Enegrecer o Feminismo: A Situação da Mulher Negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero
Sueli Carneiro[1]
“São suficientemente conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a relação de coisificação dos negros em geral e das mulheres negras em particular. Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor. “
No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indígenas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas as construções de nossa identidade nacional, estruturando o decantado mito da democracia racial latino-americana, que no Brasil chegou até as últimas consequências. Essa violência sexual colonial é, também, o “cimento” de todas as hierarquias de gênero e raça presentes em nossas sociedades, configurando aquilo que Ângela Gilliam define como “a grande teoria do esperma em nossa formação nacional”, através da qual, segundo Gilliam: “O papel da mulher negra é negado na formação da cultura nacional; a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; e a violência sexual contra as mulheres negras foi convertida em um romance”.
O que poderia ser considerado como história ou reminiscências do período colonial permanece, entretanto, vivo no imaginário social e adquire novos contornos e funções em uma ordem social supostamente democrática, que mantém intactas as relações de gênero segundo a cor ou a raça instituídas no período da escravidão. As mulheres negras tiveram uma experiência histórica diferenciada que o discurso clássico sobre a opressão da mulher não tem reconhecido, assim como não tem dado conta da diferença qualitativa que o efeito da opressão sofrida teve e ainda tem na identidade feminina das mulheres negras.
Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras, prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados.
São suficientemente conhecidas as condições históricas nas Américas que construíram a relação de coisificação dos negros em geral e das mulheres negras em particular. Sabemos, também, que em todo esse contexto de conquista e dominação, a apropriação social das mulheres do grupo derrotado é um dos momentos emblemáticos de afirmação de superioridade do vencedor.
Hoje, empregadas domésticas de mulheres liberadas e dondocas, ou de mulatas tipo exportação.
Quando falamos em romper com o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas, de que mulheres estamos falando? As mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca. Quando falamos em garantir as mesmas oportunidades para homens e mulheres no mercado de trabalho, estamos garantindo emprego para que tipo de mulher? Fazemos parte de um contingente de mulheres para as quais os anúncios de emprego destacam a frase: “Exige-se boa aparência”.
Quando falamos que a mulher é um subproduto do homem, posto que foi feita da costela de Adão, de que mulher estamos falando? Fazemos parte de um contingente de mulheres originárias de uma cultura que não tem Adão. Originárias de uma cultura violada, folclorizada e marginalizada, tratada como coisa primitiva, coisa do diabo, esse também um alienígena para a nossa cultura. Fazemos parte de um contingente de mulheres ignoradas pelo sistema de saúde na sua especialidade, porque o mito da democracia racial presente em todas nós torna desnecessário o registro da cor dos pacientes nos formulários da rede pública, informação que seria indispensável para avaliarmos as condições de saúde das mulheres negras no Brasil, pois sabemos, por dados de outros países, que as mulheres brancas e negras apresentam diferenças significativas em termos de saúde.
Portanto, para nós se impõe uma perspectiva feminista na qual o gênero seja uma variável teórica, mas como afirmam Linda Alcoff e Elizabeth Potter, que não “pode ser separada de outros eixos de opressão” e que não “é possível em uma única análise. Se o feminismo deve liberar as mulheres, deve enfrentar virtualmente todas as formas de opressão”. A partir desse ponto de vista, é possível afirmar que um feminismo negro, construído no contexto de sociedades multirraciais, pluriculturais e racistas – como são as sociedades latino-americanas – tem como principal eixo articulador o racismo e seu impacto sobre as relações de gênero, uma vez que ele determina a própria hierarquia de gênero em nossas sociedades.
Em geral, a unidade na luta das mulheres em nossas sociedades não depende apenas da nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige, também, a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo. O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e anti-racista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira.
Esse novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar em si tanto as tradições de luta do movimento negro como a tradição de luta do movimento de mulheres, afirma essa nova identidade política decorrente da condição específica do ser mulher negra. O atual movimento de mulheres negras, ao trazer para a cena política as contradições resultantes da articulação das variáveis de raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos negros e de mulheres do país, enegrecendo de um lado, as reivindicações das mulheres, tornando-as assim mais representativas do conjunto das mulheres brasileiras, e, por outro lado, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do movimento negro.
