesmas generosidades e que, para lá das diferenças, desencadeiam um sentimento de pertença comum a uma família espiritual de unviersidades.

Para além de suas convicções, realizações e dinamismo, qual é o motor (primum movens) que as anima? Para responder a esta questão, mais uma vez, não partirei de considerações teóricas, mas de nossa experiência comum, dado que nos comprometemos como professores, pesquisadores, estudantes, administradores em uma universidade católica. Que podem significar para nós e para o mundo de hoje o substantivo “universidade” e o adjetivo “católica”, e sobretudo o fato de os unir, de os ligar um ao outro? A priori, isto significa que reivindicamos ao mesmo tempo a ambição de sermos plenamente universitários e o fato de assumirmos essa ambição com respeito a uma inspiração cristã e a uma posse institucional à Igreja católica.

Pertencemos ao mesmo tempo à sociedade civil em seu serviço de produção e de difusão de conhecimentos, mas também à Igreja. Pretendemos prestar serviço às duas, o que significa que nos situamos, de algum modo,  em sua interface, em seu ponto de encontro, que pode ser de divergência ou de convergência, de afrontamento ou de diálogo. Nossa situação de princípio é esta. Porém, temos de ver se se trata de uma realidade e não só de uma justaposição de palavras, o que significaria que constituiríamos universidade que de católicas só teriam o nome ou estabelecimentos com finalidades exclusivamente religiosas e eclesiais, e que utilizariam abusivamente o título de universidade. A questão tem razão de ser e a experiência demonstra bem que estas duas hipóteses (uma universidade que de católica só tem nome ou uma instituição religiosa que de universidade só tem o nome) não são infelizmente casos teóricos.

Pessoalmente, tenho a firme convicção, e verifico-a em minha prática diária, que podemos realmente ser universidade católica, em fidelidade plena e original para com a sociedade civil e a Igreja. Assim, convido-os a aprofundar sucessivamente as duas dimensões dessa interface: nossa presença, não só de universidade, mas de universidade católica na sociedade civil, e nossa presença, não só de instituição católica, mas de universidade católica na Igreja.

A universidade católica na sociedade civil. Antes de nos interrogarmos sobre o papel da universidade católica, é necessário relembrar com força uma limitação de base à qual ninguém escapa: é que uma universidade católica deve ser primeiro e tão plenamente quanto possível uma universidade. Como os outros estabelecimentos de ensino superior e de pesquisa de nosso país e do mundo, participamos nessa tarefa apaixonante que consiste em produzir e difundir o conhecimento ao nível mais elevado, tarefa que é motor do dinamismo, a chave do futuro, o depósito essencial da capacidade de progresso e de renovação das nossa sociedades contemporâneas.  Deste modo, temos um lugar e, com todos os colegas, formamos uma equipe de artesãos do futuro.  E este trabalho de pesquisa e de ensino superior deve ser assumido com todas as exigências de rigor, seriedade, honestidade, adaptabilidade, abertura à vida profissional e social. A fé cristã na matéria não nos dispensa de nenhuma dessas exigências, bem pelo contrário. Ela não nos traz qualquer método ou resultado especial, científico ou pedagógico. Relembremos que ela nos coloca no limite do compromisso e da superação, em situação constante de liberdade e de ponderação. Devemos procurar fazer nosso trabalho da melhor forma possível, promover insistentemente a qualidade de nossas investigações e pedagogias, áreas de formação, e nos adaptar o melhor possível às exigências da transformação do mundo.

É no centro deste trabalho, não no lado, nem por cima dele, que pode e deve ser expressado o papel específico de uma universidade católica. Como é que o fazemos?  É aqui que entra em jogo o papel das pessoas, dado que o trabalho universitário nunca é puramente técnico ou científico. O homem ou a mulher que se dedicam a ele não fornecem apenas seus conhecimentos, mas também seus comportamentos, valores, ética, concepção de vida, sem esquecer sua visão da vida universitária e sua relação com a Igreja. Isto é particularmente verdadeiro no que diz respeito ao ensino e, ainda que menos aparente, concerne também a pesquisa, porque a pedagogia exprime e transmite a totalidade de uma pessoa: sua abnegação e sua dedicação aos outros, seu respeito pela verdade, sua concepção da vida pessoal, profissional e social. Não partilhamos apenas os conhecimentos e as técnicas, mas também os valores e a ética. Podemos sempre procurar ser o mais rigorosos e objetivos possível, mas nunca somos verdadeiramente neutros. Não podemos afastar o homem universitário do trabalho de formação que o absorve. A pedagogia nunca é inocente, conscientemente ou não.

