Marcelo Barros: Mulher, divina generosidade da vida

Nessa semana, ao comemorar o dia internacional das mulheres, homens e mulheres de todo o mundo estaremos lutando contra o patriarcalismo que, unido ao sistema econômico dominante, desumaniza mulheres e homens, além de maltratar a mãe Terra. Temos motivos culturais, sociais e políticos para levar essa luta adiante, até conseguirmos nos libertar e construirmos um mundo de justiça e igualdade de gêneros. Para quem crê em Deus, esse compromisso ainda se torna mais exigente. Aceitar ou ser conivente com o patriarcalismo é atentarmos contra o projeto de Deus que nos criou homens e mulheres, iguais e complementares. Infelizmente, essa luta tem de se dar nas arenas da política, mas também em outros cenários. Até mesmo dentro das religiões e nas próprias Igrejas cristãs ainda há muito a conquistar. Desconsiderar a igualdade entre homem e mulher é uma questão não somente social e cultural, mas toca no centro da espiritualidade cristã. Nega o jeito de Jesus ser, já que ele sempre agiu justamente privilegiando a relação de gêneros. Trata-se de testemunhar o jeito de ser do próprio Deus Amor. Como nos anos 80, já afirmava Leonardo Boff: “Cada vez que uma mulher é marginalizada na Igreja, nossa experiência de Deus é prejudicada. Nós nos tornamos mais pobres e nos fechamos a um sacramento radical de Deus“. Então, uma justa e libertadora relação de gêneros é caminho e método de espiritualidade cristã.

Desde a antiguidade cristã, homens e mulheres aprofundaram a mística e desenvolveram métodos para se viver a intimidade com Deus. Mulheres como Hildegardis de Bingen (século XI), Catarina de Sena (século XIV) e Teresa de Ávila (século XVI) viveram a intimidade com Deus como relação afetiva e com uma linguagem própria do universo feminino. Somos testemunhas de Deus como Mistério de Amor e de Paixão. A espiritualidade baseada na relação de gêneros nos leva a valorizar mais a corporeidade e a dimensão afetuosa e mesmo erótica da vida, como caminho de intimidade com o Mistério.

No Islã, foi uma mulher, a mística medieval Rabbia Al Adawiya (701- 801) que deu à espiritualidade muçulmana uma linguagem de intimidade nupcial com o amor divino. Ela fez os muçulmanos se recordarem de um dito atribuído ao profeta Maomé: “Três coisas no mundo me foram dadas por ti e se tornaram dignas de amor: as mulheres, o perfume e a oração”. Alguém observou com certa ironia que, nessa palavra do profeta, a oração é citada como terceiro ponto na relação com Alá. A mulher é o primeiro. Em vários países da América Latina, como no Brasil, as populações mais pobres são muito impregnadas pelas culturas negras e indígenas. Nas culturas negras e algumas indígenas, a bênção é carisma das mulheres benzedeiras; a cura, das curadoras. Em muitas comunidades afrodescendentes, o sacerdócio é exercido por Ialorixás (mães de santo).

Para nós, do século XXI, essa compreensão humana da Espiritualidade é importante. Ela vai além do mundo cristão. Expressa-se na proposta de autores como Marià Corbì que denomina a Espiritualidade, como “qualidade humana profunda“. Também Ken Wilber, filósofo norte-americano, compreende a espiritualidade como “visão integral”. Isso significa que a espiritualidade é um processo existencial que nos faz passar de um estado egóico a outro mais etnocêntrico e finalmente a uma postura de tipo cosmocêntrica”.

Nesse modo de compreender a espiritualidade humana e ecumênica, alguém é espiritual quando reconhece e valoriza plenamente a humanidade tanto do homem, como da mulher. Infelizmente, durante toda a história e até hoje, impregnadas de uma cultura patriarcal, muitas religiões ignoraram e, às vezes, até hoje descuidam dessa valorização da dignidade da mulher e de uma justa relação de gêneros. Até hoje, vivemos isso na Igreja Católica e em algumas Igrejas Cristãs. Ao manter os ministérios ordenados como privilégio masculino e ao exercê-los de forma patriarcal, as Igrejas não apenas fazem uma leitura fundamentalista de textos bíblicos. Cometem um pecado que é social (pecam contra a justiça), mas principalmente testemunham uma postura anti-espiritual e abafam “o que o Espírito diz hoje às Igrejas” (Ap 2, 5).

No século XX, uma testemunha que viveu isso profundamente foi uma jovem judia holandesa, Etty Hillesum, presa pelos nazistas em um campo de concentração. No dia 12 de julho de 1942, esperando o dia de ser executada, ela escrevia em seu diário: “Vou ajudar-te, meu Deus a não apagar-te de mim, mas não posso garantir nada. O que vejo com clareza é que não és Tu quem pode nos ajudar e sim nós, (judeus) que podemos ajudar a Ti e, ao fazer isso, podemos ajudar-nos a nós mesmos. Isso é tudo o que, nesse momento, podemos salvar e também a única coisa que conta: um pouco de Ti em nós, meu Deus.  Talvez, possamos também fazer que venha à luz (apareça) a tua presença nos corações devastados dos outros”[1].

  [1] HILLESUM, Etty. Diario (1941- 1942). Milano: Adelphos, 1998.
LEBAU, P. Etty Hillesum, un itinerario espiritual. Bilbao: Sal Terrae; Santander, 2000.

 

[*] Marcelo Barros, monge beneditino, teólogo e biblista, é membro da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT) e assessora comunidades eclesiais de base e movimentos sociais. Tem se dedicado especialmente a estudar o pluralismo cultural e religioso e particularmente ao contato com as religiões de matriz afro-descendente. Publicou 44 livros no Brasil, alguns traduzidos em outros idiomas, além de vários livros coletivos, como a coleção “Pelos muitos caminhos de Deus”, sobre teologia pluralista da libertação. E-mail: contato@marcelobarros.com Site: www.marcelobarros.com

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