Enegrecer o movimento feminista brasileiro tem significado, concretamente, demarcar e instituir na agenda do movimento de mulheres o peso que a questão racial tem na configuração, por exemplo, das políticas demográficas, na caracterização da questão da violência contra a mulher pela introdução do conceito de violência racial como aspecto determinante das formas de violência sofridas por metade da população feminina do país que não é branca; introduzir a discussão sobre as doenças étnicas/raciais ou as doenças com maior incidência sobre a população negra como questões fundamentais na formulação de políticas públicas na área de saúde; instituir a crítica aos mecanismos de seleção no mercado de trabalho como a “boa aparência”, que mantém as desigualdades e os privilégios entre as mulheres brancas e negras.
Tem-se, ainda, estudado e atuado politicamente sobre os aspectos éticos e eugênicos colocados pelos avanços das pesquisas nas áreas de biotecnologia, em particular da engenharia genética. Um exemplo concreto refere-se, por exemplo, às questões de saúde e de população. Se, historicamente, as práticas genocidas tais como a violência policial, o extermínio de crianças, a ausência de políticas sociais que assegurem o exercício dos direitos básicos de cidadania têm sido objetos prioritários da ação política dos movimentos negros, os problemas colocados hoje pelos temas de saúde e de população nos situam num quadro talvez ainda mais alarmante em relação aos processos de genocídio do povo negro no Brasil.
Portanto, esse novo contexto de redução populacional, fruto da esterilização maciça – aliada tanto à progressão da AIDS quanto do uso da droga entre a nossa população – e das novas biotecnologias, em particular a engenharia genética, com as possibilidades que ela oferece de práticas eugênicas, constitui novo e alarmante desafio contra o qual o conjunto do movimento negro precisa atuar.
A importância dessas questões para as populações consideradas descartáveis, como são os negros, e o crescente interesse dos organismos internacionais pelo controle do crescimento dessas populações, levou o movimento de mulheres negras a desenvolver uma perspectiva internacionalista de luta. Essa visão internacionalista está promovendo a diversificação das temáticas, com o desenvolvimento de novos acordos e associações e a ampliação da cooperação interétnica. Cresce ente as mulheres negras a consciência de que o processo de globalização, determinado pela ordem neoliberal que, entre outras coisas, acentua o processo de feminização da pobreza, coloca a necessidade de articulação e intervenção da sociedade civil a nível mundial. Essa nova consciência tem nos levado ao desenvolvimento de ações regionais no âmbito da América Latina, do Caribe, e com as mulheres negras dos países do primeiro mundo, além da participação crescente nos fóruns internacionais, nos quais governos e sociedade civil se defrontam e definem a inserção dos povos terceiro-mundistas no terceiro milênio.
Essa intervenção internacional, em especial nas conferências mundiais convocadas pela ONU a partir da década de 1990, tem nos permitido ampliar o debate sobre a questão racial a nível nacional e internacional e sensibilizar movimentos, governos e a ONU para a inclusão da perspectiva anti-racista e de respeito à diversidade em todos os seus temas. A partir dessa perspectiva, atuamos junto à Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994, em relação à qual as mulheres negras operaram a partir da idéia de que “em tempos de difusão do conceito de populações supérfluas, liberdade reprodutiva é essencial para as etnias discriminadas para barrar as políticas controladoras e racistas”.
Assim, estivemos em Viena, na Conferência de Direitos Humanos, da qual saiu o compromisso sugerido pelo governo brasileiro, de realização de uma conferência mundial sobre racismo e outra sobre imigração, para antes do ano 2000. Atuamos no processo de preparação da Conferência de Beijing, durante o qual foi realizado um conjunto de ações através das quais é possível medir o crescimento da temática racial no movimento de mulheres do Brasil e no mundo. Vale destacar que a Conferência de Viena assumiu que os direitos da mulher são direitos humanos, o que está consubstanciado na Declaração e no Programa de Ação de Viena, que dão grande destaque à questão da mulher e pregam a sua plena participação, em condições de igualdade, na vida política, civil, econômica, social e cultural nos níveis nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação sexual, considerando-as objetivos prioritários da comunidade internacional.
