Portal de Conferências da Unicap, IV Seminário Internacional Pós-Colonialismo, Pensamento Descolonial e Direitos Humanos na América Latina

Tamanho da fonte: 
A banalização da morte provocada por policiais: uma leitura das propostas de mudança na legítima defesa no “pacote anticrime” a partir do pensamento de Achille Mbembe.
André Carneiro Leão, Bruna Pimentel da Rocha Monteiro

Última alteração: 2019-07-09

Resumo


Este artigo pretende examinar a proposta de alteração legislativa das hipóteses que justificam o homicídio praticado por agentes de segurança pública contida no chamado“pacote anticrime”. Intenta-se interpelar, por meio do pensamento de Achille Mbembe, a razão cínica evidenciada no discurso dogmático que busca racionalizar como causa excludente da antijuridicidade a cultura policial de extermínio da juventude negra brasileira.

O Brasil apresenta um cenário de elevados índices de letalidade policial no qual jovens negros são os alvos. No Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2019, foram contabilizados, no ano de 2017, 367 policiais mortos (redução de 4,9% em relação a 2016) e 5.159 mortos em intervenções policiais (crescimento de 21% em relação a 2016). Já no Atlas da Violência 2019, publicado pelo IPEA e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, relata-se que, no ano de 2017, 35.783 jovens foram assassinados no Brasil, o que representa uma taxa de 69,9 homicídios para cada 100 mil jovens no país. Além disso, ainda no ano de 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros. A pesquisa vai além e constata que, de 2007 a 2017, a taxa de homicídios de negros cresceu 33,1%, enquanto a de não negros apresentou um crescimento de 3,3%.

O projeto de modificação legislativa sob exame prevê uma nova redação para o parágrafo 2o do artigo 23, do Código Penal (CP), o qual estabelece a possibilidade de o juiz deixar de aplicar a pena no caso de excesso na legítima defesa motivado por escusável medo, surpresa ou violenta emoção. Já uma segunda modificação se refere a inclusão do parágrafo único com dois incisos no artigo 25, do CP, o qual amplia a legítima defesa para autoridades de segurança pública e utiliza termos com conceitos indeterminados que remetem ao Direito Internacional Público, como “conflito armado”, “risco iminente de conflito armado”. E, por

fim, usa-se a expressão “previne”, o que poderia autorizar arranjos dogmáticos para enquadrarem legítima defesa condutas de antecipação contra agressões futuras.

O discurso dogmático dos apóstolos do projeto busca legitimar-se em modelos normativos de países europeus, mas ignora o contexto latino-americano (e brasileiro, em especial), no qual tais dispositivos produzirão efeitos reais. Não se pode perder de vista, por exemplo, como constatou Orlando Zaccone, que a intervenção letal policial já é atualmente amparada pelo sistema de justiça criminal como um todo: o governo fomenta, a polícia mata e o Ministério Público e o Poder Judiciário chancelam os massacres do cotidiano.

Almeja-se, desse modo, compreender a intencionalidade da política criminal que subjaz ao projeto legislativo em comento. Para tanto, serão utilizadas ferramentas conceituais que auxiliarão a identificar o racismo institucional expressado na mentalidade colonial que admite a criação de zonas de não ser e de pessoas que não são e que, por isso, podem ser mortas. A noção de necropolítica de Achile Mbembe permitirá, outrossim, observar na banalização do uso da força letal pela polícia uma verdadeira política de gestão da morte, justamente das pessoas que se encontram do outro lado da linha que separa os que podem e os que não podem viver.