AS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS DA IMAGEM

Por: Aline Maria Grego Lins

“Uma civilização democrática só se salvará se fizer da linguagem da imagem uma provocação à reflexão crítica, não um convite à hipnose” Umberto Eco (1987)

A humanidade, a partir do momento que descobriu seu poder para comunicar-se, procurou, ao longo de sua história, por meio da construção de reflexões e argumentos,  conquistar um auditório para seu discurso. Empregamos o termo auditório aqui na concepção de Chaim Perelman (1996),  isto é,  auditório quem o discurso é dirigido. Para ganhar a adesão desse auditório, o homem desenvolveu linguagens, técnicas e tecnologias, entre elas,  as utilizadas pelo audiovisual, que conseguem aliar os discursos verbal e visual, em meios eletrônicos ou digitais.  A imagem, de certa forma, corrobora com o discurso verbal, procurando, sobretudo, atender ao imaginário social.

Parte-se, aqui, do pressuposto que toda e qualquer sociedade constitui um imaginário social para sua própria sobrevivência, ou por fuga ou para produzir soluções para suas expectativas. O imaginário funciona como uma espécie de ponte entre a vida em sociedade que temos (concreta) e a vida que gostaríamos de ter ou viver. Não é de se estranhar, a partir dessa visão, que tenhamos a sociedade atual marcada pela exposição de imagens, inclusive, por falsas imagens que diariamente tomam de assalto as redes sociais, as denominadas fakes.

O imaginário que antes era constituído na relação direta do homem com o próprio homem e  deste com a natureza, nos lembra René Berger, agora é intermediado pelas máquinas amplificadoras dos seus discursos. Trava-se a pedagogia que denominamos da sedução, em que a imagem é, muitas vezes, utilizada como ferramenta para um discurso persuasivo, talvez provocada pela descoberta do homem de que na concretude da realidade,  desiludir-se é uma tarefa sempre mais difícil.

Ao analisar a imagem sob o ponto de vista pedagógico, dois autores chamam a nossa atenção e nos fundamentam nesse texto, o  brasileiro,  Paulo Freire, e o francês, Jean Piaget. Ambos não tratam da imagem eletrônica ou digital, como as conhecemos hoje e pelas quais nossas produções são permeadas, mas falam da capacidade comunicativa e cognitiva da imagem. É  a partir dessa perspectiva, que este texto reflete sobre as possibilidades propiciadas pelas imagens, sejam elas resultados mentais individuais ou produções sociais.

Piaget desenvolveu trabalhos sobre a Psicologia do Desenvolvimento (1988), que contribuem para a compreensão da imagem e seus desdobramentos para a formação do próprio indivíduo. É preciso esclarecer que para Piaget a imagem, que ele denomina de mental, é uma imagem que difere da percepção. Ele se refere a uma imitação interiorizada que fazemos dos objetos reais para tentarmos compreendê-los. A imagem, assim, põe-se a serviço da assimilação em torno do significante em relação ao significado. Ela é, portanto, um significante diferenciado. A percepção para Piaget (1983) é o conhecimento que adquirimos através do contato direto com os objetos e seus movimentos, enquanto a imagem é o signo (símbolo) do objeto, portanto, representação desse objeto que contribui, direta ou indiretamente, para a construção do conhecimento, nos aproximamos assim, dos fundamentos semióticos.

Paulo Freire (1980), por sua vez, vê na construção do conhecimento a oportunidade de o homem, enquanto sujeito e não objeto passivo, ter a capacidade para inventar e reinventar esse conhecimento, uma ação que vai exigir “uma presença curiosa do sujeito em face do mundo”, em outras palavras, aponta Freire, requer uma ação transformadora sobre a própria realidade.

A inteligência humana, nos seus primeiros passos em direção a construção do conhecimento, utiliza-se da imagem a título de representação para desenvolver-se e se relacionar com o exterior. Assim, a linguagem e a função semiótica mais geral possibilitam, além da comunicação verbal, um universo de representações não só de objetos físicos, mas, também, de sentimentos próprios da condição humana. Piaget afirma que é possível admitir que o pensamento se faz acompanhado de imagens e, uma vez que pensar consiste em interligar significações, a imagem passa a funcionar como um significante e o conceito produzido pela mente funciona como significado.

