Por: Alexandre Figueirôa
Nestes dias de pandemia e isolamento social, uma boa forma de escapar do tédio e repousar das tarefas acadêmicas é ficar fuçando coisas pela internet, sobretudo filmes. Serviços de streaming, festivais on-line, e plataformas como Vimeo e YouTube têm, em seus acervos, obras para todos os gostos e tribos. Eu, como sou um aficionado por documentários, quando tenho um tempinho disponível fico navegando livremente pela web em busca de curtas ou longa metragens com temas que estejam no meu arco de interesses no momento.
Atualmente tenho prestado muita atenção aos documentários que têm a própria web como personagem. E foi nessas andanças virtuais que me deparei com o filme O Menino da Internet: a História de Aaron Swartz (The Internet’sOwn Boy: theStoryof Aaron Swartz, Brian Knappenberger, 2014), disponível no YouTube, com uma boa resolução de imagem e legendado.
O Menino da Internet é mais um documentário a mostrar que a world wide web é uma maravilha do mundo moderno, mas, ao mesmo tempo, um poço de problemas, muitos dos quais ainda estão longe de serem resolvidos. Milhões de informações circulam por ela a cada minuto e o gerenciamento delas tem mobilizado diversos agentes sociais tanto nas esferas governamentais quanto no mundo corporativo, além de inúmeras organizações da sociedade civil preocupadas com o uso desses dados por governos e empresas e o direito à privacidade. Se a máxima “informação é poder” já valia nos tempos do analógico, hoje é uma constatação inquestionável. Não é de se espantar, portanto, que o acesso e o manuseio das informações em tráfego no mundo virtual seja alvo de polêmicas e disputas, sobretudo quando tem que se legislar sobre osconteúdos em circulação e também garantir a liberdade de expressão das pessoas.
É nesse ambiente de tensões que vamos nos deparar com a história de Aaron Swartz, cuja carreira na web ganhou maior visibilidade quando ele atuou no agregador social de notícias Reddit, em 2005. Com o mesmo potencial de criatividade e habilidade com o mundo digital de nomes como Steve Jobs ou Bill Gates, Swartz, com apenas 14 anos, já participava de grupos importantes no desenvolvimento de ferramentas da internet – ele foi coautor da especificação do feed RSS e da organização do CreativeCommons.
Com o decorrer do tempo, todavia,o jovem programador desenvolveu uma visão diferente do uso da internet e, como outros ativistas, não estava muito interessado nas suas possiblidades lucrativas e tampouco em se tornar um milionário do Vale do Silício. Seu desejo eraaprimorar a rede mundial de computadores de modo a permitir o acesso livre ao seu conteúdo, sobretudo, na área do conhecimento.
Movido por esses ideais, Aaron realizou diversas operações hackeando acervos de acesso restrito com o intuito de disponibilizá-lo gratuitamente para qualquer cidadão e aliou-se a organizações que enfrentavam o governo e o congresso norte-americano por uma regulamentaçãoprogressista da internet que não atendesse apenas os interesses dos poderosos.Tornou-se, então, um ativista político, realizando, entre outras coisas, investigações a partir do cruzamento de dados dos documentos que conseguia pela webe escrevendoo Manifesto da Guerrilha do Livre Acesso, um dos motivos que o levaram a ser alvo de monitoramento pelo FBI.
Ao baixar e tentar disponibilizar cinco milhões de artigos acadêmicos da JSTOR, serviço que só permite acesso mediante assinatura e que renumera as editoras e não os autores, ele deu um motivo para o governo americano iniciar uma ação judicialna qual ele poderia ser condenado a 30 anos de prisão e ainda pagar uma multa milionária. Embora estivesse ligado ao Massachusetts Instituteof Technology (MIT), a universidade não o defendeu e emitiu uma nota se pronunciando neutra diante do caso.
Mesmo aterrorizado com a ameaça de prisão e sendo injustamente comparado pelos juízes e promotores que cuidavam do seu processo como mais um hacker interessado apenas em enriquecer fraudando o sistema financeiro, Swartzfundou o grupo online DemandProgress e teve um papel fundamental na derrubada da polêmica lei antipirataria americana, a Stop Online PiracyAct (SOPA), ao conseguir pelas redes sociais mobilizar o apoio de colaboradores da causa.
Em janeiro de 2013, no entanto, Aaron foi encontrado morto.Ele não aceitou fazer um acordo com as autoridades judiciais, pois se considerava inocente das acusações, mas, segundo sua companheira e familiares, ele não teria suportado a pressão da Justiça e nem teria mais condições de bancar os gastos com advogados,na casa de milhões de dólares,para sua defesa. No site memorial, criado após sua morte, uma frase destacava o significado da militância pela qual Swartz havia lutado. Segundo seus parentes o rapaz só tinha um objetivo: “tornar a internet e o mundo mais justos e um lugar melhor”.
O Menino da Internet, apesar de centrar sua narrativa na figura de Aaron Swartz, detalhando sua biografia desde a infância, com depoimentos dos pais e irmãos, e sua vertiginosa ascensão como gênio da web, aborda diversos assuntos que continuam muito atuais, ou seja, a fragilidade do sistema judiciário americano (podemos estender essa falha também ao brasileiro) e do próprio funcionamento da democracia moderna, afundada em contradições. Um dos méritos do filme é o equilíbrio em que os acontecimentos vão sendo apresentados. O roteiro dedica a primeira metade à trajetória mais pessoal de Aaron e, a segunda, investe no processo por ele sofrido e os desdobramentos da situação.
Aos poucos, graças a articulação feita pela narrativa, vamos percebendo que, ao punir Swartz, o governo norte-americano tinha dois objetivos. Em primeiro lugar, evitar que as atividades, muitas vezes ilícitas, e anticonstitucionais praticadas por seus mandatários se tornassem conhecidas do público e, em segundo, usá-lo como exemplo para intimidar outros ativistas. Analisando e cruzando informações de documentos obtidos nas suas pesquisas, Swartz encontrou e denunciou casos de corrupção e estava empenhado em ver como governo, empresas e institutos de pesquisa manipulavam resultados de seus estudos para esconder impactos ambientais e climáticos.
Ao final, é impossível não compartilhar com a indignação dos familiares e dos amigos e militantes dos movimentos que, junto com Swartz, perceberam como as forças econômicas sempre estão manipulando de forma orquestrada as decisões para o funcionamento da web, onde os interesses financeiros de poucos prevalecem sobre as possiblidades de uma internet aberta e democrática.
** A coluna Falando de Cinema é uma homenagem a Fernando Spencer que por muitos anos teve um programa de rádio com este título, inicialmente na Rádio Tamandaré e, depois, na Rádio Clube de Pernambuco.
Alexandre Figueirôa é doutor em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais e professor do curso de Jornalismo e do Mestrado Profissional em Indústrias Criativas da Unicap.