Se a Declaração de Viena avança na compreensão da universalidade dos direitos humanos das mulheres, para nós mulheres não brancas era fundamental uma referência explícita à violação dos direitos da mulher baseada na discriminação racial. Entendíamos que a Conferência de Beijing deveria fazer uma referência explícita à opressão sofrida por um contingente significativo de mulheres em função da origem étnica ou racial. Essas conferências mundiais se tornaram espaços importantes no processo de reorganização do mundo após a queda do muro de Berlim e constituem hoje fóruns de recomendações de políticas públicas para o mundo.
O movimento feminista internacional tem operado nesses fóruns como o lobby mais eficiente entre os segmentos discriminados do mundo. Isso explica o avanço da Conferência de Direitos Humanos de Viena em relação às questões da mulher, assim como os avanços registrados na Conferência do Cairo e na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), realizada no Rio de Janeiro em 1992. Nos esforços desenvolvidos pelas mulheres na Conferência de Beijing, um dos resultados foi que o Brasil, pela primeira vez na diplomacia internacional, obstruiu uma reunião do G-77, grupo dos países em desenvolvimento do qual faz parte, para discordar sobre a retirada do termo étnico-racial do Artigo 32 da declaração de Beijing, questão inegociável para as mulheres negras do Brasil e dos países do Norte. A firmeza da posição brasileira assegurou que a redação final do Artigo 32 afirmasse a necessidade de “intensificar esforços para garantir o desfrute, em condições de igualdade, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais a todas as mulheres e meninas que enfrentam múltiplas barreiras para seu desenvolvimento e seu avanço devido a fatores como raça, idade, origem étnica, cultura, religião…” O próximo passo será a monitoração desses acordos por parte de nossos governos.
Conclusões
A origem branca e ocidental do feminismo estabeleceu sua hegemonia na equação das diferenças de gênero e tem determinado que as mulheres não brancas e pobres, de todas as partes do mundo, lutem para integrar em seu ideário as especificidades raciais, étnicas, culturais, religiosas e de classe social. Até onde as mulheres brancas avançaram nessas questões? As alternativas de esquerda, de direita e de centro se constroem a partir desses paradigmas instituídos pelo feminismo que, segundo Lélia Gonzalez, apresentam dois tipos de dificuldades para as mulheres negras: por um lado, a inclinação eurocentrista do feminismo brasileiro constitui um eixo articulador a mais da democracia racial e do ideal de branqueamento, ao omitir o caráter central da questão da raça nas hierarquias de gênero e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem mediá-los na base da interação entre brancos e não brancos; por outro lado, revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar “toda uma história feita de resistência e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral (que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo)”. Nesse contexto, quais seriam os novos conteúdos que as mulheres negras poderiam aportar à cena política para além do “toque de cor” nas propostas de gênero? A feminista negra norte-americana Patricia Collins argumenta que o pensamento feminista negro seria “(…) um conjunto de experiências e idéias compartilhadas por mulheres afro-americanas, que oferece um ângulo particular de visão de si, da comunidade e da sociedade… que envolve interpretações teóricas da realidade das mulheres negras por aquelas que a vivem…” A partir dessa visão, Collins elege alguns “temas fundamentais que caracterizariam o ponto de vista feminista negro”. Entre eles, se destacam: o legado de uma história de luta, a natureza interconectada de raça, gênero e classe e o combate aos estereótipos ou “imagens de autoridade”.
Acompanhando o pensamento de Patricia Collins, Luiza Barros usa como paradigma a imagem da empregada doméstica como elemento de análise da condição de marginalização da mulher negra e, a partir dela, busca encontrar especificidades capazes de rearticular os pontos colocados pela feminista norte-americana. Conclui, então, que “essa marginalidade peculiar é o que estimula um ponto de vista especial da mulher negra, (permitindo) uma visão distinta das contradições nas ações e ideologia do grupo dominante”. “A grande tarefa é potencializá-la afirmativamente através da reflexão e da ação política”.