Ao reconhecer a importância da imagem na construção do nosso conhecimento e na representação do mundo, compreende-se como igualmente fundamental, refletir e compreender os efeitos não apenas das imagens mentais, mas, também, das imagens construídas socialmente em nosso entorno, a exemplo das imagens produzidas em pinturas, fotografias, ou as imagens em movimento que são a base do discurso audiovisual, composto pela linguagem verbal/sonora e pela linguagem imagética. Nunca é demais lembrar que a linguagem verbal é uma, talvez a principal manifestação de uma função simbólica geral construída coletivamente, mas ela não é a única. A transformação da representação em imagem tem uma parcela significativa de interiorização no pensamento, ao contrário da linguagem verbal que é mais socializada, pois se alimenta de signos convencionados coletivamente. Claro que a imagem interiorizada, a imagem mental de que fala Piaget, também pode ser exteriorizada, a exemplo das manifestações em desenhos, pinturas, audiovisuais, entre outros, sob forma de linguagem afetiva, revigorada a partir das próprias construções imagéticas simbólicas, tal como ocorre com a poesia ou com a linguagem poética.

É pertinente nesse ponto ressaltar que a imagem a que Piaget se refere é interiorizada, porque ela é formada na mente do ser humano e, que ainda que seja interiorizada, ela é também produto de representações sociais. É evidente, também, que no caso da imagem televisiva ou dos audiovisuais exibidos em plataformas na internet, a imagem não só é exterior, como é social, tal como ocorre com a linguagem verbal.

Apesar de a imagem não se desenvolver de forma autônoma, o mesmo ocorre com as outras formas figurativas da atividade cognitiva, ela é de grande importância para o desenvolvimento intelectual do indivíduo. Piaget chega a afirmar que é difícil efetuarmos algumas operações, a exemplo da matemática, sem o apoio simbólico das imagens, principalmente quando estamos nos primeiros anos de nossas vidas e não conseguimos  ainda fazer as abstrações. Assim, é possível dizer que no desenvolvimento cognitivo-intelectual, a imagem exerce importante função. É partindo desse pressuposto, que tentamos traçar relações entre as imagens sociais construídas por nós, sejam elas artesanais, eletrônicas e/ou digitais, com a imagem mental, que também como a social, é representação e interfere no processo de construção do conhecimento. Podemos, em outras palavras, dizer que nossa formação está permeada tanto por imagens mentais quanto sociais, que interferem na construção do nosso imaginário, inclusive no imaginário social, campo fartamente explorado pelos meios de comunicação e, hoje, pelas redes sociais. A sociedade para definir as relações com o mundo, a sua identidade, procura obter respostas através das suas significações imaginárias, respostas que a realidade por si só, por vezes, não consegue fornecer.

Hoje, meios de comunicações, institutos de pesquisas e opiniões, banco de dados e plataformas digitais, buscam desesperadamente (e na maioria das vezes conseguem) identificar que significações são essas que instituem e são instituídas pelo imaginário social, para delas tirarem proveito. Basta lembrar as batalhas travadas, no campo da comunicação e da política, nos períodos eleitorais. Com técnicas apuradas, sofisticados recursos (nem sempre éticos), campanhas eleitorais tentam atingir com seu discurso imagético não as necessidades de fato detectadas pelos diversos segmentos de uma dada sociedade, mas atingir os elementos eleitos ou desejados como ideais por essa sociedade. Reduzir ou acabar com o desemprego, extirpar a corrupção, dar segurança e saúde de qualidade, conquistar moradia digna são desejos quase sempre contemplados em qualquer sociedade.  E se as imagens da realidade concreta não correspondem a esse desejo, imediatamente são substituídas por recursos visuais que vão aguçar e fazer com que tais desejos pareçam realizáveis, mesmo que fundadas em imagens simuladas por recursos computacionais que contemplem o discurso da persuasão.

Ao identificar os recantos de cada significação imaginária, a televisão, assim como as redes sociais, por exemplo,  trabalham para tentar atrair e conquistar a adesão do auditório de que fala Perelman. Nem sempre essa conquista é configurada, uma vez que o processo histórico de construção de toda sociedade é, ao mesmo tempo, um processo instituinte e instituído pela própria sociedade, portanto, não há espaço para o determinismo, menos ainda para a manipulação passiva. Todavia,  para que a reação crítica ocorra, é fundamental que a sociedade se instrumentalize, porte ferramentas capazes de lhe propiciar esse recurso e criticidade. No quesito imagem precisamos, em tempos de fakes e de fakes news, desenvolver a alfabetização do olhar, que nos permita reconhecer e quebrar simulacros, e entender o discurso das imagens no que ele apresenta de explicito ou no que nele apresenta-se dissimulado.

Entende-se que a imagem mental  concebida por Piaget contribui para o desenvolvimento, por exemplo, da criança no que se refere ao seu processo de compreensão, tanto do discurso verbal quanto do não verbal, além, é claro, de ser um instrumento para o aprimoramento cognitivo intelectual. Compreende-se, também, que a imagem pode funcionar como mais um elemento esclarecedor do discurso e das experiências vividas no dia a dia. Sabemos que essa função semiótica não se esgota na infância, e que o recurso ao uso de imagens é requisitado por nós, a todo tempo, para a compreensão de discursos e fenômenos, sejam essas imagens mentais ou sociais.

