Uma pesquisa desenvolvida por professores da Escola de Comunicação da Unicap mapeou inciativas de inclusão digital que estão fazendo a diferença em comunidades da Região Metropolitana do Recife. Empoderamento cidadão, ancestralidade e protagonismo feminino são alguns dos impactos observados pelos pesquisadores. O estudo foi destaque no Programa Espaço Pernambuco Tec PE Inclusão Digital, exibido pela TV Globo Recife.
Carla Teixeira e Lula Pinto começaram o estudo no ano de 2019. Num primeiro levantamento, eles identificaram 30 iniciativas de inclusão digital em várias comunidades periféricas, a maior parte delas sem apoio do poder público. A pandemia interrompeu as atividades presenciais da pesquisa, que continuou sendo feita por meio do acompanhamento das plataformas digitais dos projetos. Ano passado o trabalho foi retomado nas comunidades e eles verificaram que 21 ações seguiram em atividade.
Apesar das dificuldades de acesso a computadores e à Internet, as ações surpreenderam os pesquisadores. “O trabalho é muito consistente, muito forte, impactante. Eu penso que existe muito espaço para a evolução. Elas precisam de políticas públicas que sejam desenvolvidas pelas administrações municipais e federais, por um amplo leque de organizações privadas também, ou organizações sociais, que são polos de desenvolvimento tecnológico aqui, atuando nas suas localidades, nesses territórios”, destacou Lula Pinto.
Já a pesquisadora Carla Texeira chamou a atenção para a lógica de rede usada pelas comunidades. “O que mais me surpreendeu foi a capacidade de articulação. A gente já esperava que iria encontrar conhecimento, mas percebemos que a atuação era feita de forma horizontalizada, como uma rede de afeto e de ‘aquilombamento’, de colaboração”, frisou Carla.
Uma dessas iniciativas funciona no Terreiro da Umbigada Ilê Axé Oxum Karê, no bairro de Guadalupe, em Olinda, onde são desenvolvidos games roteirizados com a mitologia afro-brasileira. É o Centro Cultural Coco da Umbigada.
“Tecnologia é conhecimento e conhecimento não pode ser propriedade de uma casta, de uma classe. A gente precisa garantir que as periferias tenham acesso à tecnologia, às mulheres principalmente, que são excluídas”, disse a líder da iniciativa, a Yalorixá e patrimônio vivo de Pernambuco, Mãe Beth de Oxum, em um trecho do programa. A próxima etapa da pesquisa será investigar o protagonismo das mulheres pretas em quatro dessas iniciativas, entre eles o próprio Centro Cultural Coco da Umbigada.
O Boletim Unicap conversou com os dois pesquisadores. Confira os principais trechos da entrevista:
Boletim Unicap – Qual foi a motivação ou insight que levou vocês a essa investigação?
Carla Teixeira – A pesquisa teve início após um convite de Mãe Beth de Oxum para conhecer o Labcoco e o Contos de Ifá, lá em Guadalupe, Olinda. Fomos eu, Lula e outros pesquisadores da Unicap e da UFPE. A partir desse primeiro contato, ainda em 2018, surgiu a ideia da pesquisa. Lula na vertente das metodologias de ensino e aprendizagem afro-centradas. Eu, na perspectiva do pertencimento e identidade, a partir das narrativas criadas e dos artefatos digitais produzidos (sites, redes sociais, vídeos, jogos).
Lula Pinto – A motivação ou o insight para a pesquisa foi também a percepção de que existe muita inovação sendo feita na periferia fora dos grandes centros. E a pesquisa foi conduzida no âmbito também do Mestrado em Indústrias Criativas. E aí a gente procurou contemplar a existência desse circuito de criatividade, inovação e disrupção com metodologias de aprendizagem e ações de comunicação nas periferias.
B.U – O que essas iniciativas de inclusão digital têm em comum?
Carla Teixeira – A luta por direitos, o uso da comunicação e da tecnologia para atuação na comunidade. As 21 que permaneceram ativas, principalmente nas redes sociais e sites, se mobilizaram durante a pandemia para garantir a sobrevivência dos moradores e moradoras. Para denunciar o descaso, a falta de políticas públicas. Partilham do uso da comunicação comunitária e da mobilização por meio das redes sociais, do rádio e outros instrumentos de comunicação digital.
Lula Pinto – A gente também identificou que tem traços de cultura negra nessas formas de organização que faz com que elas tenham algo em comum, matrizes comuns. Uma dessas matrizes é justamente o eixo de ‘quilombismo’, uma forma de auto-organização comunitária que procura a sobrevivência em vários aspectos. E um outro eixo também é a articulação de religiões de matrizes africanas, então são coisas que atravessam a maior parte dessas organizações.
B.U – Qual a ligação desse trabalho de pesquisa com o ensino e a extensão da Universidade? Alunos contribuíram de alguma forma com esse estudo?
