Portal de Conferências da Unicap, IV Seminário Internacional Pós-Colonialismo, Pensamento Descolonial e Direitos Humanos na América Latina

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“Se eles morreram, quem somos nós?: interpretações históricas e luta pela terra em audiovisuais guaranis
Luisa Tombini Wittmann

Última alteração: 2019-07-09

Resumo


A experiência de assistir cinema indígena é um deslocar-se imprevisível eimprescindível ao não-indígena. Através de uma narrativa audiovisual provocativa, oespectador é levado a um repensar profundo do senso-comum estereotipado sobre o serindígena e a história hegemônica apresentada sobre os indígenas. O cinema indígena setorna, desta forma, uma prática sensível de desobediência epistêmica (MIGNOLO) eresposta ao epistemicídio em curso (BOAVENTURA; CARNEIRO). Trata-se de ummovimento artístico-político amplo e simultâneo, porém não homogêneo, que perfura aspoderosas e violentas malhas da colonialidade do poder, do ser e do saber. Atualmente,há um crescimento significativo de vídeos produzidos por (ou em conjunto com)comunidades indígenas que se transformam em ferramentas de luta por direitos e decirculação de histórias, memórias e culturas. A linguagem audiovisual, conforme ospróprios indígenas, se adequa mais do que o formato escrito ao seu modo de ser pautadona oralidade e na ancestralidade.Ao apresentar a Bienal de Cinema Indígena, ocorrida em São Paulo em outubrode 2016, Ailton Krenak definiu o cinema indígena como uma “revolta do olhar” que sedistancia da linguagem cinematográfica standard: “A imagem já está pastel demais.Hollywood pasteurizou a imagem. Nós queremos despasteurizar, estamos fazendo umaespécie de revolução do olhar. É mais uma revolta do olhar que uma revolução. É umolhar que não aguenta mais a mesmice.” Esse cinema, ainda segundo Krenak, surge davivência cultural dos indígenas com imagens que não são controladas, porquetranscendentais. A passividade de um espectador de um filme que reproduz um roteiroprévio numa narrativa minuciosamente controlada dá lugar a um observador ativo que éinstigado a refletir de forma crítica e junto com os/as indígenas acerca de histórias eculturas outras, subalternizadas pelo colonialismo e pela colonialidade atual. O acesso auma linguagem audiovisual que se difere da usual cinematográfica geralmente causadesconforto ao espectador, que logo percebe não estar diante de uma narrativa facilitada.O cinema indígena, e de outros sujeitos e grupos marginalizados, revela a existência deinúmeras e diversas formas de ser e de estar no mundo, que afeta o ver o mundo de quemassiste.Esta apresentação tem por objetivo analisar filmes elaborados pelo ColetivoMbyá-Guarani de Cinema, com enfoque na disputa de narrativas sobre a história colonialdas missões jesuíticas e sobre o convívio com os não indígenas na atualidade. Dito deoutra forma, talvez mais condizente com a potência que têm, na versão de história e deluta pela terra Mbyá-Guarani apresentada nos filmes Mokoi Tekoá Petei Jeguatá: Duasaldeias, uma caminhada (2008), Desterro Guarani (2011) e Tava: a casa de pedra (2012).A escolha desta documentação cinematográfica não tem como intuito, evidentemente,apontar em sua cronologia uma suposta evolução dos filmes ou dos indígenas comocineastas. Buscar-se-á partir de problemas do tempo presente, investigados pelos próprioscineastas Mbyá-Guarani, para refletir sobre história e cultura indígena. Os filmes citadosestão intimamente interligados, e serão portanto analisados em conjunto a partir dequestões centrais que revelam interpretações históricas outras. Neste sentido, éimportante ressaltar, as fontes fílmicas serão aqui compreendidas como produção deconhecimento histórico e de luta por direitos na contemporaneidade.Como, o que e por que os indígenas filmam e contam sua própria história? Esta éa complexa questão-problema da pesquisa intitulada “A revolta do olhar: concepções dehistória na narrativa audiovisual Guarani”, desenvolvida no AYA - Laboratório deestudos pós-coloniais e decoloniais, na Universidade do Estado de Santa Catarina(UDESC). A pergunta central da pesquisa se ramifica em outras a serem investigadas:como os conceitos que constituem o modo de