O Plano de Resposta da ONU-HABITAT ao Covid-19[1] aponta que a Pandemia atinge mais de 1.430 cidades em 210 países, sendo 95% dos casos nos centros urbanos. O documento afirma que o impacto da crise será mais devastador nas áreas pobres e adensadas dos centros urbanos, em especial para as favelas e assentamentos informais, consequência de um Século XXI em que uma maioria precarizada conhece do capital globalizado apenas seus efeitos perniciosos: são 2,4 bilhões de pessoas com limitações de acesso à água e saneamento e 1 bilhão de pessoas reduzidas à vida em assentamentos adensados e de conformação inadequada.
Na América Latina o desafio no enfrentamento a Covid-19 inclui o desigual acesso ao serviço de saúde além do severo impacto econômico derivado do declínio do comércio, indústria e turismo, resultando num aumento do desemprego e redução do salário. A partir dessa perspectiva a Declaração nº 1 da Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH expressa que as medidas de enfrentamento e contenção à pandemia devem ter por centralidade os direitos humanos, em especial, os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais dos mais vulneráveis.
No Brasil, o índice de letalidade da Covid-19 é já 5 vezes maior para a população negra. As condições socioeconômicas, de habitação e de acesso à infraestrutura precárias ampliam a vulnerabilidade socioespacial de contaminação o que demandaria medidas específicas para as diferentes porções do território[2]. As mais de 68 mil mortes decorrentes do coronavírus marcam as entranhas da desigualdade histórica que produziu as cidades brasileiras. A necropolítica[3], entendida como o poder sobre a vida e a morte dos corpos negros, parece ter encontrado comprovação cabalística na condução política da pandemia pelo executivo federal.
A Região Metropolitana de Recife desponta, lamentavelmente, com o maior Índice de Vulnerabilidade Social – IVS (0,331) dentre as RM’s analisadas em recente estudo do IPEA. O índice está diretamente relacionado a probabilidade de contágio[4]. Dentre as duas cidades mais desiguais de todo o país[5], Recife acentua seu déficit habitacional de aproximadamente 300.000 pessoas[6].
A única coisa de que se tem segurança, na velocidade dos acúmulos diários, é que não retornaremos ao mesmo mundo em que vivíamos. É nesse contexto que o Estatuto da Cidade, (Lei 10.257/2001), completa seus 19 anos. A pobreza extrema ameaça atingir níveis históricos, propícios às soluções autoritárias e à violação dos direitos humanos. A esperança de transformação das cidades e de um país menos excludente, que gestaram o instrumento, parece recair num sonho relegado apenas a memória.
Fruto das Lutas das Comunidades e Territórios e do Movimento Nacional pela Reforma Urbana, acreditava-se possível que as contradições que produzem as cidades pudessem ser equilibradas através dos instrumentos e diretrizes do referido diploma. Se em 2001 o Estatuto da Cidade expressava a luta orgânica e democrática pela Reforma Urbana, chega a 2020 numa realidade que flerta com o distópico, onde o Capital prossegue com sua visão de Cidade como negócio ditado por empreiteiras e renovações de mandatos enquanto corpos são atirados a valas comuns.
A superação dos conflitos socioespaciais e a justa distribuição dos ônus e benefícios do processo de urbanização, bem como o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana e a universalização do direito à moradia digna dependem mais do que nunca de uma ação de vanguarda que extrapole os sentidos da gestão democrática das cidades, da transparência e da participação popular orientadas para o método do planejamento estratégico (artigos 2°, IV, 4º, I, II e III, f; 40, I, II e III e 44 do Estatuto da Cidade).
O Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social – CENDHEC entende que é da luta intransigente pelos direitos humanos a produção, entre as tarefas de enfrentamento às mazelas do sistema de capital e formação do sujeito transformador da realidade, de sínteses contra hegemônicas. Agora não será diferente. A desigualdade extrema, discriminação histórica e debilidade democrática, desnudas nas cidades brasileiras pós-pandemia, encontrarão a resistência ativa das Comunidades e Territórios em defesa do direito à moradia digna e justa para todas e todos.