O poeta negro Aimé Cesaire disse que “as duas maneiras de perder-se são: por segregação, sendo enquadrado na particularidade, ou por diluição no universal”. A utopia que hoje perseguimos consiste em buscar um atalho entre uma negritude redutora da dimensão humana e a universalidade ocidental hegemônica que anula a diversidade. Ser negro sem ser somente negro, ser mulher sem ser somente mulher, ser mulher negra sem ser somente mulher negra. Alcançar a igualdade de direitos é converter-se em um ser humano pleno e cheio de possibilidades e oportunidades para além de sua condição de raça e de gênero. Esse é o sentido final dessa luta.
Acredito que nessa década, as mulheres negras brasileiras encontraram seu caminho de autodeterminação política, soltaram as suas vozes, brigaram por espaço e representação e se fizeram presentes em todos os espaços de importância para o avanço da questão da mulher brasileira hoje. Foi sua temática a que mais cresceu politicamente no movimento de mulheres do Brasil, integrando, espera-se que definitivamente, a questão racial no movimento de mulheres. O que impulsiona essa luta é a crença “na possibilidade de construção de um modelo civilizatório humano, fraterno e solidário, tendo como base os valores expressos pela luta anti- racista, feminista e ecológica, assumidos pelas mulheres negras de todos os continentes, pertencentes que somos à mesma comunidade de destinos”. Pela construção de uma sociedade multirracial e pluricultural, onde a diferença seja vivida como equivalência e não mais como inferioridade.
[1] Fundadora e coordenadora-executiva do Geledés – Instituto da Mulher Negra São Paulo SP.
O ensino superior e a presença indígena na universidade
José Tarisson Costa da Silva[1]
Pela terceira vez, na 69ª edição da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), a temática indígena entrou como pauta na atividade SBPC Afro e Indígena, cuja programação buscou tratar da invisibilidade da influência das línguas indígenas e africanas no português falado no Brasil.
Ainda que uma ação tímida, a proposta acena para um possível reconhecimento dos povos indígenas enquanto produtores de conhecimento e que há muito foram silenciados no espaço acadêmico das universidades. Não apenas circunscrito a essa invisibilidade dos saberes produzidos por eles, os indígenas ainda são minorias nos espaços de poder na academia, mesmo que as cotas étnico-raciais tenham gerado a entrada desses e de outros indivíduos que acionam outras sensibilidades e tencionam as estruturas de uma saber ocidental eurocêntrico.
Essa invisibilidade, na atualidade, não é produto apenas de uma sociedade que nega a existência indígena, mas está ligada à progressão do sistema educacional universitário, o qual, desde seu nascimento, esteve voltado para grupos privilegiados; além disso, a demora na implementação de políticas voltadas para os próprios índios em seus espaços de vivência contribuiu para a acentuação desse índice de invisibilidade.
O nascimento da universidade e o seu projeto elitista
A história de invisibilidade indígena e a negação da existência de sociodiversidades brasileiras perpassa o ensino superior, cuja função histórica inicial servia aos interesses da corte brasileira, instalada aqui em 1908, com o objetivo de formar mão de obra administrativa qualificada para gerir a máquina estatal, como afirma Sampaio (1991, p. 2): “No Brasil, a criação de instituições de ensino superior, seguindo esse modelo, buscava formar quadros profissionais para a administração dos negócios do Estado e para a descoberta de novas riquezas […]”.
Ademais, a proposta de uma universidade brasileira que esteve voltada para uma elite e que servia à tecnização do Estado vigorou até o final do século XIX e início XX, período no qual a efervescência política aumentou e novas reformas nas propostas educacionais universitárias vão ser vislumbradas (SAMPAIO, 1991, p. 12).
Como destaca Coelho (2009) e Vasconcelos (2009), a estrutura colonial dominou por muito tempo, devido a falta de interesse em aplicar o ensino superior nacional. A criação de universidades no Brasil revela considerável resistência tanto por parte de Portugal, como reflexo de sua política de colonização, como por parte de alguns brasileiros que não viam justificativa para a criação de uma instituição desse gênero no país, considerando muito mais adequado que as elites da época procurassem a Europa para fazer seus estudos superiores.
Nesse sentido, a evolução tardia do ensino superior no Brasil esteve atrelada a interesses de grupos dominantes, existentes ainda hoje nesses espaços, e que, quando fundadas, se sobresaia um ensino vinculado a ideologias liberais, conservadoras e positivistas (COELHO e VASCONCELOS, 2009); com isso, grupos menos favorecidos não viam espaços para se inserir nos espaços universitários.