ser Guarani (Nhanderekó) – especialmenteterritorialidade, espiritualidade e educação – se articulam com o discurso histórico? Alinguagem audiovisual indígena colabora, portanto, para a disseminação de outros olharessobre a História, nesse caso uma história transnacional guarani. Além de despasteurizar aimagem numa revolta do olhar, como ressalta a liderança indígena Ailton Krenak, essanarrativa audiovisual protagonizada por povos originários revelam perspectivas outrasacerca da História que constituem nosso passado, presente e futuro. Buscar-se-á,portanto, evidenciar um olhar decolonizado Guarani, partindo da perspectiva de que ospovos indígenas são sujeitos da História e produtores de conhecimento acerca dela.O estudo dessas produções indígenas contemporâneas é importante para aconstrução do que poderíamos chamar de um “equilíbrio narrativo”, onde estaspopulações deixam de ocupar espaços predeterminados nas narrativas sobre o passadopara tornarem-se sujeitos ativos não só da história, mas de suas formas de fazer e contar.Trata-se de um alargamento de linguagens e narrativas históricas, necessário para aconstrução de epistemologias novas. Aos perigos da história única, descritos porChimamanda Adichie, poderíamos acrescer as consequências de uma históriaexclusivamente escrita. É fundamental refletir sobre a exclusão dos gruposmarginalizados na história, e consequentemente de suas perspectivas históricas, para quese reconheça sua importância e suas lutas na conjuntura atual; para que sejamproblematizadas as perspectivas de produção do conhecimento provenientes de umaconcepção eurocêntrica e colonialista sobre o mundo. E, mais do que isso, para que sejamconstruídas novas epistemologias (MIGNOLO, 2003). Vivemos a permanência dacolonialidade do poder, do saber e do ser no sistema-mundo moderno colonial, quepressupõe, entre outras questões, o controle da subjetividade e do conhecimento: “daperspectiva epistemológica, o saber e as histórias locais europeias foram vistas comoprojetos globais (...) que situa a Europa como ponto de referência e de chegada”(MIGNOLO, 2003, 41). A colonialidade provocou a expropriação e a exclusão, ainvisibilidade e a renegação de histórias locais e experiências nas Áfricas e Américas(ANTONACCI, 2013).A proposta do giro-decolonial, que se constitui de um movimento teórico, ético,político, prático e epistemológico, busca questionar à lógica damodernidade/colonialidade. Nesta perspectiva, se abre possibilidades de aprendizadomútuo na medida em que se mantém uma postura desestabilizadora e decisiva na releiturados construtos discursivos que moldaram o pensamento ocidental (MIGNOLO, 2003).Portanto, é necessário o questionamento do saber epistêmico ocidental/colonial e odescobrimento e a valorização das teorias e epistemologias do sul, e aqui não se trata deum recorte geográfico, mas sim de saberes, viveres, ideias de sujeitos subalternizadospelo pensamento eurocêntrico/colonial/moderno (MIGNOLO, 2003; ANTONACCI,2013) que pensam com e a partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuaissubalternizados. Não se trata de uma substituição, mas do surgimento de paradigmasoutros. É legítimo pensar que, consoante com Antonacci, na contramão dos cânonesocidentais, as narrativas e as estéticas, as dinâmicas de expressão e o reconhecimento dehistórias, de lutas e de memórias de grupos subalternizados estão a desalojarconhecimentos continentais engessados e fechados em si mesmos (2013, 248). Nessesentido, essa pesquisa está comprometida com uma interpretação decolonizada acerca dashistórias do povo Guarani, a partir do que eles mesmos constroem enquantoconhecimento acerca da sua própria História e luta contemporânea pela terra.

Bibliografia

ANTONACCI, Maria Antonieta. Memórias ancoradas em corpos negros. São Paulo: EDUC, 2013.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. FEUSP,2005. (Tese de doutorado)

MIGNOLO, Walter. A gnose e o imaginário do sistema mundo colonial/moderno. In: HistóriasLocais/Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de SolangeRibeiro e Oliveira. Belo Horizonte. Editora UFMG, 2003. p. 23 -76.SANTOS, Boaventura de Souza. Descolonizar El saber reinventar El poder. Montevidéu: Trilce, 2010.