Por quem resistimos?

Valdenice José Raimundo[1]

Pensar as lutas e a resistência da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha é pertinente por duas razões: a primeira delas, porque é inegável a importância de dar visibilidade às lutas e às formas de resistência das mulheres negras. A segunda, que está vinculada a primeira e que nos desafia, é entender por que as mulheres negras precisam constantemente estar na luta.

Por que temos que combater a discriminação racial, lutar conta o racismo institucional, lutar para que a lei 10639/03 seja implementada, apontar a desatenção do Estado com a saúde da população negra, lutar contra o empobrecimento da população negra, contra o genocídio da nossa população jovem, denunciar o feminicídio das nossas mulheres…?

Temos de lutar! Resistir todos os dias! Pois o racismo vai se reordenando, multifacetando, reestruturando-se e conseguindo-se manter nas relações, potencializando opressões.

Foi no contexto de luta e resistência que foi estabelecido em 1992, no I Encontro de Mulheres Afro-latino-americanas e Caribenha, o dia 25 de julho como o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, cujo objetivo era reconhecer a luta e a resistência da mulher negra contra a opressão de gênero, o racismo e a exploração de classe.

No Brasil, essa data foi oficialmente reconhecida em 2014, com a lei nº 12.987, de 2 de junho de 2014, instituindo o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra. De acordo com Lelia Maria, do Grupo Kilombagem[2] (2015), apesar da história de Teresa de Benguela ser pouco conhecida, ela é um símbolo de liderança, força e luta pela liberdade no período colonial. Tereza viveu na região do Vale do Guaporé, localizada na primeira capital do Estado de Mato Grosso. Sua trajetória remonta ao século XVIII, quando Vila Bela da Santíssima Trindade era a primeira capital de Mato Grosso.

Conforme a autora acima mencionada, ficou conhecida, em seu tempo, como “Rainha”. Viveu nesta região do Vale do Guaporé. Após o assassinato de seu marido, José Piolho, por soldados, liderou o Quilombo de Quariterê, com mais de 100 pessoas, por mais de 20 anos. Enfrentou bravamente a Coroa Portuguesa, até meados da década de 1770, após ser capturada por soldados e morta. Tereza lutou contra a opressão, e hoje a nossa luta ainda guarda similaridades, nos lançando constantemente para a resistência.

As mulheres negras são 49,9 % da população brasileira, integrando o contingente negro que é de 51% da população. Contudo, a organização social capitalista segregadora ainda nos coloca entre aqueles que mais sofrem os impactos das desigualdades sociais e, consequentemente, do acesso aos direitos sociais.

Resistência histórica… Resistentes na história! Tereza de Benguela, Lélia Gonzalez, Carolina de Jesus, Sueli Carneiro, Maria Aparecida Bento, Jurema Werneck, Inaldete Pinheiro, Vera Baroni, Matilde Ribeiro, Luiza Bairro, Nilma Lino, as mulheres negras moradoras das favelas, as que estão nas universidades, as que trabalham nas empresas, as empregadas domésticas (em 2011, cerca de uma em cada cinco mulheres negras ocupadas no Brasil era empregada doméstica), as profissionais do sexo, as moradoras de rua, as mães de santo, as trabalhadoras rurais… São tantos exemplos de resistência.

O que temos em comum?

Tivemos que nos descobrir negras. Pois afirmar-se negro no Brasil é um ato político e requer descortinar a realidade do racismo.
Todas experimentaram, em níveis diferenciados, a perversidade do racismo. Fezinha de S. João do Meriti[3], vinculada à Crioula, disse que desde criança experimentou o racismo. Quando na Festa da Coroação de Nossa Senhora queria coroá-la e não podia, porque era preta: “menina preta não podia nada, nem anjo, nem virgem, nem a que coroava”.
Não estamos conformadas com a situação de inferioridade imposta pela sociedade racista e machista.
A resistência como determinação para a mudança.
A valorização do espaço coletivo de luta.
Resistimos…

Em pleno século 21, temos que refutar mitos que apresentam e reforçam realidades que não nos contemplam. Segundo Sueli Carneiro, no artigo[4]: Enegrecer o feminismo: A situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero exibe com maestria as razões para refutarmos tais mitos. Destacamos:

Mito da fragilidade – frágeis, nós? Como? Se durante séculos trabalhamos na condição de escravizadas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras de quitutes, prostitutas… Ela acrescenta: Mulheres que não entenderam nada, quando as feministas disseram: que as mulheres deveriam ganhar as ruas.
Rainha do lar, a musa idolatrada dos poetas? Não somos rainha de nada, somos antimusas da sociedade brasileira. Nosso modelo estético não dialoga com aquele imposto. Fazemos parte de um contingente para quais os anúncios de emprego destacam: “boa aparência”.
Luta, luta! A realidade não permite descanso. Precisamos: – Quebrar as correntes do padrão de beleza, nos manter no ensino superior, fortalecer a juventude para não cair nas artimanhas despolitizadoras das drogas e do crime, garantir espaço seguro de expressão das crenças e da sexualidade… 25 de julho não é uma data para apenas comemorar, é dia de definir caminhos para superação dessas situações.

E no espaço acadêmico? Como potencializar as demandas da população negra e, especificamente, das mulheres negras?

1- Desenvolver atividades culturais, cursos livres e de formação, dirigidos sobre a História da África e suas relações com o Brasil.[5]
2- Incentivar a criação de grupos de pesquisa sobre o tema das relações étnico-raciais.
3- Promover estudos e eventos que contribuam para o enfrentamento das discriminações negativas como o racismo, discriminação racial, xenofobia, homofobia, misoginia, intolerância correlata e outras discriminações de natureza étnica ou social.
4- Promover seminários para debates sobre as questões relativas à desigualdade/ igualdade étnica e racial no país.

Diante do exposto, fica evidente por quem resistimos na luta de todo dia. Resistimos:

– Pelas crianças negras que já nascem com perspectivas limitadas.
– Pelos/as jovens negros/as que são tratados cotidianamente como suspeitos.
– Pelos direitos reprodutivos das mulheres negras.
– Pela inserção dos/as jovens negros/as no ensino superior.
– Resistimos, resistimos e resistimos!

E no que diz respeito à resistência… Nossos passos vêm de longe.

Ubuntu! Sou o que sou pelo que nós somos!.

[1] Dra. em Serviço Social, Professora do curso de Serviço Social, Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas, membra do Conselho Gestor do Instituto Humanitas e Coordenadora do Espaço Criança Esperança de Jaboatão.

[2] Disponível em: http://kilombagem.org/o-que-e-25-de-julho/

[3] Depoimento retirado do livro: Mulheres Negras na Primeira Pessoa, publicado em 2012 pela Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras. Tendo como organizadoras: Jurema Werneck, Nilza Iraci e Simone Cru. Livro disponível na Internet narra o depoimento de 20 mulheres de diferentes organizações e de diversos estados.

[4] Disponível em: https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/#gs.FO2=_Pg

[5] Os pontos de um a quarto estão entre os objetivos do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da UNICAP.

1 Comentário

  1. A resistência é cultural,religiosa, política, ideológica,econômica…, são muitas as formas de resistir… A resistência de que fala a professora,mulher negra e ativista Valdenice José, é sempre uma pedagogia criativamente inculturada…,resistir é também uma forma de crer,de sonhar de anunciar a esperança…! Bendita seja Valdenice,benditas todas as “Valdenices;mulheres negras,que resistem e insistem na utopia de Outro Mundo Possível!!!

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