E se a ética está bem presente no centro da atividade do professor ou do pesquisador, não é o efeito de uma acaso infeliz. É porque a exigência ética é a manifestação de um chamamento que vem do mais profundo da alma humana, que é como a marca de sua vocação. E é essa vocação que confere ao Homem sua eminente dignidade, que exige que ele seja sempre e em todas as circunstâncias tratado como um fim, nunca um meio. Neste contexto, a vocação da universidade não é apenas a do conhecimento e da ciência, mas também a da sabedoria. Hoje mais do que nunca, a ciência precisa de “razão de ser” para servir eficazmente a humanidade. E os homens e as mulheres que praticam esta ciência têm necessidade de dar um sentido, ou até uma esperança, à sua pesquisa e aos seus ensinamentos. É oportuno e fecundo para a sociedade que aqueles que possuam uma mesma visão cristã do Homem e do destino possam se encontrar explicitamente no seio de uma universidade católica para trabalharem juntos nesta busca do sentido, iluminados e estimulados pela fé. Irão fazê-lo sem dogmatismo nem exclusividade, mas com convicções e competências.

O serviço da Igreja de nossas universidades católicas. O serviço que prestamos à sociedade civil não é evidentemente a única dimensão de nossa especificidade de universidade católica, nem de nosso papel no mundo comtemporâneo. Situados na interface da sociedade civil e da Igreja, assumimos igualmente um serviço de Igreja. E este serviço é essencial tanto para a nossa identidade como para o trabalho que realizamos no mundo de hoje. Ao contribuir para dar à Igreja um certo nível de abertura, de capacidade, de evolução, de rigor e de credibilidade assumimos, claro, um serviço eclesial, mas também, através dele, um serviço ao mundo contemporâneo.

Então, qual poderá ser o sentido e o conteúdo desta segunda dimensão de nossa especificidade e de nossa missão: o serviço da Igreja em uma universidade católica?

Tomo a liberdade de precisar imediatamente que não se pode tratar, a meu ver, de uma categoria de atividades completamente diferente das outras, de alguma forma justaposta ou até dividida em relação a elas. É em virtude do conjunto de nossos trabalhos que estamos tanto ao serviço da sociedade como da Igreja. Aprofundar e difundir a cultura religiosa constitui uma clara contribuição para a qualidade da sociedade civil e, reciprocamente, para refletir na inspiração da fé e da grande tradição intelectual cristã sobre os grandes problemas humanos e éticos de nosso tempo, sendo um serviço muito precioso de testemunho e de presença que oferecemos à Igreja. Assim, compreenderão que aqui se trata muito mais de descrever duas finalidades e não duas categorias diferentes de atividades.

Serviço de Igreja primeiro, que evoquei há um instante, pelo conjunto de nossas atividades de ensino e de investigação levadas a cabo com o espírito e as exigências que descrevemos anteriormente. Este é um elemento essencial da presença da Igreja no mundo. “Unir a luz da Revelação à experiência de todos para iluminar o caminho que a humanidade acabou de inicar”, ensina-nos Gaudium et Spes (nº 33). Essa é a vocação de qualquer cristão e, particularmente, de uma instituição cristã universitária. Vivemos em sociedades onde o nível e o conteúdo dos conhecimentos se renovam e aumentam constantemente. E nem a fé nem as comunidades cristãs podem permanecer alheias a mesta evolução. Sua credibilidade está em causa, e a simples questão da qualidade técnica de nossos ensinamentos e investigações constitui já em si um elemento apologético importante, demonstrando que os cristãos, os universitários católicos, estão presentes e comprometidos na evolução do mundo.

