No mundo cristão, até o Vaticano II, acreditava-se que Deus havia revelado em Jesus Cristo e até o último apóstolo, pelo Espírito, um depósito de informações verdadeiras, consignadas na Sagrada Escritura, frente às quais deveríamos ter fé – enquanto consentimento racional e aderência sentimental -, tratando de adequar-nos moralmente a tais verdades. Inclusive, não foram poucos os missionários a encontrarem as “pegadas de São Tomé” nas “terras de missão” de há quinhentos anos: era como se explicava que a cultura e a religião dos outros pudessem ter algo de bom, fazendo-se referência ao apóstolo que ninguém sabe direito para onde foi…
Depois do Vaticano II, deve-se conceber Revelação como uma verdadeira pedagogia divina: é o Espírito Santo que nos permite interpretar os “sinais dos tempos” e, em certa altura do esperançoso compromisso prático para com a defesa da vida no mundo, acreditar que aquele grito que despertou a nossa práxis amorosa é sagrado, ou seja, percebermos que dentro da nossa relação amorosa fala-nos processualmente uma Palavra – Revelação – diferente, que causa diferença na vida. De forma que a Palavra de Deus não está presente só nos livros, nem apenas nos “livros sagrados”, nem somente na literatura cristã.
Tomando o Concílio, assim, como ponto de partida para uma nova história do cristianismo, existem teólogos que consideram o próprio Jesus não como expressão “constitutiva” e sim “normativa” da graça salvífica. Jacques Dupuis, Michael Amaladoss, Andrés Torres Queiruga e Edward Schillebeeckx não insistem, por esta razão, nem na exclusão das outras religiões do projeto que os cristãos chamam de Governo de Deus, nem mesmo na inclusão das outras religiões, como etapas preparatórias, no movimento cristão. Para eles, em todas as religiões acontecem autênticas manifestações de Deus, que os cristãos entendem terem sido levadas à perfeição no mistério de Jesus Cristo. Mas “o mistério de Cristo inclui todas as manifestações de Deus na história, não apenas as realizadas em Jesus”.
Nessa perspectiva pluralista, o missionário e teólogo José Maria Vigil, que há anos tornou-se latino-americano de coração (dirige a famosa Agenda Latino-Americana e também a seção continental da Associação de Teólogos do Terceiro Mundo), coordenou o conjunto de cinco livros, com o título geral “Pelos muitos caminhos de Deus”, que escreveu com os colegas da ASETT. Já conhecíamos os quatro primeiros: Pelos muitos caminhos de Deus: desafios do pluralismo religioso à teologia da libertação (Goiás: Rede, 2003; que você pode baixar gratuitamente aqui); Pluralismo e libertação: por uma teologia latino-americana pluralista a partir da fé cristã (São Paulo: Loyola, 2005); Teologia latino-americana pluralista da libertação (São Paulo: Paulinas, 2006) e Teologia pluralista libertadora intercontinental (São Paulo: Paulinas, 2008).
A quinta obra, “Rumo a uma teologia planetária”, acabou de sair em inglês (a Paulinas está preparando a publicação em português) e esboça uma teologia multirreligiosa e pluralista da libertação. “Caminhamos a passo rápido – escrevem os autores – rumo a uma teologia aberta e livre”. Aonde esse caminho irá conduzir ainda não se sabe, mas é possível pensar que levará ao nascimento de uma teologia nova, uma teologia pós-religiões que vá além não de uma religião, mas das religiões enquanto tais, enquanto “configuração sócio-histórica humana congruente com o período ‘agrário’ da humanidade, período que já está perto do fim, progressivamente substituído pela ‘sociedade do conhecimento'”.
Uma teologia “sem dogmas, sem leis, sem verdades nem doutrinas”, “uma teologia laica, simplesmente humana”, “libertada do serviço a uma ‘religião’ enquanto instituição hierarquicamente sagrada com o seu sistema de crenças e ritos e cânones”, centrada na espiritualidade, comprometida com a “difícil tarefa de humanizar a humanidade e de reconduzi-la à sua casa, rumo à placenta natural planetária da qual ela erroneamente se separou no tempo da revolução agrário-urbana”.
