Por Adriana Dória Matos

Era uma tarde de dia de semana, antes, bem antes da pandemia, e eu estava no computador, trabalhando. Daqui a pouco, os barulhos que vinham da rua foram silenciados por uma voz potente que cantava alto: “O tamboreeeeeeete, olha! O tamborete só paga cinco, olha! Ainda serve pra sentar, pra conversar, pra namorar, falar de bem, falar de maaaaaal, olha!”. Olhei lá pra baixo e avistei uma mulher empurrando um carrinho de mão em que estavam empilhados uns seis tamboretes de madeira, presos com stick. Ela devia ter uns 45, 50 anos e me hipnotizou com seu canto agudo, um pregão que me transportou para um tempo imemorial de antes, muito de eu existir, mas que estava dentro de mim agora, como uma força estranha, como diz a música de Roberto Carlos. A mulher passou com seu encantamento pela minha rua, e o tempo também.

​Domingo passado estávamos reunidos na casa do meu filho, na Ilha do Leite, era já de noitinha e daqui a pouco ouvi de lá de longe: “O tamboreeeeeeete, olha! O tamborete só paga quinze, olha! Ainda serve pra sentar, pra conversar, pra namorar, falar de bem, falar de maaaaaal, olha!”. Era ela de novo, aquela mulher que me enfeitiçou com sua cantiga. Corri pra janela e gritei: “Ei, moça, tá me vendo aqui? Espere, quero comprar um tamborete!”. Descemos meu companheiro e eu as escadas. E eu correndo, na alegria daquele encontro adiado. A mulher estacionou o carrinho de mão e começou a contar sua história pra gente. Ela falava e cantava, como num musical.

​Seu nome é Ângela Maria, que ganhou esse nome porque a mãe era fã da cantora carioca. Tinha uma sina nesse nome, porque, de algum modo, ela veio a se tornar cantora, quisera que também tivesse ascendido ao estrelato, como aconteceu com a Rainha do Rádio (que, a propósito, se chamava Abelim Maria da Cunha, um nome “pouco artístico”, substituído pelo fácil pseudônimo), mas o seu canto é das ruas, e dá combustível ao seu sustento de vendedora ambulante. Também não é como Ângela Maria que ela é conhecida: aquela senhora atende por Quinha do Tamborete, pois seu ofício é o de vender os banquinhos que produz com o reaproveitamento de madeira encontrada, doada por madeireiras ou por qualquer pessoa que se dispuser a lhe ajudar.

​Pois Quinha, gentilmente, nos contou um pouquinho de sua história, como havia feito antes com quem quisesse lhe ouvir, como é característico das pessoas comunicativas. (Depois daquele nosso encontro, numa pesquisa básica na internet, constatei que Quinha do Tamborete era famosa, com vídeos no Youtube, matérias de TV, essas coisas; vou deixar pra vocês uns links de matérias sobre ela no final desse texto.)

​Essa mulher, hoje na faixa dos 55, há 35 anos empurra o carrinho de mão, com o qual vende seus banquinhos, que, ao longo do tempo – e é muito legal que seu pregão referende isso –, já custaram cinco, sete, dez e, mais recentemente, 15 reais, sempre um precinho camarada. Embora, como ela diz, se não tiver banquinho para vender, ela sai vendendo água, pipoca, o que puder levar para garantir o seu sustento e o da família. Para Quinha, o importante é vender o produto honesto.

Além do pregão que ela mesma criou – aquele hipnótico reproduzido lá no início do texto –, tem a versão que ela fez para o Rap da Felicidade, de Cidinho & Doca: “Eu só quero é ser feliz, vender os meus banquinhos na cidade onde eu nasci. E poder me orgulhar e ter a consciência que meu pão irei levar”. Mas se, por acaso, naqueles dias não tiver matéria-prima para fazer os utensílios e ela precisar vender água, está na ponta da língua: “Quem é que tá com sede? Olha a água geladinha, gostosinha, é a água da coroa, olha! Eu só quero é ser feliz, vender a minha água geladinha, gostosinha na cidade onde eu nasci. E poder me orgulhar e ter a consciência que vocês irão comprar”. Quinha se reinventa, como se reinventam todos os que não podem esperar que o dinheiro caia do céu.

​E essa senhora bate perna pelo Recife empurrando o carrinho de mão cheio de banquinhos. Quinha conta que tem freguesia no Pina, na Mustardinha, na Vila de São Miguel (Afogados), que percorre também Santo Amaro, Bairro do Recife, Coelhos, Madalena, outros bairros, inclusive montando venda na própria comunidade onde vive. Aí pergunto a ela onde mora. Claro, a resposta vem cantada: “De onde eu sei de onde ela é? É de Piedade? Não é. Ela é de Olinda? Não é. Ela é dos Coelhos, não é. Ela é do Coque, do Bairro de São José!”. Numa reportagem de jornal, pontuaram: a casa de Quinha fica na Favela do Papelão, no Coque, populoso bairro do centro do Recife.

​Como todo mundo, Quinha também tem história triste para contar, de dias sem comida na mesa, de falta de material pra trabalhar, de sonhos frustrados, de homem ruim que lhe assedia, de violência que ela aprendeu a lembrar sem chorar. Garota de 13 anos, ela conta que foi enganada por um tarado vestido de policial que lhe arrastou para um ermo e lhe violou. Aquilo ficou no corpo, na cabeça, nem sabia direito o que tinha acontecido, medo, vergonha, dor. Somente agora, diz, pode contar a história sem chorar.

Quinha ri e chora das coisas que viveu, das injustiças, das troças que fizeram dela, quando levantou a voz para vender seus tamboretes. No dia que conversou com a gente, empurrava um carrinho emprestado, que tinha os braços meio frouxos, o que lhe dificultava o manuseio. O carrinho dela, emprestou, e a mulher devolveu com o pneu furado. Teve carrinho de mão tomado pela prefeitura, no carnaval do ano passado. Os contratempos e obstáculos todos da pobreza e da experiência de ser mulher no Brasil.

Mas ela prefere a alegria, o riso; prefere cantar, levando a cabo a sabedoria propagada pelos quatro cantos de que quem canta os males espanta. E assim a gente acredita, e canta junto com Quinha, que espalha sua voz pelos bairros e ruas do Recife. Pra tudo tem um jeito e uma melodia, nos ensina Quinha. Ela até criou um pregão para aquela vizinha que só olha ela passar vendendo os banquinhos e nunca compra nada; pior, às vezes até pede um deles emprestado, dizendo que paga depois.

Para as pirangueiras, Quinha do Tamborete tasca: “Mamãe, lá vem ela, mamãe lá vem ela, com o banco dos outros dizendo que é dela!”. Eita coisa incrível é viver numa cidade desigual da mizera feito o Recife e ter a sorte de ouvir os pregões de gente como Quinha. Isso, como se diz por aí, não tem preço. Nem tempo.

Adriana Dória Matos, jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco, com mestrado em Teoria da Literatura pela UPFE, professora do curso de Jornalismo da Unicap e editora da revista cultural Continente.

Como prometido, seguem os links para alguns vídeos sobre Quinha do Tamborete na internet:

Reportagem na TV Record (mar/2013)

https://recordtv.r7.com/domingo-espetacular/videos/vendedora-conta-com-gogo-de-ouro-para-vender-tamboretes-em-pernambuco-14092018.

Diario de Pernambuco TV (dez/19)

Pé na Rua (mar/2011)

Uma trama por minuto