Este serviço de presença e de testemunho não é único. Mais em profundidade, a fé é interpelada pelas mutações científicas, tecnológicas e culturais. Seu conteúdo e, a fortiori, o contéudo de suas implicações éticas, não é nem intemporal nem desenraizado. Ele é explicitado e vivido por homens e mulheres, em sociedades inseridas em uma época e locais determinados, marcados por um estado dos conhecimentos e um tipo de cultura. Assim, é essencial inculturar a fé, desenvolvê-la sempre, especialmente em períodos de mutação radical dos conhecimentos e da cultura. Aqui se encontra o segundo aspecto de nossa vocação: oferecer à Igreja hierárquica e a qualquer comunidade cristã as contribuições e as questões da evolução científica e cultural. Isto também é verdade para a Igreja e, a esse respeito, também temos um serviço considerável a prestar-lhe em matéria de investigação científica e de formação filosófica, teológica e ética, e isto, claro, em todas as diferentes disciplinas, nomeadamente, as ciências humanas, cujas descobertas podem ser importantíssimas. Vou partilhar com vocês hoje outra das minhas convicções profundas: o pensamento da Igreja, sua grande tradição intelectual de ontem, a de hoje e a de amanhã, rica e sempre aberta, também é elaborada na universidade católica.

Nossas universidades devem então ser verdadeiros “laboratórios da Igreja” que estimulam e enriquecem o aprofundamento, a explicitação, a inculturação da fé.  Este  é um desafio fundamental para a nossa comunidade cristã e para o mundo contemporâneo. E essa tarefa deve ser assegurada por nós a todos os níveis: local, regional, nacional e internacional, e para uma variedade de públicos cada vez mais vastos.

A universidade católica ao serviço da Igreja: nela representamos um local original que é parte integrante da comunidade eclesial, mas que não deixa de ser um dicastério. Nosso papel não é o de participar na função de governo da Igreja, mas em sua  missão de investigação, educação, testemunho e presença. Para isso, necessitamos estruturalmente tanto de laços de colaboração confiável com as autoridades hierárquicas, como de espaços de liberdade. Porque a pesquisa só pode ser desenvolvida num contexto de liberdade acadêmica. A forma de combinar estas duas exigências nem sempre é fácil de articular. Aliás, ela recebe, em função dos países, das instituições e dos momentos históricos, soluções estruturais diversas e variadas. O essencial é assumir ambas na fé, na esperança e no respeito, com as tensões por vezes dolorosas, mas muitas vezes criadoras que elas podem desencadear. Porém, é necessário assumir uma e outra, precisamente porque nós somos plenamente de Igreja e plenamente universitários. Como disse João Paulo II no Instituto Católico de Paris em 1980, afirmação retomada textualmente na Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae em 1990: “não existe contradição entre a procura da verdade e a certeza de conhecer essa verdade”. (nº 1)

III – A Teologia na Universidade Católica

Abordemos agora o papel mais específico da teologia na universidade católica. Já destacamos vários aspectos relativos ao papel essencial da fé eclesial como força estruturante e envolvente da missão de nossas instituições de ensino superior. Será que a teologia ocupa nelas um lugar privilegiado:

É da responsabilidade de uma universidade católica consagrar-se á inteligência e á fé. A maioria das vezes, está missão é realizada no quadro formal de um departamento ou de uma faculdade de teologia ou através de programas de formação teológica e religiosa oferecidos aos alunos, frequentemente, adaptados a seus percursos disciplinares e profissionais. A fé possui uma dimensão de racionalidade que convém honrar. Fides quaerens intellectum: este adágio de Santo Anselmo, que comanda há muitos séculos o trabalho daquilo que se chama as ciências sagradas, e, principalmente, a teologia, merece ser hoje pensado com novos parâmetros.

É necessário assinalar que as faculdades de teologia evoluíram consideravelmente nas últimas décadas, ao mesmo tempo que a universidade se desenvolvia em mais regiões do mundo. Muitas vezes, as faculdades foram identificadas como seminários maiores e seu programa de estudos estava definido em função da formação de futuros padres.  Depois dos anos 60-70, pelo menos no velho continente europeu, várias universidades católicas, para assegurarem sua modernização e desenvolvimento enquanto instituto de ensino superior, deram mais enfoque a seu caráter secular e público. De alguma forma, elas “secularizaram” suas estruturas e solicitaram a ajuda financeira do Estado, apoiando a democratização do ensino e a acessbilidade aos estudos. No plano pedagógico, os programas de estudos foram remodelados tendo em conta novos padrões nacionais e internacionais e a pesquisa científica conheceu um impulso considerável. Todos estes fatores tiveram impacto no projeto de formação teológica e no sistema universitário.As instituições de teologia não podiam mais ficar satisfeitas com apenas evocar, calmamente, a tradicação, que por outra parte é indispensável conhecer, para asseguar sua presença na universidade e justificar sua missão na sociedade. Será que podemos dizer que foi uma passagem de uma teologia de repetição para uma teologia de interrogações, uma teologia crítica?

