Última alteração: 2019-07-09
Resumo
Este presente trabalho propõe-se a discutir a instrumentalização estatal de artifícios coloniais na execução do projeto genocida da população negra, em especial dos seus jovens. Mobilizando reflexões sobre a racialização da gênese, instauração e legado de instituições de controle social como a polícia, o judiciário e o Estado, pautadas numa análise histórico-social por meio de revisão bibliográfica e da análise de dados da conjuntura contemporânea.
As máculas do sistema penal privado forjado no escravismo não foram superadas. Admitir que o fim da escravização da população negra dá-se apenas no âmbito burocrático é imprescindível para a compreensão da sofisticação da continuidade do projeto genocida. O reconhecimento da vida como um dos principais bens jurídicos a serem tutelados nasce embasado na lógica do “fazer morrer e deixar viver” - que é o exercício da soberania na manifestação do poder quando há a operacionalização do controle da vida e da morte, havendo a concatenação da racialização de categorizações determinantes de como o Estado vai agir - territorialidade, classe e raça (MBEMBE, 2017).
A gênese da força coercitiva no Brasil foi marcada por dois contextos: A Batalha dos Guararapes e a Guerra do Paraguai. Ambos eventos tiveram a força de batalha brasileira formada com uma quantidade expressiva de negros. A temporalidade do segundo embate (1865-1870) permite afirmar que estrategicamente o embranquecimento da nação foi um dos principais catalisadores do projeto genocida. Houve a negociação da libertação dos soldados negros que conseguissem voltar vivos da guerra; entretanto, em termos absolutos, a população negra foi reduzida em 1.000.000 de pessoas (FLAUZINA, 2005). O Anuário Brasileiro de Segurança Pública (LIMA, 2018) traz o dado que confirma a perpetuação desse quadro - no ano de 2017 o número absoluto de policiais civis e militares mortos em serviço é de 290, que é uma quantidade expressiva quando notamos que essa ocorrência dá-se no Estado Democrático de Direito, onde ainda há a precarização proposital da profissão policial.
O desencadeamento do processo autofágico da população negra é uma das cláusulas contidas no contrato racial assinado pela supremacia branca (CARNEIRO, 2011). A violência de caráter racista instaurada pelo colonialismo é uma anciã que desfruta de toda sua energia e vigor constituindo-se como força motriz de toda a sistemática, reverberando desde a manutenção do discurso dos dirigentes nacionais, sobretudo, dos países colonizados (FANON, 2015). Nessa perspectiva, a análise dos dados que envolvem mortalidade e expectativa de vida no Brasil vem nos afirmar que os negros, inscritos nesse projeto de Estado, são assistidos de modo intenso pela política do “deixar morrer” para proteção e garantia da branquitude (CARNEIRO, 2011).
O Código Penal Imperial, com o intuito controlar os ex-cativos criminalizou a vadiagem - exercício de pessoas que não tinham condições financeiras para se manter, com ênfase nos negros no período pós-abolição. Em seguida, práticas constitutivas da cultura negra foram tipificadas - samba, capoeira e religiões de matriz africana. Com o passar das décadas, a criminalização das drogas foi legitimada e, como de costume, essa criminalização afetou grupos específicos, aqueles tradicionalmente alijados da humanidade.
Na contemporaneidade, quando é pautada a letalidade de da população negra, é necessário afirmar que o instrumento principal que valida as estatísticas de mortalidade, é a moderna Lei de Drogas e os seus critérios “subjetivos” de distinção entre usuário e traficante. Quando é discuta a política de drogas, especialmente no Brasil, é importante falar sobre o racismo. A fracassada “Guerra às Drogas”, ao contrário do que contempla a sua nomenclatura, não é contra os entorpecentes. Assim como qualquer outra guerra já vista na história da humanidade, ela é contra pessoas, e pessoas específicas. Há cor e endereço.
Segundo Baratta, a reação social e os processos de seleção, etiquetamento e estigmatização demonstram uma nova forma da violência: a violência estatal das agências penais. Isso significa que tal conflagração, importada pelo Estado Brasileiro, é sedimentada na racialização, bem como uma discriminação territorial, visto que sempre existirão endereços fixos para a atuação ostensiva de agentes estatais que, na teoria, deveriam exercer uma proteção universal.
A grande maioria dos mortos nesse confronto é composta por negros e moradores de favelas - configurando uma higienização populacional. Segundo Atlas da Violência 2019, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram negros e quando a perspectiva etária é pautada, 59,1% dos homens mortos têm entre 15 e 19 anos. Torna-se absolutamente preocupante quando as funções reais (genocidas) passam a ser defendidas como base de novos discursos oficiais (funções declaradas), pois a transferência da programação real do direito penal do terror ao nível enunciativo potencializa de forma inominável o incremento da violência na nova realidade que se deseja criar (CARVALHO, 2017).
Referências
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Antígona. 2017.
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do Direito Penal. 3a ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002.
FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: O sistema penal e o projeto
genocida do Estado brasileiro. Brado, 2017.
CARNEIRO, Aparecida Sueli . Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. Selo Negro. 2011
CERQUEIRA, Daniel (coord.). Atlas da Violência 2019. Rio de Janeiro, IPEA, 2019.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Minas Gerais, UFJF. 2015.
LIMA, Renato Sérgio de (Coord.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo, Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 2017.
CARVALHO, Salo De. A Política Criminal de Drogas no Brasil. São Paulo, Saraiva: 2017.