Por Carla Teixeira

Nas Olimpíadas de Tóquio, o gesto da atleta americana Raven Saunders, que ergueu os braços em X ao subir ao pódio para receber a medalha de prata no arremesso de peso feminino, era um protesto. E quase foi punido pelo Comitê Olímpico Internacional. O X representa a intersecção entre raça e gênero, remetendo à identidade de Saunders: uma jovem de 25 anos, negra e lésbica. Segundo ela, o gesto representava a “interseção onde todas as pessoas oprimidas se encontram”. A potência do protesto ganhou espaço na cobertura jornalística de veículos de todo o mundo e, ainda, nas redes sociais.

A Interseccionalidade fala sobre esse encontro ou cruzamento. Debate os diversos modos como classe, raça, etnicidade, gênero e sexualidade atuam de forma articulada na conformação de diferenças, posições de sujeito e desigualdade ou privilégio social. A partir dessa perspectiva, busca-se compreender as estruturas de poder e dominação, tais como sexismo, racismo, homolesbotransfobia, e outras formas de discriminação, e como elas estão relacionadas e se constituem mutuamente.  Ou seja, parte-se de marcadores das diferenças para se compreender como os múltiplos eixos de opressão se produzem na sociedade e nas experiências pessoais. As Olimpíadas são apenas um recorte de uma realidade na qual nem todas as pessoas tem acesso a bens culturais, ao esporte, a políticas públicas, educação e saúde. E sofrem a sobreposição de opressões.  

O conceito de Interseccionalidade ganhou força na última década, não só na academia, mas, principalmente, nos movimentos sociais. A semente desse atravessamento surgiu em 1851, com o discurso de Sojourner Truth “E eu não sou uma mulher?”. Militante abolicionista, Sojouner nasceu escravizada em 1797, com o nome Isabella (o sobrenome variava de acordo com o proprietário). Adotou o nome Sojouner Truth, que significa verdade peregrina. Foi pioneira na luta pelos direitos civis dos negros e e das mulheres nos Estados Unidos. Naquele ano, Sojourner Truth foi participar, como espectadora, da Convenção dos Direitos da Mulher, em Ohio. Nessa convenção ela pediu o microfone e se contrapôs a religiosos conservadores, que pontificavam sobre a “inferioridade” da mulher. De improviso, ela proferiu o discurso “E eu não sou uma mulher?” (Ain’t I a Woman?), uma fala curta e poderosa, que inspirou e impulsionou os movimentos pelo direito das mulheres e o combate ao racismo, além de tornar-se título da obra fundamental de bell hooks sobre o feminismo negro. Para compreender como a fala de Truth aborda os direitos das mulheres em uma perspectiva interseccional, segue aqui um pequeno trecho:

“Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher?”

Ou seja: existiam as mulheres brancas, consideradas frágeis e alvo de cuidado dos homens, e as mulheres negras, que trabalhavam tanto quanto os homens negros e eram vistas muitas vezes apenas sob dois aspectos: o da força de trabalho/ geradora de mão de obra e a erotização extrema do corpo negro. Algo que é possível perceber até hoje.

Quem registrou o termo foi a pesquisadora e jurista estadunidense Kimberlé Crenshaw – em 2002 – para quem a interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos de subordinação. A ideia é que a interseccionalidade busca compreender os problemas sociais, amplos, estruturais, as dinâmicas desses problemas, a partir de múltiplos eixos. Ou seja, articular esses múltiplos eixos que geram as desigualdades sociais.