Esse último volume, com efeito, resulta da consulta a um grupo de teólogos e teólogas de diferentes religiões e de todas as partes do mundo, desenvolvida por meio das quatro comissões teológicas da ASETT (asiática, africana, latino-americana e a das minorias dos EUA), com base em algumas questões centrais: “Está prevista na evolução da teologia um estado que vá além da ‘teologia confessional pluralista’?”; “É suficiente a chamada ‘teologia comparativa’, na qual um teólogo/a, radicado/a na sua própria tradição, desenvolve uma teologia do pluralismo em diálogo com as outras religiões?”; “É possível pensar uma teologia pluralista que se baseie sobre, e trabalhe com, categorias, fontes, princípios, imagens e metáforas não só de uma religião, mas de várias?”; “É possível uma teologia não monoconfessional, mas aberta e pluriconfessional, além de pluralista?”; “Que papel teriam nela a ‘regra de ouro’ (aquele valor moral fundamental, expresso em todos os tempos e em todas as culturas, que pede que ‘não se faça aos outros o que não gostarias que fizessem a ti’) e a opção pelos pobres?”; “Como deveria ser a teologia da qual o mundo precisa hoje para que as religiões decidam, pela primeira vez na história, unirem-se para trabalhar pela salvação da Humanidade e da Natureza?”.
Quem respondeu a essas perguntas foram Michael Amaladoss (Índia), Marcelo Barros (Brasil), Agenor Brighenti (Brasil), Edmund Kee-Fook Chia (Malásia), Amín Egea (Espanha), Paul Knitter (EUA), David R. Loy (EUA), Laurenti Magesa (Tanzânia), Jacob Neusner (EUA), Teresa Okure (Nigéria), Irfan A.Omar (EUA), Raimon Panikkar (Índia-Espanha), Peter C. Phan (Vietnã-EUA), Aloysius Pieris (Sry Lanka), Ricardo Renshaw (Canadá), José Amando Robles (Costa Rica), K. L. Seshagiri Rao (EUA), Afonso Maria Ligório Soares (Brasil), Faustino Teixeira (Brasil) e José María Vigil (Panamá). E as suas respostas, referentes a diversos âmbitos religiosos – além do cristianismo, a religião bahá’í (Egea), o budismo (Loy), o judaísmo (Neusner), o islã (Omar), o hinduísmo (Seshagiri) – são as mais variadas, em alguns pontos até contrastantes.
Há quem defenda a posição segundo a qual “cada teologia deve ser abrigada em uma confissão concreta”, de modo a não haver teologia sem confessionalidade explícita. E também quem alerte sobre o risco de ambiguidade e de sincretismo. Assim, por exemplo, Brighenti defende que, “enquanto reflexão da experiência de fé, cada teologia é um produto cultural, e cada teologia é uma determinada visão de uma confessionalidade, expressão de uma forma de inculturação da fé e, consequentemente, um discurso particular”. Amaladoss, que se considera um cristão-hindu, nega a possibilidade de uma teologia inter-religiosa, porque, a seu ver, seria como tentar falar duas línguas ao mesmo tempo.
Mas há também quem defenda, como Paul Knitter ou, a partir da visão espiritual da África indígena, Laurenti Magesa, a possibilidade, validez, urgência e a necessidade de uma teologia multifé ou inter-religiosa, afirmando até, como faz Teresa Okure, que quem coloca isso em dúvida deve demonstrar o contrário. E há quem vá além, com propostas como a de Phan de uma “cristologia inter-religiosa”, ou como a de Pieris de uma “cristologia da libertação das religiões”. Quem quer entrar na discussão, que aliás será tema de um Simpósio Internacional do nosso Mestrado em setembro, não pode perder essa coleção e, sobretudo, o último livro que está chegando…
Veja aqui um trecho do artigo de José Maria Vigil no livro Rumo a uma teologia planetária.
Antevendo essa linha teológica pluralista, leia aqui um livro de Wilfred Smith: O sentido e o fim da religião; e aqui uma revista sobre Paul Tillich e a sua inspiração para Uma teologia da história das religiões.
Pegue aqui um livro eletrônico relacionado, sobre O atual debate da teologia do pluralismo, depois da «Dominus Iesus»: