Em certo sentido é impossível pensar o mundo e a vida moderna sem falar do cinema. Algumas pessoas preferem falar dele como arte, outras como indústria, mas é na interseção entre essas duas dimensões que é possível entender o quanto o cinema traduz e ao mesmo tempo produz o mundo e o ser moderno. No clássico “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, escrito em 1936, Walter Benjamin vai apontar o cinema como a arte que se constitui e só é possível existir em função da sua reprodutibilidade. Se por um lado a difusão massiva é obrigatória para arcar com os custos de produção, por outro torna o filme “uma criação da coletividade” viabilizando o acesso a obras artísticas a pessoas comuns.

Para Benjamin, no momento em que a autenticidade (ou “a aura”) deixa de ser o critério definidor da criação artística, “toda a função social da arte se transforma” e se torna política. Embora critique os “filmes grotescos” da indústria cinematográfica dos Estados Unidos, em particular da Disney, e os riscos de manipulação das massas, sobretudo, por regimes autoritários como o nazismo, o pensador alemão exalta o aparato técnico do cinema enfatizando o quanto amplia nossa capacidade de percepção e nos possibilita representar o mundo. Ao falar dos recursos da câmara – as diferentes dimensões dos planos, acelerações, interrupções, isolamentos, ampliações etc. – vai dizer que “ela nos abre, pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional”.

Ou seja, Benjamin chama a atenção para o potencial libertador do cinema. Em seu entendimento o filme serve para o ser humano moderno exercitar novas percepções e reações exigidas por uma vida cotidiana cada vez mais atravessada pelas tecnologias. Fazer do cinema “objeto das inervações humanas” é a tarefa histórica dos tempos modernos. Sua realização implica que o filme possa gerar efeitos de choque no espectador e este mantenha uma “atenção aguda” para intercepta-los. É nos filmes mais progressistas, como os do personagem Carlitos de Charles Chaplin que Benjamin irá encontrar exemplos de como o cinema é capaz de provocar mudanças perceptivas.

É inegável o papel sociocultural do cinema e da indústria cinematográfica democratizando o acesso à cultura, ao lazer, e contribuindo de maneira decisiva para a construção da unidade nacional de muitos países ao fazer circular valores e todo um conjunto de símbolos comuns quando ainda não havia televisão nem internet. Claro, a indústria cinematográfica, sob o domínio estadunidense desde a segunda década do século XX, também padronizou e padroniza os gostos e sufocou e ainda sufoca a produção independente nacional em todo o mundo. Mas sempre houve e haverá resistência, experiências que procuram fazer do cinema o “objeto das inervações humanas” que fala Benjamin, estimulando novas percepções e reações contra hegemônicas.  

Uma das mudanças profundas que o cinema operou foi em nossa percepção da cidade. E quando falo em cinema não estou me referindo apenas ao filme. Evidente que há inúmeros filmes em que a cidade – seus espaços urbanos, do centro às periferias – aparece como cenário onde as histórias ficcionais ou documentais acontecem. Há casos em que a própria cidade é personagem do filme, como em Duas ou Três Coisas que Eu Sei Sobre Ela (1967) de Jean-Luc Godard, uma reflexão sobre a Paris dos anos 1960. Mas eu falo também das tradicionais salas de exibição, ou, como alguns preferem chamar, cinemas de rua, espaços criados e ambientados para proporcionar uma experiência específica de audiência fílmica que compõem a geografia da cidade.

Desde criança frequento esses espaços e percebo o quanto eles afetam a minha percepção da cidade do Recife, onde nasci e moro. Minha infância se deu na década de 1970. Naquela época ainda existiam as salas de bairro, porém, minhas irmãs mais velhas preferiam me levar para as do centro da cidade. Eram de fato mais organizadas, mais confortáveis e mais seguras para as famílias, como diziam minhas irmãs. E havia também o charme de circular pelo intenso comércio do centro para ver as vitrines das lojas nas ruas Imperatriz, Nova, Palma, entre outras. Saíamos de casa no início da tarde, passeávamos pelo centro e depois assistíamos uma sessão nas salas imensas de 800, 900, mais de mil lugares. Podia ser no Trianon, no Art Palácio, no Moderno ou no São Luiz, dependia do filme em cartaz. Após a sessão era quase certo tomar um sorvete na tradicional FriSabor da Boa Vista. E seguíamos a pé, sem medo de assalto, comentando sobre o filme e apreciando a região central da cidade, naquela época, bem cuidada.

Na juventude, nos anos 1980, incorporei novas salas ao meu circuito cinematográfico pelo centro: o Veneza, o Astor, o Ritz, o Cine AIP, o Cine Teatro do Parque. Sozinho ou na companhia de amigos e amigas era sempre uma experiência aquém e além do filme, um momento de usufruir a cidade e seus espaços. Atravessar o Parque Treze de Maio, passar no Beco da Fome, parar na Livro 7, na Livraria Síntese ou na loja de discos Allegro Cantante era quase obrigatório. Mas os tempos já eram outros. Pouco a pouco o centro foi sendo abandonado pelo poder público, a violência cresceu e afugentou os consumidores de classe média das ruas atingindo de maneira dura o comércio. As salas de cinema, uma a uma, foram fechando as portas e seus prédios transformados em lojas de eletrodomésticos, supermercados ou templos evangélicos.

É nessa época também que surgem os shoppings como um ambiente comercial múltiplo, seguro, confortável e com um novo conceito de fruir do cinema: o multiplex. Com as suas salas pequenas de 100, 200 e poucos lugares e seus combos de pipoca com refrigerante, o multiplex se configura como um território neutro, impessoal, sem relação direta com o espaço urbano, proporcionando uma experiência basicamente comercial. No ambiente do shopping é impossível, por exemplo, experienciar a passagem do tempo e a transformação da paisagem da cidade. Nos cinemas de rua sempre dava preferência às sessões do final da tarde porque entrava com a luz do dia, imergia no ambiente escuro da sala para vivenciar intensamente o filme e, ao sair, já na calçada a visão noturna da cidade me parecia mágica, conectando a tela e a rua, o cinema e a vida real.    

Lembro bem que o luxuoso e tradicional cinema São Luiz – inaugurado em 1952 às margens do Rio Capibaribe, na rua da Aurora, com seus espaços amplos, arquitetura eclética e seus encantadores vitrais luminosos, acesos antes do início de cada sessão – resistiu como pode até fechar suas portas em 2007. Felizmente, por pressão da sociedade foi tombado e adquirido pelo governo de Pernambuco em 2008. Voltou a funcionar atraindo um público fiel e retomando o saudável convívio do cinema com o espaço urbano da cidade. No entanto, desde maio do ano passado a sala está fechada para reformas, sem previsão de retomada. Mais uma vez cinéfilos e trabalhadores da cultura estão mobilizados e alertas com eventos e ações concretas para cobrar do novo governo o compromisso de manter o espaço vivo, como o que irá ocorrer neste sábado 10 de junho, “Vamos abraçar o Cine São Luiz!”. A partir das 15h haverá shows, roda de poesia, mostra de filmes, troca de livros e muito mais. Todas, todos e todes estão convidados. A luta continua. Viva o cinema! Curta a cidade!

Por Cláudio Bezerra