Faz vinte anos que comprei – numa banca de jornal ou numa livraria, não lembro ao certo agora – este exemplar de capa dura de As cidades invisíveis, de Italo Calvino. Numa só frase (percebo ao acabar de escrevê-la), posso prever o fim de dois lugares que frequentei muito na minha vida: banquinhas e livrarias. Claro, posso imaginar também o desaparecimento do livro impresso, ainda mais um de capa dura… Aí já seriam dois lugares e um objeto de afeto a sumir do mapa.
O livro de Calvino esperou, portanto, duas décadas para que eu o resgatasse da estante para uma leitura. Quando foi lançado no Brasil, ele foi tema de muito debate e encantamento. Essa edição que tenho já foi resultado da popularidade conquistada, um exemplar vendido em bancas de revistas, ou seja, uma aposta em leitores que passavam ali pela rua e, numa passada de olhos, adquiria o seu exemplar.
Muita coisa mudou em vinte anos, muita coisa nesta cidade se tornou invisível…
E isso me leva ao porquê de eu ter pinçado o livro de Calvino da estante. Em outubro faz 100 anos do nascimento desse precioso escritor italiano, faz 51 anos que ele escreveu As cidades invisíveis. Mas não são essas efemérides o motivo dessa leitura, não os principais.
Estava pensando em que temas trabalhar na disciplina Jornalismo Especializado em Cultura (todo semestre eu invento essa doidice de propor novos temas e tópicos), quando foi anunciada a estreia do filme Retratos fantasmas, de Kleber Mendonça Filho. Ia ser muito oportuno assistir ao filme com a turma, ler a obra de Calvino e bater perna por esta cidade, este Recife de tantas gentes, memórias, fantasmas, riquezas e misérias.
Era isso!
Então propus à turma de a gente trabalhar neste semestre os tópicos cultura, cidade e memória, a partir deste território (o Recife), deste tempo (a cidade cheia de ruínas) e destas referências cinematográfica e literária (entre outras).
No começo desta semana, fomos assistir ao Retratos fantasmas numa sala do Kinoplex Boa Vista. Este mesmo bairro central e histórico que abriga o campus da Universidade Católica de Pernambuco foi um lugar de fluxo intenso de cinéfilos que frequentavam os cines Veneza, São Luiz, Ritz e Astor, sem falar dos que ficavam no “centrão”, perto dali: Art Palácio, Trianon e Moderno.
Essas salas de cinema – ou melhor, seus fantasmas – estão no filme de Kleber, porque fazem parte da sua memória afetiva, assim como dos que viveram aqueles tempos agitados do Centro do Recife. Nas suas segunda e terceira partes, Retratos fantasmas se concentra nesse passado, quando o dinheiro circulava por ali, como lembra o cineasta, quando não havia mudado de bairro e deixando o Centro tão empobrecido.
A graça do filme, acredito, é que ele não desperta essa memória da cidade a partir de uma objetividade jornalística. Ao contrário, ele opera no campo do sensível e subjetivo, daquilo que afeta o cineasta. Por extensão, ele toca as pessoas que partilham suas memórias e quem não viveu esse tempo do Recife, numa saudade daquilo que não foi a própria experiência, a gente sabe o que é sentir isso. Nostalgia, ternura e alguns assombros se somam, portanto, nessa experiência fílmica. “Poxa, o Recife já foi assim”… pois é, des fantômes, ghosts (do outro lado da vida… como já anunciou o letreiro de cinema de rua nos anos 1990).
Aí a gente gira o foco para As cidades invisíveis. Nessa bela narrativa feita de capítulos breves, Calvino revisita Marco Polo, o mercador veneziano que, no século XIII, teria viajado pela Ásia, feito amizade com o imperador mongol Kublai Khan e contado suas aventuras e descobertas em vários territórios do Oriente, fascinando leitores ao longo dos tempos.
Calvino imagina encontros entre Marco Polo e Khan, quando o veneziano relata ao imperador a respeito de 55 cidades por ele visitadas. A magia das narrativas são as descrições fantásticas, os cenários tão deslumbrantes quanto improváveis, as reflexões acerca dos nossos desejos e memórias, daquilo que nas cidades é puro signo, daquilo que desaparece e morre, permanecendo, entretanto, em algum lugar em nós mesmos.
Num dos belos capítulos iniciais, Marco Polo adverte sobre a imaginada Zaíra: “Mas a cidade não conta o seu passado, ela o contém como as linhas da mão, escrito nos ângulos das ruas, nas grades das janelas, nos corrimãos das escadas, nas antenas dos para-raios, nos mastros das bandeiras, cada segmento riscado por arranhões, serradelas, entalhes, esfoladuras”.
Cada cidade, portanto, em acordo ou à revelia, tatua em nós suas marcas, seus sinais, nos impregna e condiciona. Elas estão tão vivas em nós quanto todos os fantasmas que não avistamos, mas que permanecem em algumas ruas e esquinas, como as bancas de revistas e livrarias que um dia frequentei e que deixaram de existir.
Por Adriana Dória