A inserção do indígena na política educacional
As primeiras propostas estatais de educação indígena, mesmo que de maneira escanteada, vão surgir com a criação do SPI (Serviço de Proteção ao Índio), em 1910. Essas políticas estavam marcadas pela lógica colonizadora de submissão tutelar do indígena (BERGAMASCHI e KURROSCHI, 2013) e também como produto de uma assimilação da identidade indígena em favor de uma consciência cívica de identidade nacional: tal proposta, assim como no período de educação jesuítica, visava sobretudo transformar o indígena numa massa amorfa mestiça.
De lá pra cá, consideráveis ganhos foram importantes para modificar a política de ensino das escolas regulares e a inserção da temática das populações autóctones nos currículos (Art. 26, § 4 da LDB/1996 e Lei 11.645/2008) e também atender à necessidade dos povos, com a educação diferenciada (Art. 78 e 79 da LDB).
Na esteira das mudanças desencadeadas pelo reconhecimento do indígena proposto pela Carta Magna, as ações indigenistas terminaram gerando pressão para a instauração da Lei 11.645/2008, que trata da obrigatoriedade do ensino da temática afro-brasileira e indígena nos currículos dos ensinos fundamental e médio (mas não se restringe a esses), o que atende ao reconhecimento de outras expressões que viveram e vivem concomitantemente no Brasil. A lei de cotas no ensino superior (Lei 12.711/2012) também apontou para o reconhecimento dos povos indígenas.
Todos esses mecanismos jurídicos demonstram considerável modificação no que diz respeito à educação das populações indígenas do Brasil. Essas políticas, aos poucos, geram uma modificação na realidade de muitos desses povos e fez com que, hoje, de acordo com o censo da educação superior de 2015 do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira) 32 mil índios estivessem cursando o nível superior em universidades públicas e privadas.
A presença indígena na universidade é uma realidade; o espaços que eles ocupam visa não somente inserir populações negadas aos seus direitos básicos de educação como também tensionar esses espaços com outras formas de pensar e entender o mundo, inserindo novas epistemologias; visa também abrir brechas para a modificação de um ensino de cursos tradicionais que sempre esteve voltado para uma elite, fazendo com que a fronteira de aplicação da Lei 11.645/2008 se amplie; favorece, assim, uma ampliação de conhecimentos que dialoguem não só com as suas vivências como também sirvam para potencializar atividades já desenvolvidas em suas terras, gerando ganhos em ambos os lados.
Referência bibliográfica
BRASIL. Lei n° 11.645, de 10 de Março de 2008. Diário Oficial da União, Atos do Poder Legislativo, Brasília, DF, 11 de mar. 2008. Seção 1, p. 1. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2008/lei-11645-10-marco-2008-572787-publicacaooriginal-96087-pl.html>.
BRASIL. Lei n° 12.711 de 29 de Agosto de 2012. Diário Oficial da União, Atos do Poder Executivo, Brasília, DF, 29 ago. 2012. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm>.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal. Disponível em: < http://www.senado.gov.br/atividade/const/con1988/con1988_06.06.2017/CON1988.pdf>. Acesso em 24 de Agosto de 2017.
BRASIL. Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional. Brasília, Ministério da Educação, 1996.
COELHO, SINTIA SAID; VASCONCELOS, MARIA CELI CHAVES. A criação das instituições de ensino superior no Brasil: o desafio tardio na América Latina. In: Anais IX Colóquio Internacional sobre Gestão Universitária na América do Sul. Florianópolis, 2011.
SAMPAIO, H. Evolução do ensino superior brasileiro, 1808-1990. São Paulo: Nupes, 2008.
[1] Índio Nawa/AC. Granduando em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro de Artes e Comunicação (CAC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atuou na produção dos programas sobre a temática indígena na Rádio Universitária (99,9 FM) do Núcleo de TV e Rádio Universitária da UFPE. Atualmente, desenvolve trabalhos no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena (NEABI) da Universidade Católica de Pernambuco.