Por exemplo, houve uma época na qual a teologia dogmática se consagrou principalmente a uma reflexão acerca do dogma da Igreja e sobre sua apresentação. Houve outra durante a qual, confrontadas com um questionamento da tradição e da atitude crente perante as ciências históricas, as faculdades de teologia ssumiram essencialmente a tarefa de explorar o legado de seu patrimõnio histórico. Estas duas abordagens pareciam pouco conciliáveis, dado que a crítica histórica era percebida como sendo um risco para as sínteses dogmáticas. Parece cada vez mais claro que estamos entrando em um novo período que intregra os conhecimentos adquiridos na investigação histórica e os desenvolvimentos da experiência teologista no pensamento teológico. A questão sobre a verdade é sempre colocada, não reduzida a acumulação de formulações herdadas do passado, mas em um movimento de tradição unificadora que se constrói e se pensa. As divisórias quase estanques que existiram entre o que foi chamado de teologia positiva, teologia especulativa e teologia prática são, doravante, consideradas como a herança de uma situação que foi exageradamente endurecida. Teólogos e exégetas estão conscientes de que sua relação deve ser repensada. Aqui há uma tarefa que realizam agora as faculdades de teologia e de ciências religiosas, sendo que uma melhor articulação entre essas diferentes atitudes se tornou necessária para pesquisa de uma verdade teológica.

O mundo contemporâneo, civilizações e culturas, coloca igualmente aos teólogos novas questões que conduzem os professores a empreenderem pesquisas adequadas, cruzando, tanto quanto possível, essas questões com suas disciplinas: teologia das religiões, hemenêutica, dimensão narrativa da teologia e da exegese, recurso às Escrituras como fonte de uma teologia moral, para citar apenas algumas.

Está sendo formalizado um traalho análogo em filosofia. A reivindicação de uma racionalidade pura, livre de qualquer filiação confessional ou política, já quase que não é tida em conta para os filósofos contemporâneos. A maioria reconhece o papel da crença, muitas vezes sem ligação necessária a uma transcendência ou a uma fé, em qualquer abordagem filosófica. A reflexão sobre a articulação entre a racionalidade e a crença, sem a intenção alguma de alterar o pensamento de filósofos agnósticos e ateus, é uma das tarefas que pode ser dada a uma faculdade católica de filosofia em diálogo com os teólogos. Os ensinamentos e as investigações em metafísica, filosofia da religião, fenomenologia e hermenêutica são inscritas nessa corrente. Por falar nisso, vamos recorar o velho ditado: bonus metaphisicus, bonus theologicus. Como seria pensável empreender um caminho teológico sem previamente ter bases sólidas em filosofia?

Também está sendo realizado um trabalho semelhante no direito canônico. Ciência positiva, se é que se pode chamar assim, a história das instituições e a filosofia do direito questionam as leis escritas e o direito consuetudinário. A publicação, em 1983 e 1990, dos dois códigos de direito canônico, o da Igreja latina e os das Igrejas orientais, colocou o enfoque na necessidade de diálogo entre o direito canônico e as culturas. Existe uma necessidade urgente de pesquisa em filosofia antropológica, assim como em teologia do direito canônico ou até uma eclesiologia repensada do direito canônico, o que implica para uma faculdade de teologia onde também se ensine essa matéria (habitualmente é o caso na maior parte das universidades) abrir novos caminhos de pensamento.

Ao adquirir uma certa autonomia em relação aos seminários maiores que anteriormente eram o local por excelência das faculdades eclesiásticas, as faculdades de teologia sofreram então profundas transformações. Os estudantes diversificaram-se, acolhendo cada vez mais laicos, homens e mulheres. Os programas de formação pastoral ou catequética ou de ciências religiosas foram estabelecidos. As ciências humanas fizeram sua entrada progressiva, introduzindo novas abordagens e novas leituras das realidades culturais, eclesiais e teológicas. As ciências das religiões geraram, um pouco por todo o lado, mais interesse. o desenvolvimento do ensino de adultos e o modelo da formação contínua também modificou o tratamento pedagógico das questões teológicas. Foi assim que o projeto teológico das faculdades eclesiais foi sendo progressivamente definido, tendo em conta as novas questões colocadas pela cultura. O que é pedido aos teólogos atualmente é a distância própria de um pensamento crítico em relação às exigências cada vez maiores no que toca à inteligência da tradição e da complexidade de uma palavra da Igreja recebida nos contextos do pluralismo cultural e religioso contemporâneos.

