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A reprodução da tradição autoritária do sistema de justiça penal brasileiro: uma análise da legítima defesa no “projeto de lei anticrime”
Maria Clara Pereira de Carvalho

Última alteração: 2019-07-09

Resumo


 

O Projeto de Lei Anticrime do Poder Executivo propõe alterações em diversas leis, dentre elas, no Código Penal quanto à legítima defesa. São acrescidos dois incisos ao artigo, os quais prevêem expressamente a incidência da excludente de ilicitude aos

agentes policias e de segurança pública no caso de conflito armado ou em risco iminente, bem como, para prevenir agressão ou risco de agressão em caso de vítima refém.

 

Nesse contexto, esta pesquisa visa investigar como esta alteração no direito penal material repercutirá no processo penal, no que concerne ao tratamento institucional dos futuros casos enquadrados nesses incisos, analisando se estas mudanças provocarão um avanço ou se reproduzirão a tradição autoritária do sistema de justiça penal brasileiro.

 

Tal alteração, conforme Monteiro, Chaves e Ferraz (2019), é desnecessária, uma vez que a legítima defesa como já tratada pelo Código Penal pode ser aplicada a qualquer indivíduo que se insira nos seus requisitos, inclusive, no caso de agentes policiais e da segurança pública. Ademais, o caput não traz especificações, abarcando, por óbvio, todas as situações, até mesmo as especificadas nos incisos.

 

Por isso, defende-se que tais alterações, na law in action, visam legitimar os procedimentos superados dos “autos de resistência”, revitalizando velhos instrumentos de violência institucionalizada com nova roupagem, aumentando os casos de impunidade dos agentes de Estado em situações que envolvam morte nas periferias das grandes

cidades brasileiras.

 

A violência perpetrada pelo Estado e presente na sistemática processualista penal brasileira faz com que as violações aos direitos humanos ocorridas, por meio do uso arbitrário e letal da força policial, não sejam investigadas adequadamente, culminando, na não responsabilização dos agentes, no excessivo punitivismo contra os pobres e negros e na parcialidade jurisdicional (TSUKAMOTO, 2016). De acordo com Lopes Jr. (2018) o processo penal brasileiro é inquisitório ou neoinquisitório, marcado por parcialidades jurisdicionais, poderes investigatórios nas mãos dos juízes e práticas arbitrárias.

 

Esta tradição inquisitorial/autoritária faz-se presente nas instituições brasileiras e, conforme Zaffaroni (2013), a estrutura montada pelos demonólogos se reafirma e se renova. Modificações como as propostas no Projeto de Lei Anticrime fortalecem a violência policial ilegítima, que acaba sendo legitimada pelo próprio ordenamento jurídico. Portanto, a partir do que já pesquisado, percebe-se que o Brasil precisa desvencilhar-se dessa tradição autoritária/inquisitorial que é própria dos países latino-americanos marcados por um histórico de ditaduras e arbitrariedades das instituições. Seguindo os ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos, com a Epistemologia del Sur, é necessário o desenvolvimento de conhecimentos a partir do nosso contexto social –

marcado pela violência de Estado, pois a epistemologia do norte – desenvolvida para países com instituições sólidas e democracia robusta - domina os saberes, e, sempre que

conhecimentos partirem dela, o sofrimento humano causado pela violência estatal será analisado por ferramentas teóricas equivocadas para a realidade nacional . As linhas tidas ainda como invisíveis (institucionais autoritárias no Brasil) e que sustentam as linhas visíveis (legais e democráticas) precisam aparecer através de conhecimentos próprios e críticos, desenvolvido conforme a realidade da convivência policial com as comunidades pobres do sul do mundo.


Referências

LOPES Jr., Aury. Direito processual penal. – 15. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

MONTEIRO, Luan de Azevedo; CHAVES, Sabrina Ribeiro; FERRAZ, Hamilton Gonçalvez. A legítima defesa no “projeto anticrime”: considerações críticas preliminares. Boletim - Publicação do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais: Edição Especial - Projeto de "Lei Anticrime" - Parte II de II, Ano 27. No 318, p.18-20, maio 2019.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Porquê as Epistemologias do Sul? Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=ErVGiIUQHjM>. Acesso em 10 junho 2019.

TSUKAMOTO, Natalia Megumi. Arquivamento de “autos de resistência” como hipótese de acionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Liberdades, Edição No 22, p.98-114, agosto 2016.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl, 1940- A questão criminal; tradução Sérgio Lamarão. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2013.