Estereótipos e a folclorização do indígena no imaginário brasileiro
José Tarisson Costa da Silva[1]
Desde o primeiro contato com os portugueses na costa brasileira, em 1500, o indígena passou a ser representado em imagens na Europa para concretizar o fascínio secreto da alteridade – tornar conhecível o outro considerado selvagem, incivilizado e exótico. No entanto, ao mesmo tempo em que o consumo de imagens do chamado primitivo se tornou recorrente, os discursos a esse respeito ultrapassaram séculos de contato entre índios e não índios, gerando estereótipos que condenam ou folclorizam o indígena e suas expressões socioculturais.
A veiculação dessas representações, isto é, a reprodução de imagens que produzem significados e que geram, nesse sentido, sentimentos baseados no senso comum nos leitores que as consomem (HALL, 2016, p. 140) mantêm uma lógica dominante de estigmatização e negação de direitos das populações autóctones saqueadas pelos ditos “civilizados”. É a partir disso que questiona-se, no intuito de saber as consequências desses regimes de representações para a vida dos povos indígenas: em qual momento histórico a veiculação de imagens indígenas surgiu? Na atualidade, o aparecimento dessas imagens tem alguma relação com aquelas veiculadas no passado? Quais os interesses por trás dessas imagens ou a quem interessa a folclorização e estereótipos do indígena e a permanência de imagens do passado?
Rebater o discurso apresentado pelos grupos dominantes – existentes tanto no âmbito do Estado, como no Congresso Nacional com a bancada do agrobusiness e religiosa, quanto pelos grandes grupos do capital, oriundos da esfera privada, mas que mantém relações estreitas com o Estado – é um meio pelo qual se busca garantir o reconhecimento e o respeito aos povos indígenas que há mais de cinco séculos resignificam suas expressões socioculturais afirmando suas identidades indígenas e que, mobilizados, continuam lutando pelas reivindicações de seus direitos constitucionais, ainda que reiteradas vezes ocorram as violências simbólicas e físicas por parte daqueles que deveriam resguardá-los, como versa a Constituição Federal. (Art. 231 e 232 CF/1988).
- Os discursos do passado e do presente se cruzam
Os primeiros discursos sobre os indígenas surgiram logo após o relato de Pero Vaz de Caminha[2] na irônica descoberta “por acaso” e “acidental” do Brasil, que, segundo Oliveira (2016, p. 46-47), abriu brechas para o exotismo: o novo mundo que se encontrara fora da Europa! Ainda no período colonial, por meio de crônicas, relatos de viagens, cartas e tratados, as imagens e narrativas sobre os povos primeiros foram reiteradas, como no precursor livro Duas viagens ao Brasil (1557), do alemão Hans Staden, considerado a primeira obra escrita sobre o Brasil[3] e cuja narrativa gerou grande repercussão na Europa pôr o autor relatar a suposta história que viveu em meio a um povo “canibal”, “bárbaro”, “selvagem” e “incivilizado”: os Tupinambá.
Cabe destacar que muitas dessas narrativas e imagens bastante conhecidas no século XVI são, em sua grande maioria, resultados de releituras de documentos e relatos coloniais: alguém que fazia o relato, outra que escrevia, um que traduzia e, por fim, alguém que desenhava. As imagens e narrativas sobre a suposta selvageria, incivilidade e barbárie eram recorrentes nos trabalhos de Theodore de Bry (1592), belga cuja principal obra retratou o ritual antropofágico Tupinambá baseado na obra de Staden; Johannes Stradanus, por meio de América (1580); Albert Ekhout, na obra Mulher Tapuia (1641); dentre tantas outras daquele período.
No século XIX, na busca pela construção de uma identidade nacional, a temática indígena e o significado inerente do período anterior foi retomada, como evidenciou Edson Silva[4]
Também os diversos grupos étnicos são chamados de tribos e, assim, pensados como primitivos, atrasados, ou ainda imortalizados pela literatura romântica do século XIX, como nos livros de José de Alencar, nos quais são apresentados índios belos e ingênuos ou valentes guerreiros e ameaçadores canibais, ou seja, bárbaros, bons selvagens ou heróis.