Carla Teixeira – Desde 2019 a pesquisa faz parte do Programa de Iniciação Científica da Unicap – Pibic. Ao longo destes quase quatro anos nós tivemos alunas e alunos da graduação, acredito que quase 20 no total, a maioria negros e negras, que se identificaram com o direcionamento em relação às comunidades periféricas, comunicação e inovação.
B.U – Essa amostragem de 21 iniciativas tem conexão entre si?
Carla Teixeira – Tem sim. A luta por direitos, as lideranças na comunidade, o protagonismo feminino negro em muitos casos, o ‘quilombismo’, o uso de tecnologia e da comunicação. A perspectiva de trabalharem como coletivo em suas comunidades e entre si, como uma rede. Eles atuam contra a violência, o racismo, as desigualdades sociais, a ausência de políticas públicas, entre outras pautas. No Coletivo Sargento Perifa, por exemplo, são vários projetos coordenados por pessoas do Córrego do Sargento (bairro da Linha do Tiro, Zona Norte do Recife). Porque existe o entendimento de que eles não podem dar conta de tudo sozinhos. São ações em diversas áreas, como esporte, educação, cultura, nutrição. O Perifa surgiu na pandemia e uma de suas primeiras atividades foi realizar um censo na comunidade, distribuindo máscaras e orientando sobre a prevenção e, também sobre identidades.
Lula Pinto – … complementando Carla, eu diria que essa pesquisa embasa a gente no acompanhamento e na orientação de estudantes com mestrado em Indústrias Criativas que tem algum tipo de pesquisa com aderência ao tema.
B.U – Essas iniciativas têm algum apoio do poder público?
Carla Teixeira – Algumas iniciativas concorrem a editais como a Lei Paulo Gustavo, Lei Aldir Blanc e são beneficiadas por eles. Mas não existe uma parceria 50/50 com o poder público não.
B.U – A próxima etapa da pesquisa é focar no protagonismo feminino. Temos algum dado ou hipótese que possamos adiantar?
Carla Teixeira – A partir do mapeamento das iniciativas e das conversas que pudemos realizar, há muitas mulheres liderando em seus territórios. Estabelecemos, nesta segunda etapa, a observação do protagonismo feminino a partir do conceito de interseccionalidade – que observa os marcadores de gênero, classe e raça, entre outros. A interseccionalidade permite observar os marcadores de opressão atuando de forma conjunta, sem sobreposição de um sobre o outro. Nesta etapa da pesquisa, que tem duração de quatro anos e começou agora em 2023, temos quatro coletivos/grupos: Associação Mulheres do Passarinho, Centro Cultural Coco da Umbigada, o Fruto de Favela e o Coletivo Sargento Perifa.
Lula Pinto – Uma deriva dessa pesquisa foi também focar nas influências e na leitura feita a partir de matrizes africanas, especificamente das epistemologias Nagô sobre o ecossistema de tecnologia da informação atual. Então foi um insight que surgiu durante a pesquisa e acabou gerando uma outra etapa, uma outra série de investigações que a gente está fazendo. Nessa etapa, as referências principais dizem respeito aos personagens conceituais formados pelos Orixás e outras entidades do panteão Iorubano.
B.U – Pelos que vocês observaram, quais são os impactos de projetos como esses na comunidade?
Carla Teixeira – No Perifa, por exemplo, existe um aspecto de combate ao racismo muito forte. E desse pertencimento, tanto que as pessoas de lá tem um gentílico e se autodenominam sargentinos. No Labcoco, a produção do jogo Contos de Ifã leva aos jovens a possibilidade de se apropriar e usar a tecnologia para o combate à intolerância religiosa, a expansão do conhecimento sobre as religiões de matriz afro-brasileira, do uso do panteão africano de orixás, na valorização do que eles são. No Fruto de Favela a gente percebeu a busca por desmistificar o território como um local de violência e criminalidade. Vemos que as lideranças são jovens e estão no desenvolvimento do Hub Periférico, para abarcar outros projetos que envolvam tecnologia. Tem esse sentido de pertencimento e de quilombismo.
Lula Pinto – Os impactos podem ser sentidos de várias formas. Uma dessas formas, Carla já até mencionou aí, foi durante a pandemia. São redes que já existem há um tempo, são organizações que já trabalham há um tempo, com várias frentes, com várias ações. E aí, durante a pandemia, esse pessoal se organizou para coletar medicamento, material de limpeza, mantimentos, e isso foi muito importante, assim, para garantir a vida de várias pessoas. São impactos que, em geral, buscam dar sustentação ou então remediar alguma situação mais precária, sabe? Os impactos têm a ver também com formação desses alunos. O caso exemplar é o de Mãe Beth, eles formam lá pessoas com habilidades para fazer jogos, para fazer games digitais. Os impactos têm a ver também com a autopercepção, isso tem a ver com identidade, com um reconhecimento da sua territorialidade, tem a ver com melhora na performance escolar, tem um conjunto de melhorias que tem a ver com o coletivo, com a comunidade onde está acontecendo, e tem a ver também com a individualidade de cada pessoa que passa por um desses laboratórios periféricos.
Por Daniel França via site da Unicap