Por Adriana Dória Matos

Se pensamento fosse matéria, não ia caber na nossa cabeça. Acho que não ia caber nem na nossa casa inteira. No bairro onde moramos, será? Porque o pensamento é incessante, como um rio passando. A gente pensa, pensa, pensa de novo… Um pensamento que a gente achava que tinha ido embora, volta, assunta e pode aperrear. Fazer medo, feito fantasma. Tem pensamento que cresce, porque a gente deu fermento a ele, ficou alimentando. A sabedoria talvez esteja em diferenciar aqueles que a gente deve adubar e os que a gente precisa deixar ir, como barcos sobre o rio, que lá se vão e a gente fica olhando sumir.
Eu trouxe isso do pensamento incessante nem tanto porque tem algum me molestando no momento, mas porque esses dias andei pensando bastante sobre memória. E esse jeito de pensar agora foi despretensioso, quase banal, porque foi estimulado pela atenção que dei a alguns objetos da minha casa, heranças de pessoas queridas e momentos vividos. E a ideia que tive foi que se tudo que eu vivi com meus amados permanecesse como alguns dos objetos que guardo dessa história, ia ser igual aos meus pensamentos: não iam caber nem dentro da minha cidade.
Parece loucura isso que estou dizendo, mas veja se não faz sentido. A gente guarda nas nossas casas coisas as mais variadas que são registros de momentos que vivemos e não queremos esquecer. Coloque na sua lista mental aquilo que guarda por afeto, desde uma peça de roupa a um móvel grande. Provavelmente você guarda o cartão de Natal – tão lindo – que sua avó escreveu pra você no ano passado ou a camisa daquela banda que você curtia na adolescência. Se você teve sorte na vida, ainda conseguiu encontrar uma filial da Tabira Filmes e imprimiu algumas fotografias, colocando-as em porta-retratos, e lembrando sempre daqueles momentos.
Mas, repare, essas coisas que a gente guarda, que podem ser até excessivas para o nosso espaço físico, são pouquíssimas, em relação ao vivido. São vestígios, aos quais a gente se agarra para não esquecer. Foi por isso que fiquei pensando em memória como aquilo que a gente lembra e quer lembrar, em oposição àquilo que a gente esquece, querendo ou não. Eu queria tanto lembrar de certas coisas que eu vivi, mas esqueci, não sei onde foram parar. Acontece que esses objetos que mantenho em casa, essas relíquias da experiência, me remetem quase sempre às mesmas situações e emoções. Claro que gosto de cultivar essas coisas que eu amo, mas, às vezes, sinto falta daquilo que não lembro e que não volta a minha cabeça.
Estou pensando essa relação entre a matéria e a memória nesse espaço íntimo, pequeno, meu. E no quanto algumas coisas simplesmente deixaram de existir para mim porque não lembro delas e não tenho nenhum artefato que me instigue a lembrar. Mas e se a gente ampliar essa ideia para uma cidade, um país? O quanto deixa de existir na memória daquela comunidade, porque não existe um pedacinho de pedra sequer que diga a ela: “Olha, essa pedra aqui foi sua tataravó que pintou de verde, porque naquela época o verde era a cor sagrada da vida”?
Porque cultivar nossa memória e contar com ativadores para ela é um jeito de não morrer. É um jeito de eternizar a vida daqueles que não estão mais aqui, daquilo que fizeram antes da gente chegar e de compartilhar com eles essa vida deles, que é a nossa, por extensão.
Hoje eu olho para essas coisas banais que me cercam, os porta-retratos com fotos dos meus filhos pequenos, de mim mesma mais jovem, do meu amado companheiro; olho para aquele potinho que vovó me legou, para a luminária de anjinho com que minha mãe me presenteou; passo a mão na cômoda de madeira que minha sogra comprou para acomodar as roupas do meu primogênito, neto dela; abro na estante o livro que tem o selo da loja que eu frequentava e que fechou há tempos e tudo isso me diz quem eu sou, cada passo que dei junto com eles. O tempo e a vida toda ali, naquelas coisas singelas, cheias de sentido e amor.
Quero viver essa emoção andando pela minha cidade, quero que as pessoas que estão chegando agora – e nem precisa que a gente se conheça pessoalmente – possam compartilhar vida comigo, com aquilo que temos sido: a pedra verde da tataravó, você, eu, nós, essa família cósmica feita de memória.

Adriana Dória Matos, jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco, tem mestrado em Teoria da Literatura pela UFPE. É professora do curso de Jornalismo da Unicap e editora da revista cultural Continente.