Ao longo dos anos essas imagens e discursos foram reproduzidos nos livros didáticos sem um amplo debate e olhar crítico (FERREIRA, 2016 apud SILVA e SILVA, 2016, p. 113). Consequentemente, essas imagens foram cristalizadas nos imaginários dos leitores, favorecendo uma estreita vinculação entre os relatos dos cronistas com as imagens de agora acionadas, que, muitas vezes, encontram espaço e grande acolhimento em outros meios de produção de significados, como por exemplo, a mídia.
Na atualidade, a escola – enquanto local de formação humanística, ética, social e política – e os meios de comunicação de massa – com sua função educadora e socializadora – seriam os atores primordiais para desmistificação e superação de equívocos, preconceitos e desinformações. Entretanto, quando a escola, por meio de práticas de educação, folcloriza o indígena e o reduz a atributos inerentes à sua forma de vida (usar cocar, pintar-se, etc), ela reproduz ou favorece estereótipos e características essencializadoras, deixando de agir como meio potencializador de mudança em uma sociedade pautada na negação dos direitos dos povos indígenas.
Sendo o Brasil, pois, um país constituído por várias vivências e expressões socioculturais, isto é, um país formado a partir de sociodiversidades, quando os meios de comunicação, principais responsáveis pela ligação entre o acontecimento no mundo e as imagens que as pessoas têm na cabeça acerca dos acontecimentos (TRAQUINA, 2005, p.15), deixam de representar criticamente essas experiências socioculturais, eles negam as sociodiversidades e mantem, assim, uma lógica de dominação sociopolítica de uma cultura sobre a outra.
Observa-se que o repertório da representação sobre o indígena não mudou, permanece o mesmo e vinculado a discursos do passado. As vozes presentes nos textos e imagens produzidos sobre o indígena projetam o invasor europeu e, consequentemente, seu discurso para o presente; permanece, ainda, no imaginário brasileiro a ideia do índio exótico, nu e pintado, bárbaro e incivilizado, que usa cocar e vive na selva, desconhecendo-se ou omitindo situações de vivências indígenas em contextos urbanos. Passados mais de 500 anos de uma colonização pautada pela escravidão indígena, perseguição às crenças e expressões socioculturais, aniquilamento das línguas e miscigenação forçada, são veiculadas imagens que não correspondem ao modo de vida de grande parte dos mais de 300 povos indígenas brasileiros. No intuito de desvincular essas imagens e discursos retrógrados que não correspondem a essas populações, torna-se urgente a necessidade da leitura crítica desses discursos tanto no âmbito da escola, quanto nos produtos culturais jornalísticos (notícias) veiculados pelos meios de comunicação de massa. Se a escola não faz a sua parte, a mídia, como meio socializador e produtor de significados, poderia fazer?
Referências bibliográficas
HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Apicuri, 2016.
OLIVEIRA, João Pacheco de. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.
SILVA, Edson; SILVA, Maria da Penha da. A temática indígena na sala de aula: reflexões para o ensino a partir da Lei 11.645/2008. 2ª ed. Recife, Edufpe, 2016.
TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. A tribo jornalística: uma comunidade interpretativa transnacional. Florianópolis, : Insular, 2005.
[1] Índio Nawa/AC. Granduando em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro de Artes e Comunicação (CAC) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atuou na produção dos programas sobre a temática indígena na Rádio Universitária (99,9 FM) do Núcleo de TV e Rádio Universitária da UFPE. Atualmente, desenvolve trabalhos no Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígena (NEABI) da Universidade Católica de Pernambuco.
[2]CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel. Dominus: São Paulo, 1963. Disponível em: <http://www.culturabrasil.org/zip/carta.pdf>. Acesso em: 18 de Julho de 2017.
[3]REVISTA CIÊNCIA HOJE. Nus, ferozes e canibais. Disponível em: <http://www.cienciahoje.org.br/revista/materia/id/546/n/nus,_ferozes_e_canibais>. Acesso em: 17 de Julho de 2017.
[4]SILVA, Edson. Dia do Índio: a folclorização da temática indígena na escola. Construir notícias, ed. 72.Disponível em: <http://www.construirnoticias.com.br/dia-do-indio-a-folclorizacao-da-tematica-indigena-na-escola/>. Acesso em: 18 de Julho de 2017.