Para Kimberlé Crenshaw, a intersecionalidade sugere que, “na verdade, nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas e sim com grupos sobrepostos. (…) ao sobrepormos o grupo das mulheres com o das pessoas negras, o das pessoas pobres e também o das mulheres que sofrem discriminação por conta da sua idade ou por serem portadoras e alguma deficiência, vemos que as que se encontram no centro – e acredito que isso não ocorre por acaso – são as mulheres de pele mais escura e também as que tendem a ser as mais excluídas das práticas tradicionais de direitos civis e humanos.“

No Brasil, a pesquisadora Lélia Gonzalez foi responsável por unir classe social, gênero e raça na observação de fenômenos sociais. Segundo ela, “O racismo — enquanto articulação ideológica e conjunto de práticas — denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas”. Para ilustrar a afirmativa da pesquisadora, temos dados do Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada de 2016, que mostram que mulheres brancas recebem 70% a mais que mulheres negras. E, embora, pela primeira vez, os negros sejam maioria no ensino superior público brasileiro, eles ainda são minoria nas posições de liderança no mercado de trabalho e entre os representantes políticos no Legislativo. Entre aqueles que não têm emprego ou estão subocupados, negros são a maior parte, de acordo com dados do IBGE. Também são a maior parte entre as vítimas de homicídio e compõem mais de 60% da população carcerária do país.

Outro dado relevante para compreender a importância da interseccionalidade: levantamento realizado pela Gênero e Número, publicado em outubro de 2020 a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral indicava que os candidatos brancos eram 64% dos prefeitáveis de todo país, o que mostra que o cenário eleitoral ainda estava (e está) longe de uma paridade racial. Em 2.152 municípios brasileiros havia apenas candidaturas brancas (38,6%), enquanto apenas 80 municípios apresentavam só candidaturas negras (8,62%) e um município apenas candidaturas indígenas (0,02%).

Lélia colaborou ainda na perspectiva do feminismo negro “A maioria dos textos, apesar de tratarem das relações de dominação sexual, social e econômica a que a mulher está submetida, assim como da situação das mulheres das camadas mais pobres etc. etc., não atentam para o fato da opressão racial. As categorias utilizadas são exatamente aquelas que neutralizam o problema da discriminação racial e, consequentemente, o do confinamento a que a comunidade negra está reduzida”.  Neste sentido, a interseccionalidade permite compreender, por exemplo, que as vivências de mulheres brancas e negras são distintas.

Na obra “Interseccionalidade”, a pesquisadora baiana Carla Akotirene destaca que nessa perspectiva teórica, em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionamentos reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob a forma de identidade. Por sua vez a identidade não pode se abster de nenhuma das suas marcações, mesmo que nem todas, contextualmente, estejam sejam explicitadas. A pesquisadora defende que a interseccionalidade observa “a partir da avenida estruturada pelo racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, em seus múltiplos trânsitos, para revelar quais são as pessoas realmente acidentadas pela matriz de opressões”. Importa, portanto, um feminismo que trabalhe como projeto coletivo.

Se o termo surgiu como uma conceituação acadêmica e de intervenção jurídica, hoje ele vai além. Para Flávia Rios, pesquisadora da Afro-Cebrap – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial, a interseccionalidade está atrelada ao campo jurídico, como ferramenta de intervenção política, nos movimentos sociais. Está também na ONU, como instrumento político para combater as desigualdades.

A interseccionalidade deveria permear as políticas públicas, porque gênero, raça e classe social são matrizes de opressão e interferem diretamente no acesso à saúde, à educação, à habitação. Afeta também a circulação das pessoas pela cidade, a forma como ela é ocupada, o acesso a bens culturais, na violência doméstica. As vivências de cada um e cada uma daqueles que sofrem essas opressões – mulheres, negros e negras, indígenas, gays, lésbicas, pessoas com deficiência – ganham mais força quando observadas em uma perspectiva interseccional, contribuindo em uma compreensão mais ampla os fenômenos sociais.

Quando pensamos na formação acadêmica, a interseccionalidade é uma perspectiva norteadora. A presença das minorias políticas com suas distintas vivências é necessária, seja construção de campanhas publicitárias ou em textos e produtos jornalísticos, no desenvolvimento de jogos e softwares, na inteligência artificial, nos algoritmos, nos espaços da cidade. Precisamos de equipes mais diversas, que abarquem as mudanças e diferenças que vemos no mundo, combatendo as opressões.

Carla Teixeira é jornalista, doutora em Design, coordenadora do curso de Jornalismo e do eixo Interseccionalidade da Clínica de Direitos Humanos do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unicap.