O Direito à Cidade assume então a centralidade da defesa pela vida humana em face da subtração da realidade aos processos de uberização e financeirização das relações, maquiadas por promessas de uma cidade nova ou renovada. Neste sentido, o Estatuto segue sendo das mais relevantes normas para a implementação de um olhar do urbano que se contraponha à segregação socioespacial, às deficiências na infraestrutura urbana, aos processos de gentrificação, à deterioração da qualidade de vida, e ao déficit ou a precariedade habitacional, realidade da maioria vulnerabilizada do país.[7]
“Combater as desigualdades sociais, transformando as cidades em espaços mais humanizados, ampliando o acesso da população à moradia, ao saneamento e ao transporte”, era a missão do Ministério das Cidades, pasta que encontrou sua antítese no atual Presidente da República que relegou a discussão da política urbana à instabilidade política hoje hiperbolizada pela crise sanitária. Trata-se de caos produzido deliberadamente para o controle dos corpos sob condições indignas enquanto a cidade funciona como uma máquina produtora de mais valia de negros, pobres e periferizados que sustentam esta crise humanitária e de saúde sem precedentes[8] com o preço de suas próprias vidas.
O coronavírus esfacela as outrora abertas veias da América Latina.“Fique em casa”, “lave as mãos”, “use álcool em gel”. Mas que casa, com que água e que dinheiro? A realidade dos adensamentos é a da coabitação, da falta de água e de saneamento. Trata-se da hipocrisia autorizada, mais uma vez neste país, pelo autoritarismo.
O Poder Popular é o recurso elementar das cidades e apenas através dele será possível, de fato, a “gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano”, art. 2º, II, do Estatuto da Cidade. Trata-se da luta por cidades produzidas democraticamente. “Todo poder emana do povo que o exerce (…) diretamente”, este é o horizonte.
[1] << https://unhabitat.org/sites/default/files/2020/04/final_un-habitat_covid-19_response_plan.pdf >> Acesso em 04 de maio de 2020.
[2] Nota Técnica IPEA nº 15. Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – DIRUR. APONTAMENTOS SOBRE A DIMENSÃO TERRITORIAL DA PANDEMIA DA COVID-19 E OS FATORES QUE CONTRIBUEM PARA AUMENTAR A VULNERABILIDADE SOCIOESPACIAL NAS UNIDADES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DE ÁREAS METROPOLITANAS BRASILEIRAS. Abril de 2020.
[3] Mbembe, Achile. Necropolítica. Arte & Ensaios, revista do ppgav/eba/ufrj, n. 32, dezembro 2016.
[4] Nota Técnica IPEA nº 15. Diretoria de Estudos e Políticas Regionais, Urbanas e Ambientais – DIRUR. APONTAMENTOS SOBRE A DIMENSÃO TERRITORIAL DA PANDEMIA DA COVID-19 E OS FATORES QUE CONTRIBUEM PARA AUMENTAR A VULNERABILIDADE SOCIOESPACIAL NAS UNIDADES DE DESENVOLVIMENTO HUMANO DE ÁREAS METROPOLITANAS BRASILEIRAS. Abril de 2020.
[5] https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/07/07/desigualdade-social-faz-com-que-o-recife-tenha-um-dos-maiores-indices-de-mortes-por-coronavirus-diz-estudo.ghtml. Julho de 2020.
[6] https://radiojornal.ne10.uol.com.br/noticia/2019/09/23/deficit-habitacional-no-recife-chega-a-71-mil-moradias-176663. Julho de 2020.
[7] O Estatuto da Cidade e a Habitat III : um balanço de quinze anos da política urbana no Brasil e a nova agenda urbana / organizador: Marco Aurélio Costa. – Brasília : Ipea, 2016. 361 p. : il., gráfs. color.
[8] BRCIDADES. A Pandemia que Escancarou Nossa Questão Urbana. Carta Capital, 08 de julho de 2020.