Última alteração: 2019-07-09
Resumo
Seriam os direitos epistêmicos direitos humanos? Se há direitos epistêmicos, e estes são uma das duas preocupações centrais desta pesquisa, conhecer não é apenas promover o atrito entre convicções ou opiniões de um lado e a verdade e a justificação de outro. Se não é assim, é como se não houvesse justiça a ser administrada quando nossas opiniões e convicções ficam atravessadas de opiniões e convicções dos outros. É como se o epistêmico fosse fechado em si mesmo e nenhum outro direito pudesse atravessá-lo. Por outro lado, se há direitos epistêmicos, uma outra imagem do conhecimento deve sustentá-los. Esboçar esta outra imagem é a outra preocupação central deste trabalho. Trata-se de estudo teórico que pretende introduzir essas discussões sobre justiça epistêmica articulando com a noção de direitos (humanos) epistêmicos e a decolonialidade do pensamento. Procuramos alinhavar uma imagem geral do conhecimento onde lembrar, intuir, perceber e inferir constituem direitos – não intransponíveis ou inegociáveis, mas, inalienáveis no sentido de que não podem ser desconsiderados por atos de conhecimento. O conhecimento dos outros é um insumo de qualquer ato de conhecimento. Nesta imagem, o conhecimento nunca se dá em um ambiente de ignorâncias, em uma estaca zero epistêmica. Todo conhecimento se dá em um ambiente epistêmico já rico de convicções e opiniões e, também, de inferências, de percepções, de lembranças e de intuições. Dito de outro modo, já há, nesta imagem, direitos epistêmicos a serem considerados quando o conhecimento começa a ter lugar. Estes direitos, proporemos, podem ser entendidos como direitos humanos. Se de um lado a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) dispõe nos Artigos 18º e 19º o direito à liberdade de produção e exercício do conhecimento e modos de pensar, de outro, os estudos pós-coloniais e sobre a decolonialidade do pensamento, bem como os estudos e intuições sobre a percepção e a memória na dissidência de gênero e no feminismo negro têm contribuído de forma crítica e significativa à reflexão acerca das injustiças epistêmicas. Estes estudos começam a revirar a lama interna do epistêmico: o direito à opinião e à convicção são direitos doxásticos (ou culturais, ou religiosos) e deles não decorrem garantias acerca de tomadas de posições epistêmicas. Não basta dizer que cada um pode ter as convicções ou opiniões que quiser, os direitos epistêmicos tratam do direito destas convicções de serem ativamente levadas em consideração nos atos de conhecimento e de comunicação. Tratar direitos epistêmicos como direitos humanos é tratar cada pessoa como capaz de ter conhecimento. Nesse sentido, esse trabalho faz parte de pesquisa de estágio pós-doutoral da primeira autora, realizado no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade de Brasília, cujo objetivo foi ampliar os horizontes pluriepistêmicos dos estudos em saúde coletiva a partir de referenciais da decolonialidade e interseccionalidade, a partir da estética e epistemologia da subalternidade de uma professora e pesquisadora transgênera e negra, que estuda a saúde coletiva em interface com a filosofia decolonial, a partir da contribuição da noção de injustiça epistêmica e de opressão epistêmica como arena fértil para entender diversos fenômenos sociais e políticos trazidos à baila pelo feminismo, pelos estudos da transgeneridade (estudos trans e travestis) e da teoria Queer, pelos estudos (de)coloniais e étnico-raciais e pelos estudos da incapacidade, como também para integrar estes fenômenos em uma imagem das práticas epistêmicas vigentes.