Com relação as imagens produzidas socialmente, a exemplo da televisiva e dos audiovisuais, hoje fartamente explorados nas plataformas na internet, entende-se que elas poderiam ser úteis na medida em que, assim como os signos e as imagens mentais, contribuem para a construção do conhecimento. As imagens eletrônicas e digitais poderiam auxiliar tanto de forma ilustrativa quanto reflexiva sobre os processos de compreensão dos diferentes fenômenos e discursos, inclusive o imagético. Ao reconhecer o fascínio que a imagem provoca e produz na sociedade, desde o entretenimento até a segurança das pessoas e dos seus bens (basta lembrar os circuitos internos de segurança que se utilizam de câmeras)  é importante não perder de vista que esse fascínio tanto serve para o bem quanto para propósitos escusos. Daí a necessidade de estarmos atentos e preparados diante de imagens que acessamos ou tomamos como representações que são, na realidade, resultados de falsas representações, falsas imagens, são fakes. Que implicações elas terão na construção e compreensão do discurso que desejam reverberar? A prática crítica reflexiva parece ser a resposta e saída mais sensata a essa questão.

Paulo Freire (1980), ao analisar a imagem adotada pela propaganda e sua força mítica da persuasão, no livro Comunicação ou Extensão, alerta que a ninguém se persuade ou se submete à força, quando se tem uma opção libertadora. “Neste caso aos homens se lhes problematiza sua situação, concreta, objetiva, real, para que captando-a, atuem também criticamente sobre ela”.

A sociedade é um eterno vulcão em ebulição, que às vezes parece estar adormecido, passivo, e em outros momentos enfurecido, jorrando suas convulsões. A sociedade é permeada por necessidades, desejos, perspectivas, objetivos pessoas e coletivos, coincidentes ou contraditórios. Assim, cada sociedade está em constante processo de construção e reconstrução, algumas de forma mais rápida, outras de modo mais lento, correndo, inclusive, o risco de integrarem-se ou desintegrarem-se completamente, esse período da pandemia provocada pela Covid 19, tem nos ensinado duramente essa lição.

Para defender-se do que lhe parece ameaçador ou para preservar o que existe e  parece seguro, a sociedade procura criar estruturas que garantam sua própria existência, a exemplo da Família, Igreja, Clubes, Escolas, Grupos de amigos, Partidos políticos, Estados. Tais instituições utilizam-se de dois sistemas imprescindíveis para a manutenção: a educação e a comunicação.

Na verdade, não é possível entender a existência de um sistema sem o outro. Em toda a comunicação existe um processo educativo, declarado ou não. Por sua vez, na educação ocorre um processo comunicativo. É preciso, contudo, deixar claro que a educação entendida aqui não se restringe a transmissão do saber, mas refere-se, principalmente, à educação que proporciona o encontro dos sujeitos que buscam e questionam, nas suas relações, a construção do conhecimento e formação. Inicialmente restrito as famílias, depois ampliada para o espaço escolar, o processo educativo, com o advento dos meios de comunicação, foi amplificado para diferentes suportes. Construção, assimilação, reconstrução e transformação do conhecimento não dependem mais e unicamente de um espaço físico, suportes baseados na virtualidade são cada vez mais acessados e são esses suportes que, cada vez mais, ampliam o uso das imagens, persuasivamente ou não. Quando falamos em persuasão, ela não deve ser entendida como uma ação negativa. A persuasão também pode ser utilizada para bons propósitos, como por exemplo, convencer a população a tomar a vacina contra a Covid-19 (ação educomunicativa).

A nossa compreensão de educação, baseada no referencial de Paulo Freire, é a que vê o processo educativo como prática da liberdade, do homem nas suas relações com o mundo, do qual ele não é só parte integrante, mas também seu construtor. Só assim, no que tange as imagens, e de modo especial as falsas imagens, será possível combatê-las, porque ao ser recebidas de forma crítica, elas poderão ser desmascaradas. A questão é, a quem interessa desmascarar as falsas representações? O jornalismo e a educação, entendemos, por sua essência, devem estar atentos e preocupar-se com esse processo, pois todo ato comunicativo é educativo e todo ato educativo é comunicativo, como lembra Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido (1988) “A educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que é prática da dominação, implica a negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo como uma realidade ausente dos homens”, que nossa realidade se torne repleta de homens críticos e libertadores.