Por Alexandre Figueirôa

Nos últimos dois anos estava indo pouco ao meu sítio na Ilha de Itamaracá.  Às vezes, passava até dois meses sem aparecer. Com a pandemia, porém, não hesitei, peguei minhas coisas e fui me esconder do mundo por lá. Nos primeiros dias, após minha chegada, percebi que a casa, por estar quase sempre fechada, tornara-se moradia de pequenos animais selvagens. Entre eles, a aranha Gertrudes e a cobra Suzy. 

Descobri Gertrudes, uma caranguejeira do tamanho da palma da minha mão, logo na primeira noite. Ao acender a luz do meu quarto, ela cruzou o teto, e se instalou num canto próximo da parede e lá ficou estática, acredito que olhando para mim para ver o que eu iria fazer. Como não tenho medo de aranhas, deixei ela quieta por lá e iniciamos uma convivência amistosa. Na ausência de humanos em carne e osso (conversas por telas não suprem minha carência por relacionamentos) passei a trocar confidências com Gertrudes.  Se ela mexesse as patinhas era sinal de que estava me entendendo e isso era o suficiente. Dias depois, no entanto, Gertrudes desapareceu. Não sei se encheu o saco de minha conversa ou arranjou um companheiro da sua espécie e me abandonou. Fiquei triste, estava curtindo a nossa amizade.

Já com Suzy, o relacionamento foi mais tenso. Afinal, cobras são cobras. Nosso encontro súbito, como acontece sempre quando nos deparamos com ofídios, me deu um grande susto. Foi no início da manhã, uns três dias depois da partida de Gertrudes. Desde o desaparecimento da aranha, ao acordar eu ia no terracinho do lado do meu quarto para ver se ela estava no cantinho de parede onde a vi pela primeira vez. Todavia, daquela vez, ao virar meu rosto para o corrimão da escada que leva ao andar térreo vi uma espécie de cipó nele enroscado. Coloquei os óculos, me aproximei e vi o cipó se mexendo e na extremidade dele uma cabecinha levantada olhando para mim, de boca aberta e aquela linguinha típica das cobras balançando em minha direção. Dei um gritinho pintoso. “Suzy! O que é isso?”, disse de forma enérgica. Não me perguntem a razão de batizá-la como Suzy assim de supetão. Achei ela com cara de Suzy. Eu queria descer a escada e ela não deixava. Eu dava um passo para me aproximar da escada e Suzy começava a emitir uma espécie de som rascante como se dissesse “se vier eu mordo”. Procurei me acalmar e comecei a puxar conversa com ela. Expliquei que eu ia morar na casa outra vez, que ela podia ficar por ali, mas de preferência no quintal. 

Diferente de Gertrudes, Suzy era teimosa. Mas quando ela viu que eu não queria confusão, ela escorregou pelo corrimão, alcançou os combogós da varanda e foi para o quintal. Retomei minha vida normal, mas todos os dias lembrava de Suzy, porque eu queria me explicar melhor. Eu tinha consciência que eu era o invasor do seu território ao construir uma casa naquele terreno, mas queria dizer para ela que a gente poderia conviver numa boa. E não é que Suzy reapareceu. Dessa vez foi na porta de entrada. Ela sempre gosta de atrapalhar minha passagem, ela sabe que eu tenho simpatias por sua espécie, mas é aquele negócio, cobra e gente é ela lá e a gente cá, e a recíproca deve ser verdadeira. Bom, resumindo a história, Suzy ficou de novo fazendo aquele barulhinho de ameaça e bastava eu dar um passo que ela armava o bote. Outra vez lhe expliquei da necessidade de definirmos nossos territórios. Ela então desdeu da porta, ganhou o terraço e desapareceu no meio das plantas. Deve estar por lá até hoje, porém nunca mais a vi.

Depois dessas convivências, na solidão da pandemia, decidi me contentar em ficar de chamego apenas com os animais domesticados. Chega de relacionamentos exóticos. Voltei então a dar mais atenção aos velhos companheiros, meus dois cães, Clara e Mujica e aproveitar melhor essa vibe amistosa que rola entre caninos e humanos. Com eles é outra história. Rolamos na grama, tomamos banho de sol juntos e, à noite, ao deitar-me na rede para ler, de vez em quando, interrompo a leitura para conversarmos potoca. Damos altas risadas e latidos. Eu também dou latidos para eles, para facilitar a interação. Por que não? Descobri que falar a língua deles ajuda no processo de convivência. Com minhas meninas e meninos que moram no galinheiro, as coisas melhoraram bastante depois que aprendi a cacarejar. Aves são um pouco mais difíceis para relações do que os cães, se bobear voam pra cima da gente e ainda te beliscam os pés. Eu acho que as minhas são meio invocadas comigo porque as deixo presas num cercado. Antes quando eu me aproximava era uma agitação. Agora para entrar no espaço delas basta fazer có có có e jogar xerém para elas comerem. Está fluindo numa boa. E assim eu vou aguentando esse isolamento dos infernos que não acaba.

*Esse texto foi escrito como exercício da oficina de criação literária com os escritores Cícero Belmar e Raimundo de Moraes, realizada em outubro de 2020, durante a quarentena por conta da pandemia da covid 19.