Os teólogos estão, também, no limite, numa espécie de dilema permanente. Só são credíveis como universitários se argumentarem livremente, inscrevendo-se no que o teólogo Christian Duquoc chama de “democracia de opiniões”, manifestada no debate público no seio da nossa cultura. No entanto, só se podem apresentar como teólogos aqueles que aceitam a mediação das Escrituras, da tradição e do magistério eclesial. Como honrar esses dois polos, muitas vezes aparentemente irreconciliáveis? No mínimo, podemos dizer que a universidade católica tem o dever de voltar a colocar a teologia no debate cultural contemporâneo. A este respeito, queria recuperar o pensamento vigoroso de João Paulo II, expressado na Constituição Apostólica Ex Corde Ecclesiae: “Uma fé que se situa nas fronteiras daquilo que é humano, e assim daquilo que é cultura, é uma fé que não reflete a plenitude do que a Palavra de Deus manifesta e revela, é uma fé decapitada, pior ainda, uma fé em fase de autodestruição”. (n 44)

Perspectivas

A universidade católica não é uma sobrevivente do passado, ela responde a uma necessidade atual, porque é portadora de uma “tradição de esperança e de servi;o”. A missão e a razão de ser da Fiuc é compreender as grandes problemáticas de nossos tempos e dar-lhes respostas através da produção e da difusão de conhecimentos. A divisa da federação, “Sciat vt Serviat” (Saber para Servir) descreve bem essa ligação esteita que se esforça por construir e desenvolver nas universidades católicas entre, por um lado, a construção coletiva do saber e, por outro lado, a transformação de suas experiências em tantos benefícios úteis e duradouros para os homens e para as mulheres de nossa sociedade e da humanidade. Daí a importância de nossas universidades formarem profissionais de excelência, mas, ao mesmo tempo, que estes sejam pessoas responsáveis, críticas, preocupadas em construir um mundo mais justo e mais humano. Isso significa, portanto, que nossa missão não está completa se só formarmos profissionais competentes; devemos ajudar nossos estudantes a cultivar neles o suplemento de alma que os tornará líderes, campeões da consciência social e da solidariedade.É esta a originalidade da formação que faz as gerações mais jovens virem bater à porta das universidades católicas.

A teologia também deve ocupar todo o espaço que lhe pertence neste projeto cristão de encaminhamento universitário; os grandes desafios ligados à própria formação e os que nos coloca o mundo contemporâneo também podem ser lidos e apreendidos à dupla luz da ciência e da fé. A pessoa humana e a ética cristã encontram assim seu desenvolvimento no coração do projeto universitário; é nosso dever preservar este espaço com muito orgulho e tentar que seja o mais inteligível possível para todos.

A inscrição da teologia nas universidades públicas ou privadas (geralmente, as católicas) convida ao diálogo entre as disciplinas teológicas e outras ciências e a experiência no seio da universidade. Além disso, o alvo da teologia como ciência universitária reside na criação de um entendimento estabelecido entre a fé e a razão nos contextos pluralistas. O homem não poderia dar sua concordância na fé a nenhuma afirmação, se não a compreendesse de uma certa maneira. A reflexão é necessária em cada momento de nossa vida de fé; sem que tenhamos sempre consciência disso, uma espécie de negligência do pensamento, uma piedosa instrospecção sobre um acontecimento, se apodera facilmente do crente. E, se nós não tivermos cuidado, ficamos bloqueados, embalsamados à graça recebida.

Neste sentido, temos três tentações: o “racionalismo teológico” que faz do cristão um espectador puro da divindade e não um ator da sua graça; o “fideísmo sentimental”, que reduz o cristianismo a uma emoção subjetiva; o “moralismo fingido”, que é um simples catálogo de valores e códigos, esquecendo que a fé é um ato de amor, um encontro comovente e unificador, e ao mesmo tempo uma alegria sempre no limite de nossos sonhos e de nossas esperanças, à altura do Homem e à altura de Deus.

Muito obrigado por vossa gentil atenção.

Prof. Mons. Guy-Réal Thivierge – Secretário Geral da Fiuc

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