Por Conceição Tomaz
Ela acordou sem saber ao certo como estava o seu humor. Quase diariamente, ela sabia, antes de abrir os olhos, qual o estado que guiaria o seu espírito. Havia desenvolvido um termômetro secreto para saber como lidar com seus humores. Deu o nome de mormaço para os momentos pedregulhos sob os pés descalços e deleite para os momentos banhos de mar em dias de chuva. Mesmo querendo que sua palavra preferida, deleite, ganhasse o round do dia, sabia que seria impossível. Então, para esta manhã, onde o aguaceiro tomava conta da cidade deserta, ela pensou em criar outro termômetro, pois não fazia a mais ínfima ideia do que estava sentindo. Certeza mesmo era que sentia falta. Mas de quê? Se perguntou e desenhou uma interrogação expectante no ar com a escova de dentes.
É certo que o isolamento fez com que as relações enveredassem por uma estrada ainda desconhecida, mas todos que lhe importavam, além de estarem bem, mantinham contatos diários. Não havia falta, mas saudade. Logo, se perguntou: de onde vem essa falta? Sentiu um aperto no peito ao ouvir um sussurro “De você mesma. A falta que sentes és tu.” Depois que aprendera a ouvir-se, toda hora estava lá prestando atenção em tudo o que jorrava de si.
Mas gente, eu estou aqui como jamais estive, cuspiu as palavras no ar. E calou-se com medo que as demais pessoas na casa ouvissem essa prosa interna extrapolando os limites permissíveis. Era muito cedo ainda, mas a faxina programada no dia anterior de repente pareceu a coisa mais maravilhosa do mundo. Arregaçou as mangas.
Enquanto a faxina corria solta, os pensamentos dela cruzaram uma ponte que jamais vira por ali. Mergulhando no que parecia um buraco sem fim, abriu-se um portal. Foi quando inaugurou uma fé em si mesma. E avançou. Do outro lado, deu-se conta que a falta era de ser o que jamais fora. Entendeu que por esses dias livres, mas sem liberdade, ela havia de lidar e contentar-se em ser o que criou e não o que imaginava ser.
Veja bem, não sou uma mentira, argumentou com pouca força. Isso não. Em dias que respirava ar e não pedras, as angústias eram dissolvidas e até resolvidas, mas ora, nestes tempos de preso-solto, como aguar a fé? Cada um está vivendo o que construiu para si nesse isolamento. Para o bem e para o mal. Por mais que quisesse escapulir dessa sentença, a cada movimento afundava mais. De fato, esta é a sua vida.
O aspirador trabalhava a todo vapor assim como o rodo, a faxina só acabaria para ela dormir exausta. Queria sentir-se exaurida. A falta de si mesma era como um barco à deriva por cem anos, pensou enquanto finalizava o banheiro. Lembrou do livro de Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida. “É preciso sair da ilha, para conhecer a ilha”. Nada nesse isolamento lhe faz mais falta que ela mesma. Seu humor. Sua risada. Sua vontade de fazer as coisas que lhe dão mais prazer. Suas leituras. Seu momento de escrever. Tudo soterrado pela urgência em sufocar, em rejeitar, em negar uma vida que não existe e que, convenhamos, jamais existiu. O alheamento de si mesma, numa licença antipoética, às vontades das outras pessoas. Podia ser a lápide dela. A casa ficou limpíssima e ela estava exausta. Melhor dormir com o que ainda tenho de mim, foi o último lampejo antes de mergulhar num sono sem sonhos.